quarta-feira, 31 de outubro de 2012

volta (Alice Sant'Anna - 1988)

esses dias de tédio
em que se tem tempo –
tempo só se arranja quando
não se tem
quando sobra desse jeito
a gente repete os assuntos
o ônibus chega rápido
e os trajetos ficam curtos
– de repente
readaptar-se à própria casa
como foi lá? bom
rever os gigantes, os mínimos
dedicar a eles igual dose
de carinho ou indiferença
usar as roupas que ficaram
meses dobradas no armário
com cheiro de sachê
nessas tardes sem compromisso
esticadas com rolo de macarrão
tudo é longo
nada dura

terça-feira, 30 de outubro de 2012

cinco nove dois (Alice Sant'Anna - 1988)

daqui não ouço estrelas
vejo seus castanhos na hora do rush
vermelhos, antes cabelos
por causa da luz néon
te chamaria pra entrar
num café, curso de dança
de salão, mas desisto
e me arrependendo nessa hora
e meia de trânsito: botafogo
não anda, está estagnado
como uma veia que não flui
nesse cinco nove dois
são rostos estranhos, penso que deveria
ter um livro à mão, cantar
aquela música que aprendi
e sei de cor
mas de repente estou dormindo
ou foi um cochilo
entre alguns quarteirões
foi um poema
que nasceu torto, amputado

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Ouço uma fonte (Augusto Frederico Schmidt - 1906 - 1965)

Ouço uma fonte
É uma fonte noturna
Jorrando.
É uma fonte perdida
No frio.

É uma fonte invisível.
É um soluço incessante,
Molhado, cantando.

É uma voz lívida.
É uma voz caindo
Na noite densa
E áspera.

É uma voz que não chama.
É uma voz nua.
É uma voz fria.
É uma voz sozinha.

É a mesma voz.
É a mesma queixa.
É a mesma angústia,
Sempre inconsolável.

É uma fonte invisível,
Ferindo o silêncio,
Gelada jorrando,
Perdida na noite.
É a vida caindo
No tempo!

domingo, 28 de outubro de 2012

Quando eu morrer (Augusto Frederico Schmidt - 1906 - 1965)

Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo,
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas.
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas...

Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda,
Rolarão sempre, alvas de espuma
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de acender-se
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam as frutas
continuarão a ser doces e boas.

Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos.
E hão de esquecer-se do meu caminho silencioso entre eles,
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão.
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma.
Porque nada sou, nada conto e nada tenho.
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.

Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
Quando eu morrer...

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Dedicatória (Mariana Ianelli - 1979)

Para Julieta, in memoriam

Neste tempo já não te brindavam,
não vinha o amor de dois olhos
conformando sequer tua saída.
Não se viu uma criança
para corrigir teus receios,
acobertá-los com uma brincadeira.
Na revolta da agonia tiveste
alucinações viajantes
e te cansaste da espera material
tão ríspida, tão tão prolongada.
Não vimos nada, nem teu enlevo
ou a certeza do teu desapego.
A noite estava marcada,
uma essência pairou sobre a cama,
alguém (que não vimos)
trouxe para o quarto uma realidade enternecida.
...Tu entraste.
Foste com tua simpatia,
a memória de súbito acesa.
E porque não vimos qual o teu rumo
um trauma nos acometeu,
desgraçamos tua retirada.
Arrependidos, nós.
Teu corpinho era uma cidade perdida,
com a desolação que deixa
uma cidade perdida, a regredir
só pela paciência escorregadia de um século.
Pensamos : foste quieta para a terra.
Não houve quem assentisse na tua canção na noite,
uma esperança sublimada.
Foste, airosa, rodeada de violetas,
minha pequenina eleita.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Fazer silêncio (Mariana Ianelli - 1979)

Seja o ar da montanha
Para o sono dos cordeiros.

Neve recém-caída,
Puríssimo grão de açúcar,
Duna sob a lua cheia.

Tal qual o fruto da terra
Que se dá a comer no sexto dia.

Jazida inexplorada,
Casa sem mobília,
Vácuo do não-dito,
Êxtase nunca interrompido.

Tal como o olho cego
Que percebe o invisível,
Gema de opalina.

Seja o restante, o indiviso.

Magma transmudado em cinza,
Fóssil na noite da cripta,
O vaivém milenar da água viva,
Líquido momento de sentir
E estar sozinho.

