sábado, 20 de setembro de 2014

O amor, meu amor (Mia Couto - 1955)

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Andorinha (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Retina negra (Cristiane Sobral)

Recuso diariamente o espelho
Que tenta me massacrar por dentro
Que tenta me iludir com mentiras brancas
Que tenta me descolorir com os seus feixes de luz

Sou preta fujona
Preparada para enfrentar o sistema
Empino o black sem problema
Invado a cena

Sou preta fujona
Defendo um escurecimento necessário
Tiro qualquer racista do armário
Enfio o pé na porta
E entro.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Escreve-me... (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!

Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor! Meu coração
Morreu já, e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração! "Amo-te!"

Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!

Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Não vou mais lavar os pratos (Cristiane Sobral)

Detesto quem reclama sem motivo
Não tenho nada haver com a vida dos outros

Vivo o compromisso com as minhas escolhas
A responsabilidade das minhas decisões
Escolho usar ao tempo inteiro para progredir

Não esperem que eu diga, “vou indo”...
Não corro atrás, sou dos que seguem em frente!
Adoro levantar poeira e sacudir estruturas

Cada tombo fortalece os meus músculos
Torna mais ágeis as minhas pernas
Aprimora o salto e o meu desejo de voar

Não me convidem para falar da vida alheia
Já tenho muitos problemas no meu próprio universo
Fantasmas demais para espantar

Prefiro fazer listas de sonhos
Contar estrelas
Encontrar novas formas de realizar

Não me peça nenhuma receita do bem viver
Tudo o que aprendi foi a praticar...
Teorias e sucesso
Ainda não pagam a conta do meu supermercado

Mas entenda...

Estou determinada a não deixar o tempo correr demais
Prefiro parar de vez em quando, e tomar um chá com as minhas ideias.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Ar de familia (Armando Freitas Filho)

Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.

sábado, 6 de setembro de 2014

La tierra (Gabriela Mistral - 1889 - 1957)

Niño indio, si estás cansado,
tú te acuestas sobre la Tierra,
y lo mismo si estás alegre,
hijo mío, juega con ella...

Se oyen cosas maravillosas
al tambor indio de la Tierra:
se oye el fuego que sube y baja
buscando el cielo, y no sosiega.
Rueda y rueda, se oyen los ríos
en cascadas que no se cuentan.
Se oye mugir los animales;
se oye el hacha comer la selva.
Se oyen sonar telares indios.
Se oyen trillas, se oyen fiestas.

Donde el indio lo está llamando,
el tambor indio le contesta,
y tañe cerca y tañe lejos,
como el que huye y que regresa...

Todo lo toma, todo lo carga
el lomo santo de la Tierra:
lo que camina, lo que duerme,
lo que retoza y lo que pena;
y lleva vivos y muertos
el tambor indio de la Tierra.

Cuando muera, no llores, hijo:
pecho a pecho ponte con ella
y si sujetas los alientos
como que todo o nada fueras,
tú escucharás subir su brazo
que me tenía y que me entrega
a la madre que estaba rota
tú la verás volver entera.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Coplas (Gabriela Mistral - 1889 - 1957)

Todo adquiere en mi boca
un sabor persistente de lágrimas:
el manjar cotidiano, la trova
y hasta la plegaria.

Yo tengo otro oficio,
después del callado de amarte,
que este oficio de lágrimas, duro,
que tú me dejaste.

¡Ojos apretados
de calientes lágrimas!
¡Boca atribulada y convulsa,
en que todo se me hace plegaria!

¡Tengo una vergüenza
de vivir de este modo cobarde!
¡Ni voy en tu busca
Ni consigo tampoco olvidarte!

Un remordimiento me sangra
de mirar un cielo
que no ven tus ojos,
¡de palpar las rosas
que sustenta la cal de tus huesos!

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Cima (Gabriela Mistral - 1889 - 1957)

La hora de la tarde, la que pone
su sangre en las montañas.

Alguien en esta hora está sufriendo;
una pierde, angustiada,
en este atardecer el solo pecho
contra el cual estrechaba.

Hay algún corazón en donde moja
la tarde aquella cima ensangrentada.

El valle ya está en sombra
y se llena de calma.
Pero mira de lo hondo que se enciende
de rojez la montaña.

Yo me pongo a cantar siempre a esta hora
mi invariable canción atribulada.

¿Será yo la que baño
la cumbre de escarlata?

Llevo a mi corazón la mano, y siento
que mi costado mana.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Canção final (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.