sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Romântico (Eucanaã Ferraz - 1961)

Amar noutro mundo
que não este.
Poder equilibrar – perfeito –
um prato sobre um alfinete.
Equilibrar um livro, uma casa,
sobre um alfinete.
Outro mundo. Sua maquete:
palavra e cavalete.
Outro: este, mas
em falsete. Sete vezes
mais belo, mil mais leve.
Setecentos o mesmo gesto – amar –
e, no entanto, não se complete.
Um rio que se repetisse,
um Tibete ameno, translúcido – e seu fundo,
em que não se chegasse,
era jamais a morte.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Assim como não podemos (Roberto Juarroz - 1925 - 1995)

Assim como não podemos
sustentar por muito tempo um olhar,
tampouco podemos sustentar por muito tempo a alegria,
a espiral do amor,
a gratuidade do pensamento,
a terra em suspensão do cântico.

Não podemos nem sequer sustentar por muito tempo
as proporções do silêncio
quando algo o visita.
E menos ainda
quando nada o visita.

O homem não pode sustentar por muito tempo o homem,
nem tampouco o que não é o homem.

E ainda assim pode
suportar o peso inexorável
do que não existe.

* Poema traduzido por Pedro Gonzaga

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Já me matei... (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Soneto da busca (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Eu quase te busquei entre os bambus
para o encontro campestre de janeiro
porém, arisca que és, logo supus
que há muito já compunhas fevereiro.

Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também, meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.

Avançada no tempo, te perdeste
sobre o verde capim, atrás do arbusto
que nasceu para esconder de mim teu busto.

Avançada no tempo, te esqueceste
como esqueço o caminho onde não vou
e a face que na rua não passou.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Digamos que você tenha sorte (Pedro Gonzaga)

digamos que você tenha sorte
e encontre alguém capaz de te amar
ainda que as razões para esse amor
pareçam mais erradas do que certas

digamos que você tenha essa sorte
e que a ela se conjugue um tempo de paz
em que um queira o que o outro quer
na hora zero e dez mil horas depois

digamos, para beneficio da poesia
que essa sorte também possa pavimentar
uma estrada sem desvios nem rotatórias
que lhes permita andarem juntos
como andaram as criaturas recém saídas da arca

e que um delírio (dolorosamente necessário)
essa mesma sorte alastre sempre
em seus corpos imperfeitos
ao mero roçar das peles
o fogo intacto dos deuses

digamos enfim, que essa sorte descomunal
nos sorria uma vez na vida (sou um otimista)
persistirá, contudo, o problema
de reconhecê-la, aceitá-la, banhá-la, vesti-la
dar a ela o pão com manteiga matinal

por essas e outras
quando alguém me diz-
ah, o amor é simples
mal contenho a vontade
de cuspir-lhe na cara

domingo, 25 de novembro de 2012

Não é o amor quem morre (Luis Cernuda - 1902 - 1963)

Não é o amor quem morre,
somos nós mesmos.

Inocência primeira
Abolida em desejo,
Esquecimento de si mesmo em outro esquecimento,
Ramas entrelaçadas,
Por que viver se desapareceis um dia?

Só vive quem vê
Sempre diante de si os olhos de sua aurora,
Só vive quem beija
Aquele corpo de anjo pelo amor levantado.

Fantasmas da pena,
À distância, os outros,
Os que esse amor perderam,
Como uma lembrança em sonhos,
Percorrendo as tumbas
Outro vazio estreitam.

Por lá vão e gemem,
Mortos em pé, vidas por trás da pedra,
Golpeando a impotência,
Arranhando a sombra
Com inútil ternura.

Não, não é o amor quem morre.


* Tradução de Pedro Gonzaga

sábado, 24 de novembro de 2012

Teus olhos entristecem (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.

Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O prisioneiro (Ferreira Gullar - 1930)

Ouço as árvores
lá fora
sob as nuvens

Ouço vozes
risos
uma porta que bate
É de tarde
(com seus claros barulhos)
como há vinte anos em São Luís
como há vinte dias em Ipanema

Como amanhã
um homem livre em sua casa

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Boato (Ferreira Gullar - 1930)

Espalharam por aí que o poema
é uma máquina
ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pele
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.