Fazer silêncio.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Acalanto para Cassiana (Mariana Ianelli - 1979)

Não coube na tua infância
tanta solenidade.
Ficou proibida a graça
da caminhada ansiosa
dos olhos apertados sob o sol
do amor espalhado pelos lados
num rebuliço ingênuo.
Alguém acasalou as tuas mãos
no peito desabrochado
quando reuniste contigo
teus pais e todos os filhos
para o legado da tua virgindade.
Talvez céticos
talvez tomados de feitiço
aceitamos te possuir
te fazer crescer em nós,
distribuida com sigilo
defendida, oculta,
uma dura saudade.
Atravessaste o segredo da pedra
que permite o estio, a borrasca
e a flor.
Mas, amiga,
renascemos teu riso
enquanto são anos de sentimento
enquanto ainda
nos surpreendemos com vida.

o livro dos espantos (Geraldo Carneiro - 1952)

se eu tivesse um mínimo de metafísica
inventaria um culto em honra de você
escreveria o livro dos espantos
o livro dos espelhos e espaventos
depois proclamaria o meu amor
aos quatro cantos, aos quatro ventos
(então talvez os deuses desatassem
as cordas discordantes deste mundo
e o cósmico se convertesse em cômico
e os anjos desembarcassem do céu
tocando os trambones do caos, a luz
virasse treva, o tempo andasse ao revés
até a véspera da primavera
com todos os ainda não seres bailando
nas marés anteriores ao mar)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Gazel do amor desesperado (Frederico Garcia Lorca - 1898 - 1936)

A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Ma eu irei,
inda que um sol de lacraias me coma a fronte.

Mas tu virás
com a língua queimada pela chuva de sal.

O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Mas eu irei,
entregando aos sapos meu mordido cravo.

Mas tu virás
pelas turvas cloacas da escuridão.

Nem a noite nem o dia querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.


* Poema traduzido por Willian Agel de Melo

fotografia do verão (Geraldo Carneiro - 1952)

estou vivendo os dias mais felizes.
invejo a arquitetura que se inventa
ao meu redor como se não fosse eu.
talvez seja só outra quimera
movida pelos deuses do verão
com que sonhava nos áureos tempos
negros
em que construí minha solidão.
hoje me habito em companhia dela,
e amando sempre volto e me revolto,
aceito a paz e a guerra,
até que meus navios se dispersem
no adeus da linha do horizonte.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Essa pavana (Jorge de Lima - 1895 - 1953)

Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.

domingo, 21 de outubro de 2012

Inaudito (Salgado Maranhão - 1953)

o que busco
entre abismos e cascalhos
é o imanente ritmo

linguagem muda
em vídeo-vida
água queimando fogo

(perguntas que se contestam
certezas que se transvertem
vozes que conspiram
nas coisas inúteis)

o que busco
em minha reza onírica
está no nome e é nômade
- o inaudito dito.

sábado, 20 de outubro de 2012

Saudade (Vicente de Carvalho - 1866 - 1924)

Belos amores perdidos,
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecer-vos
Fora demais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio,
— Amor, desejo, esperança...
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.

Roseira cheia de rosas,
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:

Por me não perder, perdi-te:
Mas mal posso assegurar-me,
— Com te perder e ganhar-me,
Se ganhei, ou se perdi...

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Ânsia cruel (Vespasiano Ramos - 1884 - 1916)

Ninguém mais do que tu saberá quanto
Padeço, agora! e, em lágrima, advinha
A minh’alma apagar-se, neste pranto,

Beatriz! Alma em flor! Suave encanto,
Que me salvar, pensei, dos altos, vinha:
O quanto peno, o quanto sofro, enquanto
Imagino que nunca serás minha!

Foram, por ti, as lágrimas que os olhos
Meus derramaram! só por ti, somente
Que minh’alma, do Amor contra os escolhos,

Há de, convulsa, soluçar, um dia,
A derradeira lágrima pungente
E o derradeiro grito de agonia!

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Os versos que te fiz (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Vaidade (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade !

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo ! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade !
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita !

Sonho que sou Alguém cá neste mundo ...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada !

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho ... E não sou nada! ...

terça-feira, 16 de outubro de 2012

O espelho da entrada (Constantinos Caváfis - 1863 - 1933)

À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo,
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.

Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atleta diletante)
estava ali com um pacote.

Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.

Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.

Mas o antigo espelho, que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.


* Traduzido pelo poeta brasileiro José Paulo Paes

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Trama (Carlos Machado - 1951)

E se o amor - essa trama de pronomes
oblíquos e possessivos, frases feitas
e desatinos - adormecesse sereno
à sombra dos relógios? E se então

com o tecido a salvo e o fogo contido,
fosse possível abrandar o calor
das fornalhas e o fragor das batalhas,
quanto de sossego restaria? Quanto

de azul viria cortejar o amanhecer
do sábado? Quanto fermento seria
necessário para compor o pão de cada

dúvida? Quanto de amor, ele mesmo
- esse bicho sagaz e sangrento -, ficaria
para contar a história dos desatinos?

