segunda-feira, 30 de junho de 2014

Minha vida é isso (Nicolas Behr - 1958)

meu filho pequeno, o Klaus,
pediu chupeta e disse
- a seu modo - (e eu entendi)
que ia dormir

pegou seu travesseirinho rosa
na sala e o pano branco no chão
- a babu - e dobrou-se sobre a cama

esse dias, já um pouco mais
crescido, perguntou:
qual a coisa maior, mais grande
do mundo? falei de edifícios,
baleias, sequóias, e ele:
- errou, é o amor!

domingo, 29 de junho de 2014

Não sei (Cora Coralina - 1889 - 1985)

Não sei... se a vida é curta
ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita.

Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
é o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
não seja curta,
nem longa demais
Mas que seja intensa
Verdadeira, pura ...
Enquanto durar.

sábado, 28 de junho de 2014

Suspensão (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Fora de mim, fora de nós, no espaço, no vago
A música dolente de uma valsa
Em mim, profundamente em mim
A música dolente do teu corpo
E em tudo, vivendo o momento de todas as coisas
A música da noite iluminada.
O ritmo do teu corpo no meu corpo...
O giro suave da valsa longínqua, da valsa suspensa...
Meu peito vivendo teu peito
Meus olhos bebendo teus olhos, bebendo teu rosto...
E a vontade de chorar que vinha de todas as coisas.

Se é paixão (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Se é paixão, me nego.
Já resvalei, a alma em pêlo,
neste áspero despenhadeiro.

Se é paixão, não quero.
Conheço seus espinhos de mel,
sei onde me conduz
embora prometa os céus.

Se é paixão, desculpe-me, não posso.
Conheço suas insônias
e a obsessão.

Se é paixão, me vou, não devo...
não adianta teus apelos.
Resistirei, porque aí
morri mil vezes.
Paixão é arma de três gumes,
e ao seu corte estou imune.

Se é paixão, me nego
e não receio que me acuses de medo.
Do desvario conheço todos os segredos.

Se é paixão, recuso-me e sinto muito,
pois foi à custo
que saí do labirinto.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Despedidas (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Amar a morte (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente. Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A vida tem uma faca na mão (Abgar Renault - 1901 - 1995)

Vamos parar de ler. Paremos de escrever.
Olhos e mãos circulam no papel
ao serviço da dor e da desgraça,
mas as palavras são frias e sem fel

para exprimir o desespero dessa taça.
Ninguém sabe escrever. E ninguém pode ler
o que fica, depois de tanta luta fútil,
da escuridão desvirginada do teu ser

na indiferença de uma folha de papel.
Hoje, ontem, amanhã - amanhã sobretudo -
a vida sempre tem uma faca na mão,

vai sob as unhas, vai direto ao coração,
dói nos olhos, nos pés, dói na alma, dói em tudo,
torna toda a poesia um jogo raso e inútil.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Balada da irremediável tristeza (Abgar Renault - 1901 - 1995)

Eu hoje estou inabitável...
Não sei por quê...
levantei com o pé esquerdo:
o meu primeiro cigarro amargou
como uma colherada de fel;
a tristeza de vários corações bem tristes
veio, sem quê, nem por quê,
encher meu coração vazio...vazio...
Eu hoje estou inabitável...
A vida está doendo...doendo...
A vida está toda atrapalhada...
estou sozinho numa estrada
fazendo a pé um raid impossível.

Ah! se eu pudesse me embebedar
e cambalear...cambalear...
cair, e acordar desta tristeza
que ninguém, ninguém sabe...
Todo mundo vai rir destes meus versos,
mas jurarei por Deus, se for preciso:
eu hoje estou inabitável...

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Soneto do impossível (Abgar Renault - 1901 - 1995)

Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.

Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.

Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.

Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.

domingo, 22 de junho de 2014

Bendito sejas (Antonio Botto - 1897 - 1959)

Bendito sejas,
Meu verdadeiro conforto
E meu verdadeiro amigo!

Quando a sombra, quando a noite
Dos altos céus vem descendo,
A minha dor,
Estremecendo, acorda...

A minha dor é um leão
Que lentamente mordendo
Me devora o coração.

Canto e choro amargamente;
Mas a dor, indiferente,
Continua...

Então,
Febril, quase louco,
Corro a ti, vinho louvado!
- E a minha dor adormece,
E o leão é sossegado.

Quanto mais bebo mais dorme:
Vinho adorado,
O teu poder é enorme!

E eu vos digo, almas em chaga,
Ó almas tristes sangrando:
Andarei sempre
Em constante bebedeira!

Grande vida!