Mas como, gente,
se estamos em janeiro de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos já me surgem no pentelho?
Como ser neutro se acabou de chover e a terra cheira
e o asfalto cheira
e as árvores estão lavadas com suas folhas
e seus galhos
existindo?
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no país
e eu estou infeliz?

Ora eu sei muito bem que a poesia
não muda (logo) o mundo.
Mas é por isso mesmo que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

De tanto amor a minha vida tingiu-se de violeta (Pablo Neruda - 1904 - 1973)

De tanto amor a minha vida tingiu-se de violeta
e andei de senda em senda como as aves cegas
até chegar à tua janela, minha amiga:
tu sentiste um rumor de coração partido

e então das trevas subi ao teu peito,
sem ser e sem saber fui à torre do trigo,
surgi para viver nas tuas mãos,
saí do mar para a tua alegria.

Ninguém pode contar o que te devo, é evidente
o que te devo, amor, e é como uma raiz
nascida na Araucânia o que te devo, amada.

É sem dúvida estrelado tudo o que te devo,
e o que te devo é como o poço duma zona silvestre
onde o tempo guardou relâmpagos errantes.

Voltar (Jaime Gil de Biedma - 1929 - 1990)

Minha lembrança eram imagens,
no instante, de ti:
essa expressão e um matiz
dos olhos, algo suave

na inflexão da voz,
e teus bocejos furtivos
de lebréu que maldormiu
a noite em meu quarto.

Voltar, passados os anos,
à felicidade
- para se ver e recordar
que eu também mudei.

* Poema traduzido por Pedro Gonzaga

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Não voltarei a ser jovem (Jaime Gil de Biedma - 1929 - 1990)

Que a vida avançava a sério
alguém começa a perceber mais tarde
- como todos os jovens, eu vim
a levar a vida adiante.

Deixar marca queria
e marchar entre aplausos
- envelhecer, morrer, eram tão somente
as dimensões do teatro.

Mas o tempo passou
e a verdade desagradável assoma:
envelhecer, morrer,
é o único argumento da obra.

* Poema traduzido por Pedro Gonzaga

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Canção do primeiro ano (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Anjos varriam morcegos
Até jogá-los no mar.

Outros pintavam de azul,
De azul e de verde-mar,
Vassouras de feiticeiras,
Desbotadas tabuletas,
Velhos letreiros de bar.

Era uma carta amorosa?
Ou uma rosa que abrira?
Mas a mão correra ansiosa
- Ó sinos, mais devagar! -
À janela azul e rosa,
Abrindo-a de par em par.

Ó banho de luz, tão puro,
Na paisagem familiar:
Meu chão, meu poste, meu muro,
Meu telhado e a minha nuvem,
Tudo bem no seu lugar.

domingo, 18 de novembro de 2012

Autobiografia (José Leite Netto - 1973)

no caminho certo das formigas sobre a pia
vou compondo meu universo de dezembro
enquanto meu irmão pede calma e assobia
uma canção que de tão triste já não lembro

minha mãe compõe caminhos e versos e fogo
e o meu céu fica por trás do ópio e da porta
através do inferno a vida fumaça de jogo
trinca de baralho ou lâmina que não corta

mas a festa está ao longe e se foi o carnaval
ânsia é só um abraço na minha filha de neve
na sala a casa é criança, gritos e festival

o ano passa e tudo mais a mais ficando leve
a rua um alpendre de desilusões e continuo
essa quase música que sem fim não concluo.

sábado, 17 de novembro de 2012

14 versos (Nelson Ascher - 1958)

Não zombes, crítico, da forma
que, além de poetas como Dante,
Quevedo ou Mallarmé durante
os séculos quando era a norma,

Púchkin, narrando com mestria
um duelo em seu Ievguêni Oniéguin
(num duelo desses morreria),
usou como outros não conseguem.

