quinta-feira, 31 de maio de 2012

Lição (Ivan Junqueira - 1934)

A Marco Aurélio Mello Reis

À beira do claustro
o monge se inclina
e na pedra aprende
o que a pedra ensina:
que a vida é nada
com a morte por cima,
que o tempo apenas
este fim lhe adia
e que o ser carece
de não ser ainda,
pois à luz se esquiva
do que o purifica:
a doce pedra,
sem musgo ou limo,
o pátio só,
conquanto o sino,
o ermo das coisas
simples e humildes.

O soldador de palavras (Majela Colares - 1964)

fazer poemas é soldar palavras
fundir o signo - literal sentido -
do verbo frio, transformado em chama
aceso verso, pesado e medido

sob a moldura da expressão intensa
fingem palavras um som mais fingido
além, no ocaso, da sintaxe extrema
fuga do verbo não mais definido

criado o texto, com idéia e tinta
forma e figura em linguagem extinta
quebrando regras de comuns fonemas

a idéia é fogo. Fogo... o verbo aquece
a tinta é solda que remenda e tece
versos, metáforas... por fim, poemas

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Cemitério do Araçá (Augusto Massi - 1959)


Quando ainda era menino,
voltava calado para casa,
interrogava teu muro alto.
Eras o melhor vizinho.

Habituado a jogar futebol
na sinuosa rua dos fundos,
estranhava que as bolas
não voltassem do teu mundo.

Você resistiu ao cerco
da cidade que cresceu
(eu também cresci)
sempre à tua volta.

Repisando nosso passado,
hoje, finalmente, te visito.
Busco meu pai enterrado
dentro do teu labirinto.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Estados de ânimo (Mario Benedetti - 1920 - 2009)

Uma vez me sinto
como pobre colina
e outras como montanha
de cumes repetidos

umas vezes me sinto
como um precipício
e em outras como um céu
azul mas distante

Às vezes a gente é
manancial entre rochas
e outras vezes árvore
com as últimas folhas

mas hoje me sinto apenas
como lagoa insone
com um embarcadouro
já sem embarcações

uma lagoa verde
imóvel e paciente
de bem com suas algas
seus musgos e seus peixes

sereno em minha confiança
confiante em que uma tarde
te aproximes e te olhes
te olhes ao olhar-me.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Medo (Elisa Lucinda - 1958)

Um finíssimo fio esticado sobre um abismo
Onde haveremos de bailar
Enquanto isso fui pegando seus olhos de antigo varão
E espalhando pelo meu corpo
Como se fosse o sol
Como quem acha um não
Os dias se repetem luxuosos
Reverberados no vídeo de nós dois:
Pernas, gosto, dedos e calor.
A turbulência do mundo e dos compromissos
Pensa que não vai deixar a gente se querer direito
Eu rio.
Depois choro por dentro
Como quem precisa de antemão
arranjar um senão
descolar um lugar
no saguão do meu espaço
no palácio do meu coração
Para você ficar, quando precisar ser
só memória, ausência, obsessão.

A morta viva (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Maria do Rosário estendida no caixão
Toda vestida de branco aos vinte anos
Está cercada de angélicas e de moscas.
Seu rosto é inviolavelmente puro e simples.
Telefonam telefonam telefonam.

Inclino-me sem chorar sobre seu corpo.
Só agora lhe digo a palavra de ternura
Que ela nunca pode conseguir de mim,
A palavra que talvez justificasse uma vida,
A palavra que eu nunca tive a força de dizer.

Só agora sei que a amo, de um amor definitivo.
Só agora me descobri seu companheiro para sempre.
A eternidade irrompeu no tempo, violentíssima.

domingo, 27 de maio de 2012

Perde e ganha (Ferreira Gullar - 1930)

Vida tenho uma só
          que se gasta com a sola de meu sapato
          a cada passo pelas ruas
          e não dá meia-sola.

Perdi-a já
em parte
num pôquer solitário,
mas a ganhei de novo
para um jogo comum.

