quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Moto perpetuo (Alexei Bueno - 1963)

      Todo poema
É o último do mundo.
A tentativa extrema,
O crucial segundo.

Por fim, escrito,
Pétreo, coagulado,
As larvas do não dito
Postam-se a cada lado.

E tudo é falta.
A fonte exige a bilha
Sem fundo, e eis nos assalta
A horrenda maravilha.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Ao menos (Alexei Bueno - 1963)

As vidas passadas
Talvez tenham tido
Grandes madrugadas
Com maior sentido
Do que os nossos nadas.

Mas em nós saltita
Seco, o coração,
Esponja maldita
A se inflar num vão
Onde ninguém fita.

A pular vermelha,
A encolher-se langue,
Suja bomba velha
Bêbada de sangue
Que só o nada espelha.

Que se estique e encolha
Até a hora em que estoure,
Ridícula bolha
Sem um só que a chore,
Sem quem a recolha.

E então tombe gorda
Dentro de si mesma,
Brinquedo sem corda,
Ressecada lesma
Que já nada acorda.

E ali, sem mais ânsia,
Imprestável odre,
Suma na distância,
Sem a dança podre
Que fez desde a infância.

Mas de ao menos nós
Que o sofremos tanto,
Que ele deixe após
Tanto pranto e espanto
Viva a nossa voz.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Trajetória (Alexei Bueno - 1963)

Onipresente
Melancolia
Que entre a alegria
Sorris prudente.
 
Sombra latente
À luz do dia,
Mudez sombria
Que o som pressente.
 
Por te vencermos
Percorreremos
Longínquos ermos,
 
Lá dançaremos
E expiraremos
Sem te esquecermos.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Arco (Vera Pedrosa - 1936)

há uma direção
agora
árvores se reúnem
sons de água
configuram-se

de onde voltamos
o rio desce
entre rochas
pousa em bacias
escapa entre falhas
detém-se em lajes
desce entre lírios
o basalto o escurece
poeira de ouro
em suas areias
cipoais
perturbam-lhe o contorno

quanto ao moço
nele se amava
o desejo de tudo
quando parado na pedra
o mergulho e
quando nadava
lentamente

de onde voltávamos
flores se interpunham
nos caminhos
mas era como se um arco ardesse
ante o olhar entre os ânimos

o rio desce
e quem se descobre
nas águas velozes
distantes

outros campos
outros passeios
adiro à evidência
de outros vales

Sonho do vestido violeta (Vera Pedrosa - 1936)

Descobri o cadáver muito mais tarde
no meio de uma viagem.
Passava por regiões
de passado futuro
o trem atacado por índios atarefados
ruínas negras de megalópolis de concreto
E tendo achado o cadáver
soube que me haviam enterrado
com meu vestido de seda violeta
um vestido precioso anunciador
da precognição da morte.
Então determinei
que desencarnassem o cadáver
e enterrassem a ossada límpida, polida
numa cova de terra úmida
enquanto a multidão de índios
sem real perigo
cercava o cemitério
mas depois se dedicava à tarefa muito mais séria
de destroçar as vigas que sustentavam nosso teto

sábado, 27 de dezembro de 2014

Soneto rodador (Glauco Mattoso - 1951)

Palíndromo perfeito é o "oroboro",
a cobra que devora o próprio rabo.
Com esse talismã começo e acabo
um tema que dos bruxos é namoro.

Porém, como sou falto de decoro
e de ser pornográfico me gabo,
engulo meu caralho, até me enrabo
e rindo dessa dor gozo meu choro.

Assim sempre vivi, juntando extremos,
tirando da agonia meu proveito,
casando maus anjinhos com bons demos.

Erótico e autofágico é o conceito,
portanto, do "oroboro": eis como vemos
a cobra do palíndromo perfeito.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O monge (Raimundo Correia)

—"O coração da infância", eu lhe dizia,
"É manso." E ele me disse:—"Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas..."

Falei-lhe então na glória e na alegria;
E ele - alvas barbas longas derramadas
No burel negro - o olhar somente erguia
Às cérulas regiões ilimitadas...

Quando eu, porém, falei no amor, um riso
Súbito as faces do impassível monge
Iluminou... Era o vislumbre incerto,

Era a luz de um crepúsculo indeciso
Entre os clarões de um sol que já vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!...