Sem rejeitar a própria era,
Drummond e Rilke, todavia,
levaram o soneto a extremos

de perfeição e, em sua cegueira,
Borges também, conforme via
mais do que nós, que vemos, vemos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Soneto à fotografia (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Libertar-se ligeiro da moldura
é o desejo da face, onde, o desgosto
emigrado do poço de água impura,
vai se aninhar na hora do sol posto.

Do lugar da prisão vem a tortura,
pois vê, do seu retângulo, teu rosto
e acorrentado na parede escura,
não pode engravidar-te para agosto.

Guarda ainda no olhar instante e viagem:
o instante em que foi presa pela imagem
e o roteiro que fez em mundo alheio.

E eterna inveja do seu sósia ausente
que, embora prisioneiro da corrente,
habita num subúrbio do teu seio.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A estrela próxima (Orides Fontela - 1940 - 1998)


A poesia é
impossível

o amor é mais
que impossível

a vida, a morte loucamente
impossíveis.

Só a estrela, só a
estrela
existe

- só existe o impossível.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Eu, Tu, Eros (Nei Leandro de Castro - 1940)

Eros e eu compomos a forma do teu corpo.
Não seguimos a lógica da anatomia
e passamos ao largo de toda a beleza
contida no teu rosto,
nos teus seios, nos teus cabelos em chamas.
Começamos pela rosa do umbigo, rosa de carne
plantada na planície suave do teu ventre.
Prosseguimos, para escalar
a vertigem do teu monte de Vênus
e ensaiamos gritar como alpinistas vencedores,
mas já estávamos nos debatendo
no rio de leite e mel que corre de tuas nascentes.

As tuas pernas estão abertas, porteiras abertas,
e assim poderias deter um rebanho de faunos
com suas flautas doces, suas armas em riste.
Estás em silêncio. Eros gargalha.
A ternura me envolve, me faz quase triste.

Arrufos (Artur Azevedo - 1855 - 1908)

Não há no mundo quem amantes visse
Que se quisessem como nos queremos;
Mas hoje uma questiúncula tivemos
Por um caprichozinho, uma tolice.

- Acabemos com isto! ela me disse,
E eu respondi-lhe assim: - Pois acabemos!

- E fiz o que se faz em tais extremos:
Peguei no meu chapéu com fanfarrice,

E, dando um gesto de desdém profundo,
Saí cantarolando. Está bem visto
Que a forma ali contradizia o fundo.

Ela escreveu. Voltei. Nem Jesus Cristo,
Nem minha Mãe, voltando agora ao mundo,
Foram capazes de acabar com isto!

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Ao poente (Alphonsus de Guimaraens - 1870 - 1921)

Ficamos sonhando horas inteiras,
com os olhos cheios de visões piedosas:
éramos duas virginais palmeiras,
abrindo ao céu as plamas silenciosas.

As nossas almas, brancas, forasteiras,
no éter sublime alavam-se radiosas.

Ao redor de nós dois, quantas roseiras!

O áureo poente coroava-nos de rosas.

Era um harpejo de harpa todo o espaço:
mirava-a longamente, traço a traço,
no seu fulgor de arcanjo proibido.

Surgia a Lua, além, toda de cera...

Ai como suave então me parecera
a voz do amor que eu nunca tinha ouvido!

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Dizeis que tenho vaidades (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Dizeis que tenho vaidades.
E que no vosso entender
Mulheres de pouca idade
Que não se queiram perder

É preciso que não tenham
Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento
Flores e renda, cetins,
Se solto o cabelo ao vento
É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes
E a boca fresca e rosada.
E a vaidade só consente
Vaidades, se desejada.

E além de vós
Não desejo nada.

domingo, 11 de novembro de 2012

Áspero é o teu dia (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Áspero é o teu dia. E o meu também.
Inauguro ares e ilhas
Para que o teu corpo se conheça
Sobre mim, mas é áspera
Minha boca móvel de poesia,
Áspera minha noite

Porque nem sei se o canto há de chegar
No escuro labirinto em que te fazes,
Nessa rede de aço que te envolve,
Nesse fechar-se enorme onde te moves.

