quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Resíduo (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

sábado, 26 de outubro de 2013

Arte poética (Antonio Brasileiro - 1944)

Meus versos são da pura essência
dos poemas inessenciais.

Nada dizem de verídico
não querem nada explicar.

Não narram o clamor dos peitos
não encaram a dor do mundo.

Se por vezes falam alto
é por puro gozo, júbilo.

humor que brota de dentro
como se movem os astros.

Eles, meus versos, são pura
floração de irresponsáveis

flores nascidas nos mangues,
por nascer — mas multicores,

lindas, não importa que os homens
as conheçam ou não conheçam.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Sim & outros achaques (Antonio Brasileiro - 1944)

A vida inteira anulada
por falta de outros desígnios,

eis que voltamos ao parque
onde os homens se congregam:

ninguém jamais sabe ao certo
onde o sim das grandes aves,

singramos por mares mansos
que julgáramos esquecidos —

mas eis que a vida se perde
por falta de outros desígnios.

Ou não se perde: é só isto.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Reverso (Adriano Espínola - 1952)

A poesia é pouca
para resgatar o desespero.

Pomar de metáforas,
canteiro de músicas,
mistérios e mistificações
maduramente inúteis,

enquanto a vida ali explode:
áspera, acidental, rombuda.

Nesta hora,
há um homem varado com sua agonia:
um homem com seu grito,
um homem com seus ossos,
um homem ferido
com seu suor.

Sim, meu poema é raiva,
raiva de ser só palavras.

Quando poderia ser
músculos ou porradas,
pedra na praça, espingarda,
tiro na cabeça da injustiça.

Meu verso, porém, é dor
Dor de ser somente verso.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sítio (Cláudia Roquette-Pinto - 1963)

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
- mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: - Pai!
acho que um bicho me mordeu! assim
que a bala varou sua cabeça?

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Nos ramos dos salgueiros (Salvatore Quasimodo - 1901 - 1968)

E como nós podíamos cantar
com o pé estrangeiro no coração,
entre os mortos largados pelas praças
sobre a geada doída, ao grito
caprino dos guris, ao negro berro
da mãe que caminhava até o filho
feito Cristo no poste de telégrafo?

Nos ramos dos salgueiros, como ex-votos,
nossas liras também se suspenderam
oscilando leves num triste vento.


- Tradução de Alexandre Pilati

domingo, 20 de outubro de 2013

Não comerei da alface a verde pétala (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem maior aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

sábado, 19 de outubro de 2013

Soneto do amor total (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Soneto da rosa (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Mais um ano na estrada percorrida
Vem, como o astro matinal, que a adora
Molhar de puras lágrimas de aurora
A morna rosa escura e apetecida.

E da fragrante tepidez sonora
No recesso, como ávida ferida
Guardar o plasma múltiplo da vida
Que a faz materna e plácida, e agora

Rosa geral de sonho e plenitude
Transforma em novas rosas de beleza
Em novas rosas de carnal virtude

Para que o sonho viva da certeza
Para que o tempo da paixão não mude
Para que se una o verbo à natureza.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O poeta (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Olhos que recolhem
Só tristeza e adeus
Para que outros olhem
Com amor os seus.

Mãos que só despejam
Silêncios e dúvidas
Para que outras sejam
Das suas, viúvas.

Lábios que desdenham
Coisas imortais
Para que outros tenham
Seu beijo demais.

Palavras que dizem
Sempre um juramento
Para que precisem
Dele, eternamente.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Soneto do amor como um rio (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.

Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.

Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo

E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Canção (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Não leves nunca de mim
A filha que tu me deste
A doce, úmida, tranqüila
Filhinha que tu me deste
Deixe-a, que bem me persiga
Seu balbucio celeste.
Não leves; deixe-a comigo
Que bem me persiga, a fim
De que eu não queira comigo
A primogênita em mim
A fria, seca, incruada
Filha que a morte me deu
Que vive dessedentada
Do leite que não é seu
E que de noite me chama
Com a voz mais triste que há
E pra dizer que me ama
E pra chamar-me de pai.
Não deixes nunca partir
A filha que tu me deste
A fim de que eu não prefira
A outra, que é mais agreste
Mas que não parte de mim.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Saudade de Manuel Bandeira (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Não foste apenas um segredo
De poesia e de emoção
Foste uma estrela em meu degredo
Poeta, pai! áspero irmão.

Não me abraçaste só no peito
Puseste a mão na minha mão
Eu, pequenino - tu, eleito
Poeta! pai, áspero irmão.

Lúcido, alto e ascético amigo
De triste e claro coração
Que sonhas tanto a sós contigo
Poeta, pai, áspero irmão?

domingo, 13 de outubro de 2013

Soidão (Oswald de Andrade - 1890 - 1954)

Chove chuva choverando
Que a cidade de meu bem
Está-se toda se lavando

Senhor
Que eu não fique nunca
Como esse velho inglês
Aí do lado
Que dorme numa cadeira
À espera de visitas que não vêm

Chove chuva choverando
Que o jardim de meu bem
Está-se todo se enfeitando
A chuva cai
Cai de bruços

A magnólia abre o pára-chuva
Pára-sol da cidade
De Mário de Andrade
A chuva cai
Escorre das goteiras do domingo

Chove chuva choverando
Que a casa de meu bem
Está-se tôda se molhando

Anoitece sôbre os Jardins
Jardim da Luz
Jardim da Praça da República
Jardins das platibandas