E neste jogo a jogo
inteira, a cada lance,
que a vida ou se perde ou se ganha com os demais
e assim se vive
que o mais é pura perda
 

O outro lado (Alberto Martins - 1958)

A vida após a morte
não é tão fácil
de ser levada.

Não para quem morre
mas para quem fica:
todo o pessoal da retaguarda.

Que inferno ir à praia
na manhã vazia
- de canal a canal
sem dar palavra.

O morto pelo menos
escapou do dia a dia:
já não precisa lavar o pé
antes de entrar em casa.

sábado, 26 de maio de 2012

Autorretrato (Salgado Maranhão - 1953)

passei a infância
correndo atrás do sol,
pés descalços pelos matagais
por entre cascavéis e beija-flores.
cedo aprendi o milagre
das sementes: minha mãe
abria a terra
e eu semeava os milharais,
os campos de arroz e as colheitas.

- vim crescendo com a sarça hostil
sob a memória de crânios
sem nome.

quanto à poesia,
foi se alojando aos poucos
nos latifúndios do coração,
e se tenho as mãos
especializadas na confeitaria
das palavras,
vem da herança natural do ofício
de criar e engravidar as plantas.

Predicado do Sujeito (Salgado Maranhão - 1953)

tem que haver uma mudança
na gramática,
uma mudança substancial,
que não é direito
um verbo irregular
passar a ser sujeito no plural.
deve haver um jeito
de romper os elos anormais
entre o agente da passiva
e as conjunções causais.
deve haver uma conjugação geral
de todo o pessoal interessado
na situação
da posição dos verbos na oração.
que não é direito
um verbo no passado ser sujeito.
não duvido até que possa haver
uma manifestação total
dos verbos regulares,
visando a uma transformação gramatical
no futuro do presente tempo estado,
que não é normal
um sujeito só com tantos predicados.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sentença (Salgado Maranhão - 1953)

faz muito tempo que eu venho
nos currais deste comício,
dando mingau de farinha
pra mesma dor que me alinha
ao lamaçal do hospício.
e quem me cansa as canelas
é que me rouba a cadeira,
eu sou quem surfa no trilho
e ainda paga a passagem,
eu sou um número ímpar
pra sobrar na contagem.

por outro lado, em meu corpo,
há uma parte que insiste,
feito um caju que apodrece
mas a castanha resiste,
eu tenho os olhos na espreita
e os bolsos cheios de pedras,
eu sou quem não se conforma
com a sentença ou desfeita,
eu sou quem bagunça a norma,
eu sou quem morre e não deita.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Tchau número três (Mario Benedetti - 1920- 2009)

Te deixo com tua vida
teu trabalho
tua gente
com teus crepúsculos
e teus amanheceres

semeando tua confiança
te deixo junto ao muro
derrotando impossíveis
segura sem seguro

te deixo em frente ao mar
decifrando-te sozinha
sem minhas perguntas às cegas
sem minha resposta rota

te deixo sem minhas dúvidas
pobres e moribundas
sem minhas imaturidades
sem minha experiência

mas tampouco acredites
cegamente em tudo
não acredites nunca acredites
neste falso abandono

estarei onde menos
esperas
por exemplo
numa árvore idosa
de obscuros balanceios

estarei num distante
horizonte sem horas
na marca do tato
na tua sombra e na minha sombra

estarei repartido
em quatro ou cinco pivetes
desses que tu olhas
e em seguida te seguem

e oxalá possa estar
no teu sonho na rede
esperando teus olhos
e contemplando-te.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Os sonâmbulos (Alexei Bueno - 1963)

Eles caminham nos telhados,
Nas balaustradas, nas varandas,
Dedos à frente, olhos cerrados,
Beiram o vácuo dos dois lados
Sobre os beirais e as platibandas.

Como ímãs ébrios seus sapatos
Burlam a queda, e, no seu dia
Onde há um sol negro, chutam gatos
Ao ar, pisando os pobres matos,
mechas da velha alvenaria.

