domingo, 31 de agosto de 2014

Ofício manual (Fernando Mendes Vianna - 1933 - 2006)

Percorrer teu corpo com as mãos
como se mãos fossem pés de criança correndo na relva,
como se mãos fossem pés de lavrador percorrendo o campo.

Percorrer teu corpo
como as asas das garças percorrem o céu,
como as nadadeiras dos peixes percorrem a água.

Percorrer teu corpo
com o olhar de uma criança percorrendo um brinquedo
antes de segurá-lo,
com a risada de uma criança segurando o brinquedo.

Percorrer teu corpo
como o olhar percorre o vinho ainda na videira
e apoja de sumo nossa boca.

Percorrer teu corpo
como um pomar carregado e um jardim florido,
colhendo flores e colhendo frutos.

Percorrer teu corpo
como um rio espalhando o humo na terra.

sábado, 30 de agosto de 2014

Invocação do corpo (Fernando Mendes Vianna - 1933 - 2006)

Bendito o meu corpo
apesar dos pesares.
Maldito o meu corpo.
Bendito e maldito
meu corpo finito
de tantos esgares
e vãos imaginares.
Bendito este mito.
o corpo, meu mito,
meu único mito.
Ó lenda estupenda
do poeta precito
o supremo fito.

Ó corpo, ó corpo!
O corpo e seu sopro,
meu barco, meu porto
no périplo torto,
corporatura
da grande aventura
da vida, da sorte
da morte.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Poemas para o mar (Fernando Mendes Vianna - 1933 - 2006)

Invade-me o mar
e o sangue
faz-se espuma.
O rumor do mar
corrói meus ossos
e lança à praia
puros sobrossos.

O mar invade
as dunas
da ampulheta
e minha tulha
de entulhos
de memórias.

O mar, o mar
invade tudo,
toda a minha seiva.
E faz da palavra
sangue sem eiva.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Elegia para a adolescência (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

E enfim descansaremos sob a verde
resistência dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que há de ser de
nós que então seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos,
seremos atirados de repente,
puros e inúteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
não são mais que ornamentos coloridos,
fruto de nossas bocas inconstantes.

E em silêncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos,
além das coisas vãs precipitados.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Risco (Oswald de Andrade - 1890 - 1954)

Um poema livre
da gramática, do som
das palavras
livre
de traços

Um poema irmão
de outros poemas
que bebem a correnteza
e brilham
pedras ao sol

Um poema
sem o gosto
de minha boca
livre da marca
de dentes em seu dorso
Um poema nascido
nas esquinas nos muros
com palavras pobres
com palavras podres
e
que de tão livre

traga em si a decisão
de ser escrito ou não

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Fronteira (Oswald de Andrade - 1890 - 1954)

Quero estudar filosofia em Paris
Não pode ser
Só se o compadre Antunes te mandar
Mas a vida mesmo assim é boa
O compadre Antunes faliu
A vida é boa
O compadre Antunes morreu

Velho sino mudo
Que paras o teu ritmo no pânico
E aceleras os teus passos
Na sedição
A semente frutifica sem aviso
O mascarado encherá de guizos tua mesa farta
Não pode ser
Mesmo assim a vida é boa

Poeta nasceste compromissado com a liberdade
E inutilmente conheceste a Estrela do Pastor

domingo, 24 de agosto de 2014

Atelier (Oswald de Andrade - 1890 - 1954)

Caipirinha vestida por Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens
Em Sevilha
À tua passagem entre brincos

Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio
Das procissões de Minas
A verdura do azul klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha

