quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O seu nome (João de Deus - 1830-1896)

Ela não sabe a luz suave e pura
que derrama numa alma acostumada
a não ver nunca a luz da madrugada
vir raiando, senão com amargura!

Não sabe a avidez com que a procura
ver esta vista, de chorar cansada,
a ela... única nuvem prateada,
única estrela desta noite escura!

E mil anos que leve a Providência
a dar-me este degredo por cumprido,
por acabada já tão longa ausência,

ainda nesse instante apetecido
será meu pensamento essa existência...
E o seu nome, o meu último gemido.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Indicação (Murilo Mendes - 1901-1975)

Sim: o abismo oval atrai meus pés.
Leopardo familiar, a manhã se aproxima.
Preciso conhecer em que universo estou
E a que translações de estrelas me destinam.
Em três épocas me observo sustentado:
Na pré-história, no presente e no futuro.
Trago sempre comigo uma morte de bolso.
Assalta-me continuamente o novo enigma
E uma audácia imprevista me pressinto.
Arrasto minha cruz aos solavancos,
Tal profunda mulher amada e odiada,
Sabendo que ela condiciona minha forma:
E o tempo do demônio me respira.
Gentilíssima dama eternidade
Escondida nas raízes do meu ser,
Campo de concentração onde se dança,
Beatitude cortada de fuzilamentos...
Retiram-me o véu que sei de mim.
Ontem sou, hoje serei, amanhã fui.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

quem diria (Geraldo Carneiro - 1952)

ser cético era sonho de consumo
quando eu me consumia sendo jovem,
ser joyce, guimarães ou ser vinícius
no trânsito das musas musicais.
naquele tempo ainda não sabia
que a mim só me cabia ser eu mesmo.
hoje mudei, Ulisses de mim mesmo,
procuro minha ilha em Tordesilhas,
uma sereia que me faça bem,
me faça mal, me faça quase tudo.
eu que só tinha o credo dos ateus
quero que a vida voe sempre assim
no piloto automático de Deus

sobre a natureza (Geraldo Carneiro - 1952)

nunca soube me tornar civilizado,
faço no máximo as simulações.
sou selvagem na selva do meu peito
a chama que se chama coração:
me parto e me arremesso contra o céu
contrário a qualquer força que me oprima.
sou meu sistema-sol e girassol.
só não me basto em matéria de amor
a esfera-céu que sempre me pretendo.
meu desconcerto é parte de meu ser.
renuncio à arte de apartar da vida
tudo que não lhe pertença.
não sei quem diz por mim a minha fala
mas sua voz é semelhante à minha
e às vezes nela até me reconheço
como a lua girando no seu curso

domingo, 28 de agosto de 2011

O outro (Chacal - 1951)

só quero
o que não
o que nunca
o inviável
o impossível

não quero
o que já
o que foi
o vencido
o plausível

só quero
o que ainda
o que atiça
o impraticável
o incrível

não quero
o que sim
o que sempre
o sabido
o cabível

eu quero
o outro

sábado, 27 de agosto de 2011

Bem no fundo (Paulo Leminski - 1944-1989)

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso
maldito seja quem olhar para trás,
lá para trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear,
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

Desencontrários (Paulo Leminski - 1944-1989)

Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Encarnação (Cruz e Sousa - 1861-1898)

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arrepios...

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridade e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Literato cantabile (Torquato Neto - 1944-1972)

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de ideia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Brasília 50 anos (Elício Pontes - ?)


Quando cheguei, o rosto da cidade
se pintava de vermelho
com o pó da terra goiana.

Ética não era uma palavra
era um sentimento
um gesto.
Praticava-se o encontro
o riso franco e honesto
ao amigo desconhecido.