Não estão mortos nem são vivos,
Cruzam por urbes de ninguém
Onde há milhões. Hirtos, esquivos,
Sabem, idênticos e altivos,
O que é real, e o certo e o bem.

Senhores da hora e da verdade,
Babam no abismo, engolem moscas,
Marcham pela única cidade
Que existe, em glória e majestade,
Com as reviradas íris foscas.

Huis Clos (Antonio Cicero - 1945)

Da vida não se sai pela porta:
só pela janela. Não se sai
bem da vida como não se sai
bem de paixões jogatinas drogas.
E é porque sabemos disso e não
por temer viver depois da morte
em plagas de Dante Goya ou Bosh
(essas, doce príncipe, cá estão)
que tão raramente nos matamos
a tempo: por não considerarmos
as saídas disponíveis dignas
de nós, que em meio a fezes e urina,
sangue e dor nascemos para lendas,
mares, amores, mortes serenas.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Um retrato (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

Eu mal o conheci
quando era vivo.
Mas o que sabe
um homem de outro homem?

Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo. Para quê?

Não são muitas as lembranças
que dele guardo: a aspereza
da barba no seu rosto quando eu o beijava
ao chegar para as férias;
o cheiro de tabaco em suas roupas;
o perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido
até soltar-se (alívio!)
na risada.

Falava pouco comigo.
Estava sempre
noutra parte: ou trabalhando
ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo
(tantas vezes!) de viagem.

Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia
e o trouxe para a minha casa (que infinitos
os cuidados de Dora com ele!)
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz
contra a dor, o desconforto,
a inutilidade forçada, os negaceios
da morte já bem próxima.

Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso
imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.

Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai,
o que é estar vivo.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Cantada (Ferreira Gullar - 1930)

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira da República Dominicana

Olha,
você é tão bela quanto o Rio de Janeito
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

domingo, 20 de maio de 2012

Res Cogitans (Reynaldo Damazio - 1963)

Penso, logo minto.
No que vejo, incerto,
reside o infinito,
pesadelo sem objeto.

E se afino o tato,
mesmo sem afinco,
o real me escapa,
paródia de labirinto.

Atônito entre nomes
e números, imagens
que me consomem,

sei que esta margem,
sua textura informe,
traduz outra paisagem.

Epigrama com muro (Mario Benedetti - 1920 - 2009)

Entre ti e mim / sicrana minha / se levantava
um muro de berlim feito de horas desertas
saudades fugazes

tu não podias me ver porque montavam guarda
os rancores alheios
eu não podia te ver porque me ofuscava
o sol dos teus presságios

mesmo assim me perguntava constantemente
como serias na tua espera
se abririas por exemplo os braços
para abraçar minha ausência

mas o muro caiu
foi caindo
ninguém soube o que fazer com os mal-entendidos
houve quem os juntou como relíquias

e de repente uma tarde
te vi sair de um buraco de névoa
e passar ao meu lado sem me chamar
nem me tocar nem me ver
e correr ao encontro de outro rosto
cheio de calma cotidiana

outro rosto que talvez ignorava
que entre ti e mim existia
tinha existido
um muro de berlim que ao nos separar
desesperadamente nos juntava
esse muro que agora é só escombros
mais escombros
e esquecimento.

sábado, 19 de maio de 2012

Fala (Orides Fontela - 1940 - 1998)

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Meditação da noite (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Noite de lanças e estandarte azul,
Não vertes sobre a terra desconforme
O teu bálsamo antigo de sossego:
Vem antes o veneno da tua esfera.

Que destruições geraste no teu ventre
Enquanto os homens se velavam a face!
Tempo de experiência e expiação,
O incenso da matéria se respira

Nas tuas arcadas nuas e rochosas.
Somos agora a raça clandestina
Que, noite hostil, ainda não pudeste

Das dobras dos teus panos remover:
Ululantes erramos pelo mundo,
Conduzindo nossa morte corporal.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Solau à moda antiga (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Senhora, eu vos amo tanto
Que até por vosso marido
Me dá um certo quebranto...