Arranha-céus
Fords
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado

sábado, 23 de agosto de 2014

A falta que ama (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Poesia XX (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Teu nome é Nada.
Um sonhar o Universo
No pensamento do homem:
Diante do eterno, nada.
Morte, teu nome.
Um quase chegar perto.
Um pouco mais (me dizem)
E terias o Todo no teu gesto.
Um pouco mais, tu
O terias visto.
Teu nome é Nada.
Haste, pata. Sem ponta, sem ronda.
Um pensar duas palavras diante da Graça:
Terias tido.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A cantora gritante (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Cantava tão bem
Subiam-lhe oitavas
Tantas tão claras
Na garganta alva
Que toda vizinhança
passou a invejá- la.
(As mulheres, eu digo,
porque os maridos
às pampas excitados
de lhe ouvir os trinados,
a cada noite
em suas gordas consortes
enfiavam os bagos).
Curvadas, claudicantes
De xerecas inchadas
Maldizendo a sorte
Resolveram calar
A cantora gritante.
Certa noite...de muita escuridão
De lua negra e chuvas
Arrumaram o jumento Fodão a um toco negro.
E pelos gorgomilos
Arrastaram também
A Garganta Alva
Pros baixios do bicho.
Petrificado
O jumento Fodão
Eternizou o nabo
Na garganta-tesão... aquela
Que cantava tão bem
Oitavas tão claras
Na garganta alva.

Moral da estória:
Se o teu canto é bonito
Cuida que não seja um grito.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Testamento lírico (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.

domingo, 17 de agosto de 2014

Docemente (Maria Teresa Horta - 1937)

Docemente
disponho dos teus braços

dos peixes que navegam
docemente

Docemente
disponho em minha face

a faca dos teus olhos
docemente.

Docemente
canso, disponho do cansaço

primeiro do teu afago
docemente

Docemente
afago, a tua boca apago

e vou negando a minha
docemente.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Nem só (Maria Teresa Horta - 1937)

Nem só do teu silêncio
direi raiva
Nem de todo o meu corpo
direi vício

nem de todo o pênis
direi arma
e apenas do teu direi ter sido

Quando o vácuo é de
vingar
ou de vergar
cravando sobre os seios a sua enxada

Quando a minha boca se conjuga
no baixo do teu ventre
e tua espada...

nem de todo o desejo
direi verão
nem de todo o grito
a tua imagem

nem de toda a ausência
direi chão
e só de teus flancos
a viagem

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O corpo, dois corpos (Maria Teresa Horta - 1937)

Dizer do corpo
o corpo da poesia

Os ombros
os seios
o ventre que sequestra

entre as pernas fechadas
a vagina
com a sua longa boca entreaberta

Pensar do corpo
o corpo da poesia

Mais os dedos do que as mãos
sobre as arestas
Mais as fendas do que o liso

Mais a ruga
Mais a ruga das coxas
e das pernas

Depois vêm os dentes e a língua
a descer no trilho brando do umbigo
bebendo o sal do suor da pele
e o fermento de um doce que não digo

Escrever do corpo
o corpo da poesia

Os pulsos tão febris
a nuca
e a garganta

O silêncio de uns olhos
que por certo queriam
ver bem mais longe do que o pubis
deixa

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Existem pedras (Maria Teresa Horta - 1937)

Existem pedras nos olhos
mas não as tragas
contigo

meu amor
e meu amigo

Existem pedras nas mãos
mas não as uses
comigo

meu amor
e meu amigo

Existem pedras sedentas
de amor e muito perigo

Não querias que elas inventem
motivos de meu castigo

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Soneto das definições (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito,
à música das cores e do vento.

Mutiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.

Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos mais raros.

Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

No nordeste (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Um Nordeste
onde nunca deixa de haver
uma mancha dágua:
um avanço de mar, um rio, um riacho,
o esverdeado de uma lagoa.
Onde a água faz da terra mole o que quer:
inventa ilhas, desmancha istmos e cabos.
altera a seu gosto a geografia convencional
dos compêndios.
Um Nordeste da terra.
Das árvores lambuzadas de resinas.
Das águas.
Do corpo molhado dos homens que trabalham
dentro do mar e dos rios,
na bagaceira dos engenhos,
no cais do Apolo,
nos trapiches de Maceió.

domingo, 10 de agosto de 2014

Poema (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Senhora de muito espanto,
vestindo coisas longínquas
e alguns farrapos de sono,

eu vim para te dizer
que inutilmente contemplo
na planície de teus olhos
o incêndio do meu orgulho.

Senhora de muito espanto,
sentada além do crepúsculo
e perfeitamente alheia
a realejos e manhãs.