- Ter o vinho por amante
E a morte por companheira!

sábado, 21 de junho de 2014

Regalo (Mariana Ianelli - 1979)

Prepara as costas em disparada,
uma respiração veloz para cantar tua entrada
na treva do largo refúgio.
Põe num giro, planta a tua verga,
(os nervos queimando)
e os dois trabalhando pelo mais,
a pergunta que sobe os pulmões
embaixo ela incha, conquista evoluída...
Dedos entre dedos,
a mistura se firma, demorada.
Boca de um vem rogando,
ajustando assanhada a mira do assalto,
boca de outro se banha, gostosa se junta
enlaça e baba.
(...Boca se bebe na boca)
Cabelo dos mares valentes
corre no braço, arrepia o seio,
um choro estridece, cantado na orelha
- eco de confissão.
Carne na carne,
as chamas concorrem, bamboleiam metas.
Ela enforca as tuas saídas, e te pede - vem,
aflora, aferra, afunda aqui.
Agora tua a seiva que é de poucos (de tão poucos).
A língua desenrolada solta na pele o melaço,
o seu ardido sabor.
O regalo entornando sem controle
em ti na outra em ti,
uma impureza desvairando insana,
agarrada bem na raiz da tua importância,
da tua perfeita afirmação.
Atrás da cabeça os punhos, contorcem-se veias,
no lábio borbulha uma condenação...
Vai e chora no estreito, duro, forte
e agora encharcado estreito.
Vira fuzil doido, incontido, e jorra,
fonte na fonte.
Caídos do topo, úmidos e compensados,
teu riso que rasga o quarto,
iniciamos o abraço só nosso.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Variações para morte (Mariana Ianelli - 1979)

A gota ácida, o mármore em cima.
Coroa de espinhos.
Mais outra vez um chamado de carinho,
uma flor dedicada.
A ganância do escuro querer ser mais negro.
Ela, não a verdade,
mas cólera radiante na perda de tudo,
e do mundo novo.
Um abuso do vento, ou a furta-cor.
Furta azares e acertos.
Ir para o susto do inaudito,
a mais secreta gestação da vida.
Saudade para os outros.
Lentidão maior do gesto,
o tempo cedido de sobra.
Livre proveito do sono.
Guardar-se, sumir-se nas alturas de lá.
O corpo abastado, sublime.
Prazer ao meu descanso.
O lado da sombra sem lei,
sem vacilo, voz ou contradição.
Prazer, prazer.
O dia inflamado em mim.
Nada de necessário,
de providente, fugaz.
O nada, devagar.
Regato das delícias tão invisíveis.
Meu largo estremecimento pelos céus.
Langor inesperado surgindo
de qualquer pouca fé,
de qualquer reserva miserável.
Um amor desocupado, minúcia.
O corpo ficando lento, tão lento
como uma parte do infinito
fora de qualquer tempo.
Tanto prazer.
O mais, longe de mim, que será meu.
Intervalo de toda a canção,
e de todos os homens.
Minha isenção.
Um suave recuo para dentro,
e a partida desenvolta.
Sentir isto e aquilo, generosamente.
Iminência de não ser.
Ela, ambiciosa para vir,
mas com seus cuidados, sua sedução.
Ela, a melindrosa.
Bendita.
Noite resolvida em mim,
sua água densa de inverno.
Meu corpo atenuado,
dançarino... amiúde.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Cerimônia (Mariana Ianelli - 1979)

Agora saberás o valor ignorado do tempo.
De uma vez serás efêmera e eterna
Como o animal que anda sobre a campina.
Tua boca de amar,
Mas amar com demorados intervalos ausentes,
Se abrirá sem música, murcha e seca, pedindo água.
Então eu virei de outros mundos
Em minha jornada violenta para te aliviar
E suportar o deserto contigo.
Virei de uma andança antiga te pertencer
E debaixo de um ramo de avencas
Pentear teu cabelo com as unhas.
Serás a mulher dentro do meu abraço,
E, para quem eu terei vindo, serás mãe.
...A audácia fatigada do tempo
posta em ti, porque é agora.
Como o animal que caminha francamente
E amoroso sobre a grama, serás mãe.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A velha (Adriano Espínola - 1952)

Esculpida em silêncio,
sentada
e sábia,
fita o horizonte da mágoa.
Ao lado,
o mar murmura
as sílabas do ocaso.