Pois que tem a gente inclusa
No mesmo alastrante amor
Pessoal, animal ou cousa
Ou seja lá o que for,
Só porque os banha o esplendor
Daquela a quem se ama tanto?
E sendo desta maneira,
Não me culpeis, por favor,
Da chama que ardente abrasa
O nome de vossa rua,
Vossa gente e vossa casa

E vossa linda macieira
Que ainda ontem deu flor...

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Noturno (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Este silêncio é feito de agonias
E de luas enormes, irreais,
Dessas que espiam pelas gradarias
Nos longos dormitórios de hospitais.

De encontro à Lua, as hirtas galharias
Estão paradas como nos vitrais
E o luar decalca nas paredes frias
Misteriosas janelas fantasmais...

Ó silêncio de quando, em alto-mar,
Pálida, vaga aparição lunar,
Como um sonho vem vindo essa Fragata...

Essa Nau que não demanda os portos!
Com mastros de marfim, velas de prata,
Toda apinhada de meninos mortos...

terça-feira, 15 de maio de 2012

Antes que o sol se ponha (Ivan Junqueira - 1934)

Antes que o sol se ponha e seja tarde,
e o azul crepuscular me deite a garra,
e eu, nu, retorne à terra sem fanfarra
ou mortalha que o corpo me resguarde;
antes que murche a pétala na jarra,
e eu cale, para sempre, sem alarde,
e tudo o que me coube, por covarde,
não mais recorde a relva que se agarra
às últimas raízes da existência;
antes que eu cerre os olhos e adormeça,
e em minhas próprias células esqueça
as chamas que me ardem na consciência;
antes que a luz regresse e que amanheça,
e eu a mim mesmo já não me conheça.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O nome (Orides Fontela - 1940 - 1998)

A escolha do nome: eis tudo.

O nome circunscreve
o novo homem: o mesmo,
repetição do humano
no ser não nomeado.

O homem em branco, virgem
da palavra
é ser acontecido:
sua existência nua
pede o nome.

Nome
branco sagrado que não
define, porém aponta:
que o aproxima de nós
marcado do verbo humano.

A escolha do nome: eis
o segredo.

domingo, 13 de maio de 2012

Poemenina dos olhos (Elisa Lucinda - 1958)

É claro que ando pelas ruas
e que há mirada nisso enquanto isso.
Na carona do meu rosto
na aba do meu gosto
vão os olhos de poeta
os olhos que acordam meu dia
são de poeta
os que sonham meus sonhos
são de poeta
os que se enfiam nas entrevistas
dos coletivos
são de poeta
os que desenham ilusões
e fazem outros planos
são, todos são, tudo são.
Meu erro, meu nervo, meu tesão
funciona poesia sem decidir isso.
Esse olhar que habita meus olhos
nesta mania de chegar antes de mim
e do meu corpo, a todos os lugares,
é seguramente de poeta.
Condenado ao verso
como um fiscal da lida
impeço que a vida passe
como se pudesse não ser percebida.

o não decifrador (Geraldo Carneiro - 1953)

tudo que escrevo foi talvez escrito
ou sonhado por outro antes de mim.
minhas metáforas não me pertencem.
a língua me sugere seus enigmas,
o que me cabe é apenas recifrá-los
como um decifrador a quem não fosse
revelada a chave do código.
a desrazão me inspira
                                   e ao meu redor
vou inventado o mundo em que me amparo.
me falta o credo para chamar de alma
aquilo que me anima.
no entanto sei que há vozes aqui dentro.