Eu vim para te mostrar
que se inaugurou um abismo
vertical e indefinido
que vai do meu lábio arguto
ao chumbo do teu vestido.

Senhora de muito espanto
e alguns farrapos de sono,
onde o céu é coisa gasta
que ao meu gesto se confunde.

Um dia perdi teu corpo
nas cores do mapa-múndi.

sábado, 9 de agosto de 2014

Round about midnight (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

um vulto suspeito
e o pulo de um susto
à solta no peito

no beco sem saída
caminhos a esmo
o leque de abismos
entre um eco
e seus mesmos

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A que há de vir (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O haver (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
De matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, de uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram nem ontem nem hoje.

Resta essa vontade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada,
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta este constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Este eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Soneto do breve momento (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Plumas de ninhos em teus seios; urnas
De rubras flores em teu ventre; flores
Por todo corpo teu, terso das dores
De primaveras loucas e noturnas.

Pântanos vegetais em tuas pernas
A fremir de serpentes e de sáurios
Itinerantes pelos multivários
Rios de águas estáticas e eternas.

Feras bramindo nas estepes frias
De tuas brancas nádegas vazias
Como um deserto transmudado em neve.

E em meio a essa inumana fauna e flora
Eu, nu e só, a ouvir o Homem que chora
A vida e a morte no momento breve.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Amor (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Vamos brincar, amor? vamos jogar peteca
Vamos atrapalhar os outros, amor, vamos sair correndo
Vamos subir no elevador, vamos sofrer calmamente e sem precipitação?
Vamos sofrer, amor? males da alma, perigos
Dores de má fama íntimas como as chagas de Cristo
Vamos, amor? vamos tomar porre de absinto
Vamos tomar porre de coisa bem esquisita, vamos
Fingir que hoje é domingo, vamos ver
O afogado na praia, vamos correr atrás do batalhão?
Vamos, amor, tomar thé na Cavé com madame de Sevignée
Vamos roubar laranja, falar nome, vamos inventar
Vamos criar beijo novo, carinho novo, vamos visitar N. S. do Parto?
Vamos, amor? vamos nos persuadir imensamente dos acontecimentos
Vamos fazer neném dormir, botar ele no urinol
Vamos, amor?
Porque excessivamente grave é a Vida.

domingo, 3 de agosto de 2014

As amadas (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)

As amadas rebentam nas fontes do poema,
as amadas não são a filha do rei,
uma delas não sabe onde me encontrar;
no pensamento vizinho ao meu
cresce o desejo das amadas;
vou apanhar os peixes da lua
para a fome das amadas.

Mas meu quotidiano irreparável
perdendo suas formas volantes:
- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?

sábado, 2 de agosto de 2014

A voz do sangue, o sangue da voz (Alberto Pucheu - 1966)

Tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,
que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes
na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe
revolvendo as entranhas pelo avesso
(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,
tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando
simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue
(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue
da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,
e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,
no canto do amparo – sentado, curativos imediatos,
os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca
de um ponto pacífico –, ouço a voz nítida do treinador
se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,
não a escuto como um mandamento: infiel
e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz
desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho
do meu coração, espremê-lo ao sumo,
ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar comprimindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,
me dando a certeza de que o próximo soar do gongo
será o último badalo com o qual meu adversário sonhará
antes de beijar a encardida lápide da lona.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Presto (Eucanaã Ferraz - 1961)

Os dias despencam
aos pedaços. Logo será janeiro.

Posso farejar o amarelo das amendoeiras
de então (amarelas como teu cabelo)

e a praia, os bares, a ferrugem, nossas costas
e braços liquefeitos. Tanto faz a solidão,

a companhia: tudo são doenças tropicais,
incuráveis. O verão virá, forasteiro,

no vôo tonto, nupcial dos cupins
em volta das lâmpadas. Janeiro

está próximo, pressinto seu peso, a alegria,
o tremor, a sezão, o óleo,

a girândola veloz dos relógios
a nos golpear no ventre. Girassóis

em bando assestarão suas lâminas
em direção aos táxis

enquanto os rios, erráticos, desaguarão
à porta dos edifícios da Senador Vergueiro.