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Cavalgada (Raimundo Correia)

A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando,
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce,
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O vinho de Hebe (Raimundo Correia)

Quando do Olimpo nos festins surgia
Hebe risonha, os deuses majestosos
Os copos estendiam-lhe, ruidosos,
E ela, passando, os copos lhes enchia...

A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossa taça estendemos-lhe, vazia...

E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa...
Passa, e não torna atrás o seu caminho.

Nós chamamo-la em vão; em nossos lábios
Restam apenas tímidos ressábios,
Como recordações daquele vinho.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Poema da Gare do Astapovo (Mario Quintana - 1906 - 1994)

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!

domingo, 14 de dezembro de 2014

A turma (Manoel de Barros - 1916 - 2014)

A gente foi criado no ermo igual ser pedra.
Nossa voz tinha nível de fonte.
A gente passeava nas origens.
Bernardo conversava pedrinhas com as rãs de tarde.
Sebastião fez um martelo de pregar água na parede.
A gente não sabia botar comportamento
nas palavras.
Para nós obedecer a desordem das falas
infantis gerava mais poesia do que obedecer as regras gramaticais.
Bernardo fez um ferro de engomar gelo.
Eu gostava das águas indormidas.
A gente queria encontrar a raiz das palavras.
Vimos um afeto de aves no olhar de Bernardo.
Logo vimos um sapo com olhar de árvore!
Ele queria mudar a Natureza?
Vimos depois um lagarto de olhos garços
beijar as pernas da Manhã!
Ele queria mudar a Natureza?
Mas o que nós queríamos é que a nossa
palavra poemasse.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Prova (Adriano Nunes)

Suponho que saberia
Apenas isso: que isso
Ser pode aquilo e
Que aquilo pode ser isso

Quando convir
Ou for preciso.
Logo te digo:
O que sei é que é possível

Tudo no infindo
Espaço da poesia.
Não vês os dragões azuis saindo
Do decassílabo,

Enfeitado de resquícios
De versos de Horácio e Ovídio,
Porque amas os seus ritmos,
Não vês grãs tigres

Saltando, já, sobre as rimas
Toantes que construí
Só para ti?
Não vês libélulas lindas

Levando-te, com capricho
E amor, num rito,
Sóis, crisântemos e lírios,
Nas maiores redondilhas?

Sim, acredita,
Na quadra finda
Em quatro sílabas
Bem cabe a vida.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O martelo (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

As rodas rangem na curva
dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu
naufrágio
Os elementos mais
cotidianos.
O meu quarto resume o
passado em todas as casas
que habitei.
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de
pomba.
Sei que amanhã quando
acordar
Ouvirei o martelo do
ferreiro
Bater corajoso o seu
cântico de certezas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Pai (Eucanaã Ferraz - 1961)

No chão tenro do Rio,
misto de areia e restos de alagadiços,

pus teu corpo
triturado,

limalha da velha Minas, ímã
que já não prendia nenhuma alma.

Pus ao pé de uma árvore,
perto do mar,

teu corpo moído, pesado, que
parecia um punhado de conchas

que se macerou insistente,
violentamente.

O chão do Rio ganhou mais peso,
outra geologia.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Figura III (Eucanaã Ferraz)

Ainda sobre a cômoda,
colhidas há pouco,
esperam.
Que nome o delas?
Goivos, cravos, narcisos,
gardênias, junquilhos?
Venham a água
e o vaso – esperam.
Serenamente. A urgência
pode ser assim, macia.
O amarelo tem sede.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Estrela da Terra (Mariana Ianelli - 1979)

Jóia do absurdo
Esta flor imaginada
Dentro do teu sonho de menino.
Uma ilusão querer guardá-la para sempre:
Quando chegar o sol das almas deste inverno,
Será o fim do tempo de raízes.

Pétala o que em ti germina,
Resplandece e perde o viço.
Pétala para tudo que é finito.
Pela futura celebração da memória,
Pelo que, um dia, sem explicação, termina.
Pétala para que tu sejas grato ao que há de vir.

O amor se apressa, se desespera,
Trágico de tanta alegria.
Por ele surge o escarlate
E o lastro de estandarte sob a terra.
Por ele se abre e se desfolha a tua rosa
No vento arauto das despedidas.