Trabalho tua terra cada dia
E não me vês. O teu passo de ferro
Esmaga o que na noite foi minha vida.
E recomeço. E recomeço.

sábado, 10 de novembro de 2012

Se eu de ti me esquecer (Bernardo Guimarães - 1825 - 1884)

Se eu de ti me esquecer, nem mais um riso
Possam meus tristes lábios desprender;
Para sempre abandone-me a esperança,
Se eu de ti me esquecer.
Neguem-me auras o ar, neguem-me os bosques
Sombra amiga, em que possa adormecer,
Não tenham para mim murmúrio as águas,
Se eu de ti me esquecer.
Em minhas mãos em áspide se mude
No mesmo instante a flor, que eu for colher;
Em fel a fonte, a que chegar meus lábios,
Se eu de ti me esquecer.
Em meu peregrinar jamais encontre
Pobre albergue, onde possa me acolher;
De plaga em plaga, foragido vague,
Se eu de ti me esquecer.
Qual sombra de precito entre os viventes
Passe os míseros dias a gemer,
E em meus martírios me escarneça o mundo,
Se eu de ti me esquecer.
Se eu de ti me esquecer, nem uma lágrima
Caia sobre o sepulcro, em que eu jazer;
Por todos esquecido viva e morra,
Se eu de ti me esquecer.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Um cartão de visita (Alberto da Cunha Melo - 1942 - 2007)

Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.

Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.

Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.

É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.

Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Meu coração tem cabelos pretos (André di Bernardi - 1971)

Meu coração tem cabelos pretos,
pele morena, e só sente em compasso de espera.
Meu coração que sente em tudo
um leite condensado de águas.
Meu coração que te sabe em tudo,
no que flutua e no que é musical,
na velocidade dos carros,
na sensatez das árvores.
Condecorado de fardos e fadas,
meu coração inventou a malícia dos gatos.
Meu coração traça circunferências.
Meu coração que te lambe,
inútil, aos saltos,
ampliado agora de águas e begônias vivas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Beijos do céu (Alberto de Oliveira - 1859 - 1937)

Sonhei-te assim, ó minha amante, um dia:
- Vi-te no céu; e, enamoradamente,
de beijos, a falange resplendente
dos serafins, teu corpo inteiro ungia...

Santos e anjos beijavam-te... Eu bem via,
beijavam todos o teu lábio ardente;
e, beijando-te, o próprio Onipotente,
o próprio Deus nos braços te cingia!

Nisto, o ciúme - fera que eu não domo -
despertou-me do sonho; repentino
vi-te a dormir tão plácida a meu lado...

E beijei-te também, beijei-te..., e, ai! como
achei doce o teu lábio purpurino,
tantas vezes assim no céu beijado!

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Essa estranha (Diego Grando - 1981)

A voz dela quando acordo
é acorde num piano só de teclas pretas.
Seu rosto, pelo meio-dia
faz algo enviesado e novo
como se os olhos enxergando
daltônicos por lentes de cubismo.
À tarde as mãos
se estou prostrado porque a vida é desperdício
repousam nos meus ombros e são outras
mãos - são duas mãos esquerdas?
E seu humor durante o pôr do sol
é réplica da linha do horizonte.
Também se noite alta ou madrugada
ao revolver-se em sonho entre lençóis
o inédito me vem pelas narinas
e mesmo enquanto não está por perto
por certo algum indício há que a torna
indescritivelmente a mesma.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Mulher - 1 (Yone Giannetti Fonseca - 1929)

E agora, mulher,
Que soltou seus freios,
Que saiu dos eixos.

E agora, camélia,
Sua carne manchada,
Transada, se salva?

E agora, o pecado
Tão moderno e quente
Vai ter Happy-end?

E agora, mulher,
Você vai poder
Pisar firme e reta?

Borboleta bêbada
De vinho e desejo,
Depois desta entrega.