domingo, 14 de outubro de 2012

Antimétodo (Sebastião Uchôa Leite - 1935 - 2003)

Desoriento-me
Sem qualquer
Método
Ou sem
Qualquer fim
Vou e não vou
Mas vou
Caio sem qualquer
Alarde
O que é
E não é: mas é
Desorientar-me
É meu antimétodo

Depois (Ruy Espinheira Filho - 1942)

Depois, saiu andando pela tarde.
Alguém cantava, longe, acalentando
os escombros do ocaso. E até onde
ele chegara se chamava vida.
Assim pensou, enquanto ouvia a doce
canção da Ausente, de onde renasciam
borboletas, regatos, girassóis
e cães ladrando em quintais antigos.
Olhou (andando, andando) o céu cinzento.
O que restava? Aquilo. As tantas horas
mortas, mortas palavras, morto chão
do amor, dispersos hálitos de alma,
e morta a infância, e tudo morto, morto
- mas persistindo, ali, com uma pátina
inelutável, e se chamava vida.
E ele parou, sentindo-se. E, repleto,
depois saiu andando pela tarde.

sábado, 13 de outubro de 2012

Auri Sacra Fames (José Nascimento Félix - 1946)

viver um dia com normalidade
é ter o olhar cubista, no sentido
que picasso lhe dá. é que são várias
as formas de rever os dias idos.
o olhar é feito sempre de passados.
o tempo é longo na serenidade.
ver multifacetadamente os dias
sem adjectivos é o poder dos fracos,
e os outros, bem, os outros não se importam
com a substância temporal da vida.
carpe diem já o disse horácio
nas odes. mas virgílio, cidadão,
conhecendo pois da fatalidade
de roma e que do mar viria eneias,
sabia bem que da fome execrável
do ouro também se vive cada dia.
a mim basta-me o olhar sem mais palavras
do indivíduo ou de uma multidão
a tentar augurar o seu futuro
enquanto os corvos grasnam sobre os restos
do império apodrecido pelos séculos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Poema feminino (Ana Paula Inácio - 1966)

vim para a cidade servir
servir o amor
e não uma feijoada fria
mas menina e moça
temerária
afastei-me das palavras sábias da avó
que não me desaconselhavam nem a floresta, nem os lobos
mas a cidade e os homens
e na cesta acumulou a dissimulação
que eu utilizaria como uma capa
mas enchi a cesta de morangos silvestres
queria servir com as palavras claras
do tempo dos reis e das princesas
mas o homem a quem amei
com as palavras, os cozinhados, o sexo
achou-os pesados, indigestos
como aquelas que encheram a barriga do lobo
da história que me tem servido de atalho
ai avozinha sempre deveria ter usado a capa
o homem sente a serva como rainha
e as palavras balas certeiras contra a caixa torácica.
novidades, novidades, é que não há caçador.

Autorretrato II (Ana Paula Inácio - 1966)

Vivo com a crença estranha
de que nasci morta
e fiz a opção precoce
pelas ruas escuras
de la Calle de l’Amargura de Cáceres
à de los Tigres de Martín del Castañar.
Parasita de quem me deita a mão,
fantoche presa por fios,
como se foram tubos
de alimentação artificial,
vivo da generosidade alheia
de quem me dá poesia
por pão ou rosas, Salvé rainha,
nascera eu a 19 de Maio de 1980
e poderia chamar Mário de Sá-Carneiro, meu doce irmão.
Nasci mesmo em 1966
aos doze dias do mês de Junho
sem par,
filha única
«tenho minha casa para olhar»

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Cena Urbana (Salgado Maranhão - 1953)

portaria de hospital
e papos longos sobre enfermos
e agressões.

um cão anônimo
lambe o sangue no cimento cru.

corpos vermelhos hibernam
sobre macas

e gritos súplices
velam a noite
por detrás das rixas.

na boca da urna
a morte agenda seus candidatos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O amor e depois (Mariana Ianelli - 1979)

Era esperado que aos poucos
Definhasse, fosse desaparecendo
Naturalmente levado pelo sono.
Era suposto que por abandono
Morresse -

E não teria o vento nenhum sentido
De ventura, seria apenas
A passagem de uma hora branca,
Entre outras tantas,
Para um coração manso
Que já nada espera nem recorda -

Como se o tempo não devorasse
Também o desconsolo
E dele fizesse exsudar um leve perfume,
Como se não arrastasse
Cada corpo uma penumbra,
Como se fosse possível
Em vida a paz dos mortos.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Elefante (Francisco Alvim - 1938)

O ar da tua carne, ar escuro
anoitece pedra e vento.
Corre o enorme dentro do teu corpo
o ar externo
de céus atropelados. O firmamento,
incêndio de pilastras,
não está fora - rui por dentro.
Reverbera no escuro o brilho baço
do túrgido aríete
com que distância e tempo enfureces.

