terça-feira, 28 de outubro de 2014

Poema terciário (Domingos Carvalho da Silva - 1915 - 2004)

a João Cabral de Melo Neto

Cavalos já foram pombos
de asas de nuvem. Um rio
banhava o rosto da aurora.
Cavalos já foram pombos
na madrugada do outrora.
Onde há florestas havia
golfos oblongos por onde
tranqüilos peixes corriam.
Uma lua alvissareira
passava a noite. E deixava
reticências de cometa
vagalumeando na relva
das margens, até à aurora
da Idade de Ouro do outrora,
quando cavalos alados
tinham estrelas nas crinas
alvas como asas de pombo.
O Verbo não existia.
Deus era incriado ainda.
Só as esponjas dormitavam
trespassadas por espadas
de água metálica, impoluta.
E as gaivotas planejavam
etapas estratosféricas
próximo as praias ibéricas.
E as montanhas desabavam
em estertores terciários,
em agonias de estrondo,
nas manhãs de sol atlântico,
quando cortavam as nuvens
– alvos garbosos eqüinos –
esquadrões marciais de pombos.
Teu cabelo era ainda musgo.
Teus olhos o corpo frio
de uma ostra semiviva.
E tua alma sempre-viva
Sobrenadava o oceano
qual uma estrela perdida.
Teu coração era concha
fechada e sem pulsação.
E teu gesto – que é teu riso –
era urn mineral estático
ainda não escavado
pelo mar duro e fleumático.
Cavalos já foram pombos.
E a prata que anda na garra
dos felinos, reluzia
em vibrações uterinas
no ventre da terra fria,
quando o dia era só aurora
e Deus sequer existia,
na madrugada do outrora.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Soneto menor à chegada do verão (Eugénio de Andrade - 1923 - 2005)

Eis como o verão
Chega de súbito,
Com seus potros fulvos,
Seus dentes miúdos,

Seus múltiplos, longos
Corredores de cal,
As paredes nuas,
A luz de metal,

Seu dardo mais puro
Cravado na terra,
Cobras que despertam
No silêncio duro –

Eis como o verão
Entra no poema.

domingo, 26 de outubro de 2014

Green God (Eugénio de Andrade - 1923 - 2005)

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

sábado, 25 de outubro de 2014

Vegetal e só (Eugénio de Andrade - 1923 - 2005)

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Advertência cautelosa [4146] (Glauco Mattoso - 1951)

Só conto o que é veridico, e cuidado
convem tomar com tudo que é verdade,
pois pode succeder que desagrade
ao sceptico leitor o que é contado.

Tambem é natural não ser do agrado
de algum leitor mendaz o que lhe invade
a alcova, a conjugal privacidade,
o circulo domestico, o passado.

Mas, como bom poeta, não me calo:
escuto, memorizo e em verso passo,
ainda que pisando alguem no callo.

Portanto, é bem possivel que, no espaço
dum unico soneto, si eu contal-o,
o causo escripto valha um calhamaço.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Poema à boca fechada (José Saramago - 1922 - 2010)

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Poema para Luís de Camões (José Saramago - 1922 - 2010)

Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.

Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Antes de nascer, eu ouvia (Antônio Miranda - 1940)

Antes de nascer, ouvia e gravava,
sem entender: gritos, buzinas, canções.
Sem consciência do mundo, eu gravava.

Sons em movimento, eu inteligia?
era o alimento que vinha, ou tardava,
anunciado pelos passos, predizia?

Eu me saciava e não sabia, mas
havia, sim, havia, o esperar, e
uma certeza de que algo viria.

E eu me alimentava, sem comer;
sem saber, eu me satisfazia.
E ouvia, sim, eu ouvia e entendia.

Faço a regressão, vou em busca
do entendimento que não tinha,
mas sabia, sem saber, eu sabia.

Tento decifrar o que ficou gravado.
Não sei o que é, Mas o que não sei
molda tudo o que sei, e o que serei.

Minha mãe triste, — eu sentia!—,
minha mãe aflita estampada
em minhas entranhas, mãe-filho.

Ainda estamos juntos, depois da ida
num eco sem som, decifrando sons
extintos, indeléveis, tatuados na memória.