Noite
Noite de hotel
Chove chuva choverando

sábado, 12 de outubro de 2013

A estrela da tarde (Orides Fontela - 1940 - 1998)

A estrela da tarde está
madura
e sem nenhum perfume

A estrela da tarde é
infecunda
e altíssima

Depois da estrela da tarde
so há:
o silêncio.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Receita (Nicolas Behr - 1958)

Ingredientes

dois conflitos de gerações
quatro esperanças perdidas
três litros de sangue fervido
cinco sonhos eróticos
duas canções dos beatles


Modo de Preparar

dissolva os sonhos eróticos
nos três litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração

leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos
de gerações às esperanças perdidas

corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os
sonhos eróticos mas desta vez
deixe ferver um pouco mais e
mexa até dissolver

parte do sangue pode ser
substituído por suco de groselha
mas os resultados não serão
os mesmos

sirva o poema simples
ou com ilusões

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Poema anti-ajuda (Nicolas Behr - 1958)

felizes os fracos de espírito
pois estes têm gurus
felizes os que ainda botam fé
no ser humano
felizes os que sabem ler
e têm algo pra comer todos os dias
felizes os que criam o inferno
para depois prometer o paraíso
felizes os indiferentes, que não se
comovem com nada e sofrem menos
felizes os que mentem para si mesmos e
acreditam piamente nisso
felizes os infelizes, pois estes são os
verdadeiros iluminados
felizes os que nunca choram e, portanto,
não passam vergonha
felizes os que têm autoconfiança,
autoestima, automóvel
felizes os amigos dos poderosos,
que tudo querem, que tudo podem
felizes os que acreditam no amor de Cristo
pois estes não têm mais salvação
felizes os andarilhos, os indecisos, os
confusos, os sem-rumo-na-vida
felizes os que choram com facilidade pois
estes estão sempre reciclando
a água parada dos seus olhos, fazendo
chover nos seus corações
felizes os piegas, os românticos,
ultrapassados, bregas, os que falam de
amor sem medo do ridículo, nem que seja
pra faturar uma boa grana naquela
música que vive tocando no rádio e o
povão adora

felizes os que escrevem livors de auto-
ajuda e ganham muito dinheiro, muito dinheiro, que
é o que realmente importa, que é o que
realmente interessa

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Saudades de Braxília (Nicolas Behr - 1958)

soltar pipa no eixão
nadar e pescar no paranoá
comer pastel de queijo na rodoviária
estacionar no setor comercial sul
voltar da festa a pé, altas horas
catar gabiroba perto da catedral
namorar embaixo do bloco
cruzar a L2 de patins e a W3 de skate
pegar um grande circular e circular
de mãos dadas com o banco
ver estrelas, muitas estrelas
pescar no riacho fundo,
que hoje atravesso a pé

erick volta do parquinho com semente de
leucena na mão e pergunta: são essas as
sementes que você colocou na minha

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tempos Edax Rerum (Millôr Fernandes - 1923 - 2012)

Sei, não é lisonjeiro
Mas você é do tempo
Em que cruzeiro
Era dinheiro
Ele do tempo
Em que o Brás
Era tesoureiro
E eu do tempo
Em que relógio
Tinha ponteiro

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Poemeu do Realista Radical (Millôr Fernandes - 1923 - 2012)

Não, ele nunca duvidou
Que a noite desceria
Que o dia surge apenas
Pra trazer a noite do outro dia
Sempre desprezou
Os atos de coragem
Jamais ignorou
Que o bem é uma miragem
E que (como no princípio
E no meio -
A vida não dá
Colher de chá)
No fim o mal
Também triunfará.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Cidadezinha qualquer (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Exercício n. 1 (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Se permitires
Traço nesta lousa
O que em mim se faz
E não repousa:
Uma Ideia de Deus.

Clara como Cousa
Se sobrepondo
A tudo que não ouso.

Clara como Cousa
Sob um feixe de luz
Num lúcido anteparo.

Se permitires ouso
Comparar o que penso
A Ouro e Aro
Na superfície clara
De um solário.

E te parece pouco
Tanta exatidão
Em quem não ousa?

Um Ideia de Deus
No meu peito se faz
E não repousa.

E o mais fundo de mim
Me diz apenas: Canta,
Porque à tua volta
É noite. O Ser descansa.
Ousa.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Tenho medo de ti e deste amor (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Tenho medo de ti e deste amor
Que à noite se transforma em verso e rima.
E o medo de te amar, meu triste amor,
Afasta o que aos meus olhos aproxima.

Conheço as conveniências da retina.
Muita coisa aprendi dos seus afetos:
Melhor colher os frutos na vindima
Que buscá-los em vão pelos desertos.

Melhor a solidão. Melhor ainda
Enlouquecendo os meus olhos, o escuro,
Que o súbito clarão da aurora vinda

Silenciosa de vãos de um alto muro.
Melhor é não te ver. Antes ainda
Esquecer de que existe amor tão puro.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Acreditei que se amasse de novo (Ana Cristina Cesar - 1952 - 1983)

Acreditei que se amasse de novo
Esqueceria outros
Pelos menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
Organizei a memória em alfabetos
Como quem conta carneiros e amansa
No entanto flanco aberto não esqueço
E amo em ti os outros rostos.