Teu pisar macio, dançarino,
enobrece os ventres frios,
femininos.

A tua volta tudo canta.
Tudo desconhece.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Canção (Emílio Moura - 1902 - 1971)

Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.

domingo, 7 de outubro de 2012

A uma senhora que me pediu versos (Machado de Assis - 1839 - 1908)

Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou tem assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.

sábado, 6 de outubro de 2012

O poeta ficou cansado (Adélia Prado - 1935)

Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rotas que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
Olha aqui, cidadão,
repara, minha senhora,
neste canivete mágico:
corta, saca e fura,
é um faqueiro completo!
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha,
nem vendedor nem escravidão,
me deixa fazer Teu pão.
Filha, diz-me o Senhor,
Eu só como palavras.

O funâmbulo (Paulo Henriques Britto - 1951)

Entre a palavra e a coisa
o salto sobre o nada.

Em torno da palavra
muitas camadas de sonho.
Uma cebola. Um átomo.
Uma cebola ávida.
Entre uma e outra camada
nada.

Saltam sobre o abismo
tomam o vazio de assalto.
De píncaro a píncaro
projetam-se, impávidas,
epifânicas, esdrúxulas,
teimosas e dançarinas.

O salto é uma dança,
a teima é uma doença.
Em torno da cebola
o ar é tenso de lágrimas.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Devoração da paisagem (Duda Machado - 1944)

À esquerda, o morro. Logo
adiante casas, o arvoredo
vário. Um pouco abaixo.
a estrada, o riacho.

Cores que ultrapassam distâncias,
sugestões de textura
entre vegetação e vento;
o olhar que erra e se prolonga
em busca de sua moradia.

De algum lugar,
distante das retinas,
a fera irrompe
e de pronto,
a paisagem se contrai.

Já é presa,
repasto de significados,
com que a fera
realimenta a sua fome.

Sempre (Guimarães Passos - 1867 - 1909)

Se eu não te disse nunca que te amava,
Perdoa-me, mulher, sou inocente
Eu vivia de amar-te unicamente,
Unicamente em teu amor pensava.

Se os meus lábios calavam-se, falava
O meu olhar apaixonadamente,
Porque, se o lábio oculta o que a alma sente,
Conta o olhar o que o lábio não contava.

Meu rosto triste, meu cismar constante,
Meu gesto, meu sorrir, tudo exalava,
Tudo exprimia um coração amante.

Em tudo o meu amor se denunciava,
Via-me em toda a parte e a todo o instante,
Se estavas longe, se comigo estava.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Meu cinema (Dora Ribeiro - 1960)

o plano está bastante
inclinado
e nós estamos lá
simples e
molhados

(há ovelhas à volta
e as árvores são
esculturas feitas de
ventania)

o chão
olha debaixo
da minha saia

e você vê ali
o céu descoberto

eu finjo distração
e morro por segundos
nos seus braços

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Soneto 426 Torresmista (Glauco Mattoso - 1951)

Não basta a ditadura que já dura
e vem a ditadura antigordura!

Saímos do regime militar,
caímos no regime do regime.
Censuram-nos até no paladar!

Trabalho, horário, imposto, compromisso.
Orgasmo não se tem como se quer.
Só sobra o bom do garfo e da colher,
e os nazis nariz metem até nisso.

Maldita seja a mídia, sempre a dar
Espaço à medicina que reprime!
Gestapo da "saúde" e "bem-estar"!

Resista! Coma! Abaixo a ditadura!
A luta tem um símbolo: FRITURA!

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Amor por encomenda (Claufe Rodrigues - 1956)

Eu não sei como escrever
Poema de amor por encomenda
É como levar merenda para o recreio
Tendo na cantina da escola
Toda sorte de iguaria
Ou viver de renda
Enquanto o verdadeiro vagabundo vadia
Ou virar lenda
À custa da miséria alheia.
Por encomenda se faz comício
Propaganda, missa.
Por encomenda, você troca um dia de bravura
Por um mês de preguiça.
Mas eu sou servo do verso
Uma espécie de almocreve
Sem destino ou senhor.
Deste modo serei breve
Não se ofenda:
Este poema não se fará por encomenda
Mas por amor.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O crime perfeito (Jacinto Fabio Corrêa - 1960)

Partiu sem deixar
sinal ou vestígio
como o ladrão que para roubar
não precisa acender as luzes.

A casa era toda sua
o resto de coração também
mas morava tão dentro do silêncio
que pouco ou nada consentia.

A única peça esquecida
- uma camisa xadrez -
hoje é toalha de mesa
para a refeição diária.

Ainda ouço a porta se abrir.
Mas é apenas o ladrão.