Depois deste incêndio,
Cadê seu sossego,
Cadê seu roteiro?

E agora, mulher,
Que você aborta,
Que você desbunda.

E que arromba portas
Erguendo um revólver,
E que faz negócios.

E que puxa fumo,
Você desconfia
Que tudo é um gemido?

E agora, mulher,
Nordestina, escória,
Que virou carioca?

Que virou miragem,
Robô, operária,
Puta e favelada?

Tão trivial e exposta
Ao consumo e à sorte
De uma coisa morta?

domingo, 4 de novembro de 2012

As palavras e os nomes da infância (Ângelo Monteiro - 1942)

As palavras da infância tinham mágicas
Que os mágicos somente saberão.
E um ardor que os pomares e os jardins
Nunca imaginam para o seu verão.

Palavras que - provindas de bem longe -
Viram nascer na luz de infantes olhos
O tamanho das coisas e dos homens
Medido por sua vara de condão.

O viço das palavras encantadas
Que os meninos trocavam sobre o mundo
Entre luas perdidas nas calçadas
Emanavam de um tempo mais profundo.

De um tempo em que os meninos não procuram
Outros nomes além dos nomes seus.
E nas conversas - cheias de futuro -
Nenhum fim vislumbravam num adeus.

Como os nomes que dávamos às coisas
Da malícia eram livres do legado
Saí de uma cidade para outra
Quando menino procurando Arnaldo.

Arnaldo. Não um nome de família.
Arnaldo apenas. Nada mais que Arnaldo.
Na infância os nossos nomes são o altar
De todas as estrelas em vigília.

sábado, 3 de novembro de 2012

O que fizeram do Natal (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1997)

Natal.
O sino longe toca fino.
Não tem neves, não tem gelos.
Natal.
Já nasceu o deus menino.
As beatas foram ver,
encontraram o coitadinho
(Natal)
mais o boi mais o burrinho
e lá em cima
a estrelinha alumiando
Natal.

As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Alma nua (Vander Lee - 1966)

Ó Pai
Não deixes que façam de mim
O que da pedra tu fizestes
E que a fria luz da razão
Não cale o azul da aura que me vestes
Dá-me leveza nas mãos
Faze de mim um nobre domador
Laçando acordes e versos
Dispersos no tempo
Pro templo do amor
Que se eu tiver que ficar nu
Hei de envolver-me em pura poesia
E dela farei minha casa, minha asa
Loucura de cada dia
Dá-me o silêncio da noite
Pra ouvir o sapo namorar a lua
Dá-me direito ao açoite
Ao ócio, ao cio
À vadiagem pela rua
Deixa-me perder a hora
Pra ter tempo de encontrar a rima

Ver o mundo de dentro pra fora
E a beleza que aflora de baixo pra cima
Ó meu Pai, dá-me o direito
De dizer coisas sem sentido
De não ter que ser perfeito
Pretérito, sujeito, artigo definido
De me apaixonar todo dia
De ser mais jovem que meu filho
E ir aprendendo com ele
A magia de nunca perder o brilho
Virar os dados do destino
De me contradizer, de não ter meta
Me reinventar, ser meu próprio Deus
Viver menino, morrer poeta

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Papel tesoura e cola (Eucanaã Ferraz - 1961)

Dia de verão na Vista Chinesa. Eu, sozinho,
era um mandarim frio; mas vendo tudo

do alto, tomado pela beleza, achei que
em meu coração a tristeza era mesquinha;

pensar em mim e em você me pareceu avareza,
tendo em vista que nós somos bem menores

vistos do Alto da Boa Vista. Janeiro bicicletas
bem-te-vis entraram pelos meus olhos

abrindo em cheio meu peito; que sombra
demoraria à luz de tantas lanternas?

Mesmo a noite mais profunda logo se incendiara
e, decerto, morreríamos só depois da madrugada.

Era uma tarde chinesa, tarde de mim sem você,
quando vi que nós dois juntos não valíamos

a cena.