Memória física, em códigos que
eu não domino, que me domina.
Como Champolion, tento entender-me.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ar de família (Armando Freitas Filho - 1940)

Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.

domingo, 19 de outubro de 2014

Calder (Armando Freitas Filho - 1940)

Linha leve ao léu
se lança: dinâmica
aranha de arame
tátil na teia

desenvolve móbile
tateia mecânico
mobilento serial
irradia seu raio

medular, corre
a cor — reticente
filamento, infinito
filiforme pensamento

oscila, delineia
desenrola um perfil
na orla do ar
sublinha assobio, silvo

célere labirinto
falha, o filme
de sua febre frágil:
fio fino fim.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Elegia para a adolescência (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

E enfim descansaremos sob a verde
resistência dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que há de ser de
nós que então seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos,
seremos atirados de repente,
puros e inúteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
não são mais que ornamentos coloridos,
fruto de nossas bocas inconstantes.

E em silêncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos,
além das coisas vãs precipitados.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Soneto do desmantelo azul (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Lavoisier (Carlos de Oliveira - 1921 - 1981)

Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O viandante (Carlos de Oliveira - 1921 - 1981)

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Em silêncio conversemos (Francisco Alvim - 1938)

Que fazer deste ser
sem prumo
despencado do extremo de um dia e
que o sono não recolheu?

Não não indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio
Procurar a nenhuma razão que nos explique
e suavemente nos envolva
em suas turvas paredes protetoras

Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca

A quem sobra olhos resta ver
um ser nu a vida pouca
Só dentes e sapatos
de volta para casa

Nem um passo à frente
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante
neste suave embalo da mágoa
descansemos

domingo, 12 de outubro de 2014

Viagem (Miguel Torga - 1907 - 1995)

É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar.

sábado, 11 de outubro de 2014

Brasil (Miguel Torga - 1907 - 1995)

Brasil onde vivi,
Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!

Que milhas de angústia no mar da saudade!
Que salgado pranto no convés da ausência!
Chegar.
Perder-te mais.
Outra orfandade,
Agora sem o amparo da inocência.

Dois pólos de atracção no pensamento!
Duas ânsias opostas nos sentidos!
Um purgatório em que o sofrimento
Nunca avista um dos céus apetecidos.

Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Ente o chão encontrado e o chão perdido.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Frustração (Miguel Torga - 1907 - 1995)

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A ela outra vez (Abgar Renault - 1901 - 1995)

Como é duro esperar-te, sem querer-te,
na solidão de seitas e esperanças!
Pensar em ti assola a minha vida,
destrói raízes, folhas, flores, frutos
e fecha os mais próximos horizontes,
lembrando a cada passo e a cada gesto
a gruta de ursos e de surdos-mudos.
Eu temo os teus anúncios sem palavras,
teus passos de silêncio, sombra ou treva,
teu relógio tranquilo e a foice mágica
por ele comandada noite e dia;
temo, nulo, o desfecho do teu golpe
que dilacerará meu mapa triste,
no qual não vejo como caminhar,
mas procuro, com os olhos e com as unhas,
um buraco de nada que me oculte
do poderio do teu faro e mão.
Como, quando e em que rápido motor
viajará e certeira me acharás
não sei: somente sei que o teu olhar
me ferirá de súbito e infalível
e não tenho nem forças, nem enganos
para esperar-te aqui, aquém, além,
entre estes livros ou naquela cama,
assentado ou de pé, fazendo a barba
ou bêbado e escondido como um rato.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Desintegração (Abgar Renault - 1901 - 1995)

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer...
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação.

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos tremem ainda ao contato
imaterial, sub-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo...

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita! Tenho o coração cheio de coisas para dizer...
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Fim (Abgar Renault - 1901 - 1995)

O que eu perdi não foi um sonho bom,
não foi o fruto a embebedar meus lábios,
não foi uma canção de raro som,
nem a graça de alguns momentos sábios.

O que eu perdi, como quem perde uma outra infância,
foi o sentido do enternecimento,
foi a felicidade da ignorância, foi, em verdade,
na minha carne e no meu pensamento,
a última rubra flor do fim da mocidade.

E dói - não esse gesto ausente, a que se apagam
as flores mais solares, mas uma hora,
- flor de momento numa bela aurora -
hora longínqua, esquiva e para sempre morte,
em cuja escura, inacessível porta
noturnos olham cegamente vagam.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Antecipação (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Os outros que lutem para possuir o mundo.
Quanto a mim, quero te ver face a face.
Aguardo tua última vinda,
Minha forma definitiva e perfeita,
Minha justificação na tua unidade.
Estás em mim, mas ainda não te vejo:
Só vejo com os olhos do sangue.
Cai, mundo que herdei segundo a carne!
No fim de tudo abraçarei o Verbo
Que contém minhas formosas ascendentes,
Que me contém, contém a musa
E todas as gerações da musa, desde o princípio.