Ó beleza antiga e súbita:
sobre seu ombro
o instante
se debruça, iluminado.

terça-feira, 17 de junho de 2014

A rendeira (Adriano Espínola - 1952)

Na teia da manhã que se desvela,
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela.
Ponto a ponto, paciente, tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento
enquanto, estrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Ó César (Ana Paula Inácio - 1966)

não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soup
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem,
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer.

domingo, 15 de junho de 2014

Deixa o tempo fazer o resto (Ana Paula Inácio - 1966)

deixa o tempo fazer o resto
fechar as janelas
aplacar os barcos
recolher os víveres
semear a sorte
acender o fogo
esperar a ceia

abre as portas: lê a luz
a sombra, a arte do passarinheiro

com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso,
deixa o tempo fazer o resto.

sábado, 14 de junho de 2014

66-12-ZZ (Ana Paula Inácio - 1966)

Como um velho comerciante de carros falido
parecias saído de um filme de Tarantino.
Com as minhas plumas em forma de asas
e a maquilhagem de anjo doente
parecia saída de um filme de Wenders caído.
Relativamente às plumas, em forma de asas,
trazia os cálculos anotados
da distância a manter do Sol
e a imagem de Ícaro em chamas.
Mas naquele dia tudo correu mal.
O que poderíamos fazer de diferentes filmes saídos?
E choveu.
E o nevoeiro nem um cometa deixou ver.
A minha maquilhagem desfez-se,
confundiu-se com os veios das plumas
que se colaram à minha coluna vertebral
como um colete de forças.
E tu velho comerciante
já não me pudeste enganar
e vender um artefacto voador
por um coração ferido

sexta-feira, 13 de junho de 2014

É vitalício (Mia Couto - 1955)

É vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Identidade (Mia Couto - 1955)

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Destino (Mia Couto - 1955)

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Cantiga quase de roda (Thiago de Mello - 1926)

Na roda da vida
lá vai o menino
trazendo contente
um canto no peito
na fronte uma estrela.

Mal chega e descobre
que o mundo é feroz
e o tempo é de sombras.
Os homens caminham
calados, sozinhos,
com medo de amar.

De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras).

Portanto ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância.

Na roda do mundo,
ao lado dos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
seu canto de amor.

Um canto que faça
o mundo mais manso,
cantigas que tornem
a vida mais limpa,
um canto que faça
os homens mais crianças.

O menino entrega ao mundo
o dom da sabedoria
que nasce do coração.
Porque é do amor e da infância
que o mundo tem precisão.

domingo, 8 de junho de 2014

Saudade de Deus (Thiago de Mello - 1926)

Cresci menino com Deus.
Minha mãe acho que foi
quem Deus pôs dentro de mim.
Dentro de mim, mas não meu.
Não foi um amigo de infância.
Não me deixava à vontade
(nem nos banhos escondidos
na fundura do meu rio).
Não me deixava ser eu,
ser livre: sua presença
- uma lâmina suspensa
constante na minha vida -
me dava um grande temor.
Não me envergonho em dizer
que nunca lhe tive amor.

Por isso (suponho) foi
que um dia acordei sem Deus
(um dia quando os meus olhos
já conheciam o assombro).

Deus se perdeu. Não me achei
sozinho, me vi comigo.
(Talvez por isso eu carregue
esse ar de criança perdida.)

Contudo, dele restou
no chão triste da minha alma,
entre doce e dolorida,
mágoa que sabe a saudade.

sábado, 7 de junho de 2014

Amor mais que imperfeito (Thiago de Mello - 1926)

Não do amor. De mim duvido.
Do jeito mais que imperfeito
que ainda tenho de amar.

Com frequência reconheço
a minha mão escondida
dentro da mão que recebe
a rosa de amor que dou.

Espiando o meu próprio olhar,
escondido atrás estou
dos olhos com que me vês.
Comigo mesmo reparto
o que pretende ser dádiva,
mas de mim não se desprende.

Por mais que me prolongue
no ser que me reparte,
de repente me sinto
o dono da alegria
que estremece a pele
e faz nascer luas
no corpo que abraço.

Não do amor. De mim duvido
quando no centro mais claro
da ternura que te invento
engasto um gosto de preço.
Mesmo sabendo que o prêmio
do amor é apenas amar.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A boca da noite (Thiago de Mello - 1926)

O que não fiz ficou vivo
pelo avesso. O que não tive
pertence à dor do meu canto.
A estrela que mais amei
acende o meu desencanto.
Vinagre? Sombra de vinho?
De noite, a vida engoliu
(é doce a boca da noite)
as dores do meu caminho.
O meu voo se apazigua
quando a tormenta me abraça.
O que tenho se enriquece
de tudo que não retive.
Diamante? Flor de carvão.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Os acrobatas (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.

Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.

Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!

Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!

Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta.

Como no espasmo.

E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus

Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.

E morreremos
Morreremos alto, imensamente
IMENSAMENTE ALTO.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Tomara (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho

Tomara
Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz

E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz
E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais

terça-feira, 3 de junho de 2014

Poema para todas as mulheres (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

No teu branco seio eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha tristeza não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas.
Ai! Teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pêlos...
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha quero o colo de Nossa Senhora!

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Ternura (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passados eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

domingo, 1 de junho de 2014

Fisionomia (Ana Cristina Cesar - 1952-1983)

Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.