Quero de volta a poeira
que sujava apenas os sapatos.
Quero juntar de novo
o pó e a ética,
fundir numa palavra
a imagem verdadeira de Brasília:
Poética.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Nostalgia (Florbela Espanca - 1894-1930)

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que plas aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o reino de que sou Infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Profecia (Elisa Lucinda - 1958)

Um dia eu vou rir disso tudo
vou ter saudade do medo que eu tinha de não ter dinheiro amanhã
Um dia vou ser irmã da certeza
de comer, dormir e comprar disco todo dia
e ter galinha no quintal e viver bem
Um dia, meu bem
me verás vestida de ouro
e pensarás que vou a uma festa
A festa será aquela, esta de estar em casa sem tensão
sem terceira imundície
Um dia meu irmão te direi: Não te disse?:
E serei a negra mais feliz do Brasil
Não serei imbecil
Serei sábia  e sutil na riqueza
Eu que era ovelha negra da quadrilha
vou sustentar a família
com tanta beleza
Um dia vou pôr a mesa
que o mundo guardou para mim
Patroa e empregada do meu próprio festim!

sábado, 20 de agosto de 2011

De novo (Alice Ruiz - 1946)

de novo
volto para meu amigo
trago um novo gosto
outra língua
terra estranha

volto aos poucos
para meu amigo
só que agora
já não trago
a alma comigo

gesto antigo
volto
de repente
para meu amigo
sou outra
outro é meu amigo

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Poema XI (Rogério Carrola - 1947)

Preferes então a história dos três arbustos?

Digo-te já: três medíocres arbustos.

Quantas vezes quietos na calma do vento e, outras,
agitados pelo mesmo vento ou talvez por um mal interior indecifrável.

Três arbustos presos ao terreno onde horizontalmente
os seus pés têm marcada a condenação.

Junto ao solo, mas não tanto como isso, eles suspendem o princípio
de uma música que o tempo escreve.

Dentro deles existe uma seiva, princípio da terra que se há de abrir
à morte de todos os arbustos.

Um silêncio cresce-lhes nos pés e sobe até ao gosto do vinho acre
que a brisa transporta depois para os lados do mar.

Digo-te: são três arbustos de montanha.

Não mastigam algas nem conhecem outra cor
senão a dos ossos milenários que a montanha tem dentro de si.

Preferes então a história dos três arbustos?

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Corrida de amor (Vicente de Carvalho - 1866-1924)

Quando partiste, em pranto, descorada
a face, o lábio trêmulo... confesso:
arrebatou-me um verdadeiro acesso
de raivosa paixão desatinada.

Ia-se nos teus olhos, minha amada,
a luz dos meus; e então, como um possesso,
quis arrojar-me atrás do trem expresso
e seguir-te correndo pela estrada...

"Nem há dificuldade que não vença
tão forte amor!" pensei. Ah! como pensa
errado o vão querer das almas ternas!

Com denodo, atirei-me sobre a linha...
Mas, ao fim de uns três passos, vi que tinha
para tão grande amor, bem curtas pernas...

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Língua Portuguesa (Olavo Bilac - 1865-1918)

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Memória prévia (Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)

O menino pensativo
junto à água da Penha
mira o futuro
em que se refletirá na água da Penha
este instante imaturo.

Seu olhar parado é pleno
de coisas que passam
antes de passar
e ressuscitam
no tempo duplo da exumação.

O que ele vê
vai existir na medida
em que nada existe de tocável
e por isto se chama
absoluto.

Viver é saudade
prévia.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Destino sertanejo (Jairo Cézar - 1977)

Porque vim tenho que ir.
Vou nas asas da tanajura,
Que me guiarão pelas palmas,
E lá, verei caveiras bovinas,
Já quase todas sem alma,
Que chorarão pranto seco,
Em chão batido de terra,
Banhado todo de cinza,
Por cacimbão e cisterna.

E no ventre do menino,
Onde o vento faz morada,
Escassez tem de tudo,
Lombrigas de cara inchada.
E nos olhos, esse olhar lavrador,
Busca em um Cristo pintado,
A salvação do roçado
Privado de seu verdor.

E enfim, a melodia medonha
Do carro agreste de boi
Anuncia a chegada do Cordeiro,
Que vem redimir com a morte,
Coletora ingrata e forte,
O destino Sertanejo.

domingo, 14 de agosto de 2011

Ao meu pai chorão, pelo dia dos pais (Maíra Ramos)


     Meu pai é a pessoa mais sensível de que tenho notícia. Sabe poeta? Pois ele é poeta ao seu jeito, sem nunca ter escrito nenhuma poesia, ao menos que eu saiba. Mas não precisa escrever, porque a poesia está na vida e é para ser sentida - e meu pai sabe disso. E como ele sente... É a pessoa mais chorona que conheço. Chora até sem lágrimas. Emociona-se com letras de música, a ponto de se esquecer da estrada, se estiver dirigindo. Uma vez precisou trocar o pneu do carro porque estourou a roda ao subir num meio-fio. Estava ouvindo Vinícius e Toquinho e não conseguiu dirigir ao mesmo tempo. Era muita emoção incontida! Sol se pondo no horizonte é o que ele mais adora, se for sol de praia ou de planície, então, ele ama...