sou tão medíocre quanto qualquer ser
que habite nesta esfera.
sei que o ar é rarefeito
feito de um sopro cuja cor me escapa
embora a flor se ofereça no meu sonho

sábado, 12 de maio de 2012

navegações (3) (Geraldo Carneiro - 1952)

a vida me conduz ou vice-versa,
não me interessa quem é o provedor
do meu caminho,
se alguma parte de mim parte ou fica.
sei que há sempre uma impressão
                                            de chegada
e de partida,
que a minha dor não encontrou o espelho
em que mirasse a própria face.
tudo que vivo sempre me ultrapassa,
e vou me desvendando passageiro.
o que restar de mim será uma flor,
a promessa desfeita de um amor
que era menor do que sonhei,
meu reinado desfeito feito pó
e só na solidão serei meu rei.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O sal da língua (Eugénio de Andrade - 1923 - 2005)

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Fui eu (Olga Savary - 1933)


A face do poeta
Fui eu, sou a face pálida
e ocre, o firme olhar fixo
do olho à espreita, olho que vê,
duro como pedra, mole como dúvida,
certa compaixão, algum espanto,
olhar que se expõe e se revela,
pulsar de coração no crânio lívido
à espera da harmonia universal,
tentativa de semear eternidades
no que em meio à solidão do homem
e na vida é coisa breve e fluida,
esperança de melhores dias vindos
de deuses que aprimorem os seres
sonhando uma melhor humanidade.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Insônia (Adelmo Oliveira - 1934)

Avança madrugada vizinha
O sono não é o teu vigia
- O sono não chegou às pupilas

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

Avança madrugada sozinha
O frio corta a pele matutina
- Gritam sapos que saltam tablados
Lá nas baixadas do Rio Sapato.

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

O vento de açoite está uivando
Uiva nas esquinas
madrugadas
Com medo de lembranças que batem
- Cantigas antigas de ninar.

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

Avança madrugada vizinha
- Cigarro
Joguei pelas cortinas
Das sombras da memória que vinha
Levando pedaços desta vida.

A chuva é uma vassoura fina
Varrendo por cima dos telhados.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A morte absoluta (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

domingo, 6 de maio de 2012

Amor bastante (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

sábado, 5 de maio de 2012

É preciso não esquecer nada (Cecília Meireles - 1901 - 1964)

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos severos conosco,
pois o resto não nos pertence.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Itabuna (Cyro de Mattos - 1939)

Encontro-me no verde de teus anos,
Como sonho menino nos outeiros,
Afoitas minhas mãos de cata-ventos
Desfraldando estandartes nessas ruas.

São meus todos esses frutos maduros:
Jaca, cacau, mamão, sapoti, manga.
E esta canção que trago na capanga
É o vento soprando nos quintais.

Quem me fez estilingue tão certeiro
Nos verões das caçadas ideais?
Quem nesse chão me plantou com raízes

Fundas até que me dispersem ventos
Da saudade e solidão? Ó poema!
Ó recantos! Ó águas do meu rio!

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A chegada (Cyro de Mattos - 1939)

Por aqui desembarcam corações,
Ondas solitárias da humana saga,
Auroras de marujas vastidões,
Despenhos de flama em imota vaga.

Enfim, niveladas as emoções,
O que existe no vórtice dessa onda?
Outros ventos ao largo nas canções
Ou o peso desse ar que a tudo traga?

Para a pesca de peixes despojados
De música, cores e nado solto,
Gaivotas escolheram esse porto.

Sombras falam de gestos afogados.
Se nas vagas de além somos levados,
Quem me ouve nesse grito, nesse pranto?

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Amanhecimento (Elisa Lucinda - 1958)

De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.

terça-feira, 1 de maio de 2012

O trabalho (Ferreira Gullar - 1930)


Venho dos tempos mais remotos, venho
Da primeira manhã no céu surgida.
Sou vida. Vivo. E em minha vida tenho
Toda a razão primordial da vida!

Ajudo a todos, na fragosa lida
Pela existência; e com fervor me empenho,
Dando aos que lutam, bálsamos e guarida,
e enobrecendo o mais humilde engenho!

Deixo um lastro de luz por onde passo...
Gera mundos a força do meu braço,
Não há poder, na terra, a que me dobre.

Sou a maior das Doações Divinas:
- Se habito nas imensas oficinas,
Moro na tenda do ferreiro pobre!