     Aprendi inúmeras lições com o meu pai. Uma das primeiras lições me foi dada por um personagem inventado por ele, chamado carinhosamente de Kaxorrinho. Morava no morro o tal cachorro, era filho do João Preto, que, para sobreviver no morro em seu barraco alugado, vendia laranjas e pentes na Praça XV, no Rio de Janeiro. Esse importante personagem me ensinou a respeitar os mais humildes e suas histórias de vida e de superação. Me ensinou, acima de tudo, a me colocar no lugar do outro, não apenas sentir dó ou compaixão, mas a respeitar a história de vida que cada um carrega. E muito mais aprendi com o personagem...

     Hoje venho agradecer por mais um dia dos pais, desejando que ele seja muito feliz e que sempre tenha boas histórias para me contar, porque é isso que dá sentido à vida...

* Escrito originalmente para o aniversário, mas adaptado para o dia dos pais.

sábado, 13 de agosto de 2011

Amante (Castro Alves - 1847-1871)

"Basta, criança! Não soluces tanto...
Enxuga os olhos, meu amor, enxuga!
Que culpa tem a clícia descaída
Se abelha envenenada o mel lhe suga?

"Basta! Esta faca já contou mil gotas
De lágrimas de dor nos teus olhares.
Sorri, Maria! Ela jurou pagar-tas
No sangue dele em gotas aos milhares.

"Por que volves os olhos desvairados?
Por que tremes assim, frágil criança?
Est'alma é como o braço, o braço é ferro,
E o ferro sabe o trilho da vingança.

"Se a justiça da terra te abondona,
Se a justiça do céu de ti se esquece,
A justiça do escravo está na força...
E quem tem um punhal nada carece!...

"Vamos! Acaba a história... Lança a presa...
Não vês meu coração, que sente fome?
Amanhã chorarás; mas de alegria!
Hoje é preciso me dizer - seu nome!"

A duas flores (Castro Alves - 1847-1871)

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Das vantagens de ser confuso (Nicolas Behr - 1958)

olhar e ver tudo torto, errado
das vantagens de ser incoerente
demente, temente, tenente, patente
das vantagens de ser repetititititivo
das vantagens de ser livre, foda-se!
das vantagens de se fingir de morto
qual peixe na feira, olho aberto, parado
das vantagens de ser totalmente louco,
pirado, sem nenhum compromisso com
nada, escravo da mente, sem consciência
celular, sem celular, sem a porra da
agenda, sem rima, sem nada,
só a loucura insana a te emoldurar
a alma
loucura - esta bela armadura
esta couraça intransponível
este colete a prova de tudo
este poema, impiedoso,
a te perfurar o coração

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Sete anos de pastor Jacó servia (Camões 1524-1580)


Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
que a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
assim lhe era negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começou a servir outros sete anos,
dizendo: "Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida".

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Saída do trabalho (Jorge Wanderley - 1938-1999)


o ônibus cinza que dobra a esquina
acenando em cada solavanco

      fugir daqui!

máquinas ambições o de sempre
fica tudo no asfalto último
em que pisava o pé antes de subir

tudo lá se ficou na lavagem
no banho
que é embarcar no cinzão
a caminho do centro
e do miniporre com almoço e leitura

e aquela lembrança que retorna e que vai embora
mas que retorna retorna
- de que o tempo acabou -

de que tudo já passou
que não adianta mais

      vai ser preciso beber mais de um

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Credo (Mario Benedetti - 1920-2009)


De repente a gente se afasta
              das imagens queridas
amiga
ficas frágil no horizonte
te deixei pensando em muitas coisas
mas espero que penses um pouco em mim

tu sabes
nesta excursão para a morte
             que é a vida
me sinto bem acompanhado
me sinto quase com respostas
quando posso imaginar que lá longe
talvez acredites na minha crença antes de dormir
ou cruzes comigo nos corredores do sonho

não preciso te dizer que a esta altura
não acredito em oradores nem em generais
nem na bunda da miss universo
nem no arrependimento dos carrascos
nem no catecismo do conforto
nem no pobre perdão de deus

a esta altura do jogo
acredito nos olhos e nas mãos do povo
em geral
e nos teus olhos e tuas mãos
em particular.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Mater dolorosa (Ivan Junqueira - 1934)

Entre os túmulos e os dobres
é que vens, lenta e lutuosa,
nas mãos o cântaro e a rosa
que, defunta, já não colhes.

São teus olhos duas covas,
como as dos crânios, inóspitas,
mas eis que delas escorre
o que a morte não encobre:

essas lágrimas que bóiam
à tona do que, sem bordas,
foi outrora a tua história
e agora é o pó dos espólios.

Úmido é o húmus da morgue
e do catre em que te encolhes,
como se o frio, em teus ossos,
queimasse mais que uma forja.

Muda e estóica até na cólera,
resta a cinza dos teus fogos.
E o que de mim ainda sobra
busca a tumba do teu colo.

domingo, 7 de agosto de 2011

Canção da primavera (Mario Quintana - 1906-1994)

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

sábado, 6 de agosto de 2011

Idealismo (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
Da Messalina, e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro -

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A lucidez perigosa (Clarice Lispector - 1920-1977)


Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode tornar-se o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

Lugares comuns (Ana Luísa Amaral - 1956)

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazinhas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I'm not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia a levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That's it.

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda parte
as mesmas coisas são

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Ana Luísa (Murilo Mendes - 1901-1975)

Ana Luísa
Tuberculosa incomparável
Tens um farrapo de vida
Mas um corpo forte sensual
Uma cabeça vitoriosa
Plantada num tronco largo.

Está sendo lentamente devorada
Por seres microscópicos
Ana Luísa.

No sanatório usava lentes escuras
Para esconder teus célebres olhos azul-cinza
E tinhas medo do definitivo e monumental:
Estendida continuamente na espreguiçadeira,
Da força das montanhas te ocultavas.
De nada te valeu minha ternura,
De nada tua beleza te valeu.

Talvez te tornes para sempre invisível
Agora que eu te arranquei da penumbra dos tempos
Ana Luísa.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Flores do mais (Ana Cristina Cesar - 1952-1983)

devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Falando com Deus (Jerônimo Bahia - 1628-1688)

Só vos conhece, amor, quem se conhece,
só vos entende bem quem bem se entende,
só quem se ofende assim não vos ofende,
e só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce,
só é senhor de si quem se vos rende,
só sabe pretender quem vos pretende,
e só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde tudo ganha,
pois tudo quanto há tudo em vós cabe;
ditoso quem no vosso amor se inflama,

pois faz troca tão alta e tão estranha,
mas só vos pode amar o que vos sabe,
só vos pode saber o que vos ama.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Balada para um amigo (Felipe Fortuna - 1963)

Essa aurora é a minha vez.
É a voz que me faltava e me traduzia
um homem que nasceu.
Se penso em ti, logo me vejo sozinho,
e outro dia amei que nem pensava.
Abri flores - agora estarão mortas.
Abri fendas - ainda estarão nas rochas.
Bebi meu último copo com o amigo.
Disse-me tantas verdades, o amigo,
que preferi partir sozinho à casa sóbria.
Lembro-me só, do pouco que falei,
que choramos juntos a música besta
e o assassinato de um chofer de táxi.
E pela manhã, quando as estudantes
desfilam seios e saias plissadas,
parei perto das estátuas, olhei pombos atônitos,
e não trazia uma frase
de improviso ou ensaiada
que dissolvesse a névoa, que revelasse ao amigo
por que naquele dia fui tão triste,
recitei tanta ventania,
e dei-lhe um abraço de monstro
e não lhe disse: - Acordei.
Meu amigo, se estiveres
lendo-me agora
ou escutando rádio,
se estiveres bem em tua cama e almofada,
me diga se o que houve
entre minha e tua palavra
foi vida, que tanto escorria,
ou foi a morte que nos encontrava.