sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Treva alvorada (Mariana Ianelli - 1979)

Absurda leveza que te faz afundar
E não é a morte.

Cumpres tua descida calado
(Uma palavra por descuido
Seria amputar a verdade).

Náufrago do tempo,
Tuas horas transbordam.
Dentro da lágrima,
Imensidão, já não choras.

Estrelas e estrelas,
Copulam a sede e o engenho
De que te alimentas
Como nunca te alimentou
O gosto da carne.

Tua face atônita
Se existisse uma face,
Tuas costas nuas,
Se a nudez fosse do corpo.

Um sorvedouro
Onde a paz dos contrários,
Treva alvorada.

Fecundado, flutuas.
É a lei da graça.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Retrato do poeta quando jovem (José Saramago - 1922 - 2010)

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Epitáfio para o séc. XX (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.

2. Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3.Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.

4.Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado,empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5.Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas,sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

8.Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

9.Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10. Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.

11. Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Os limite do autor (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)


Às vezes, ocorre
um autor estar
aquém
— do próprio texto.
De o texto ter-se feito,
além dos dedos,
como gavinha que inventou
a direção de seu verde,
e fonte que minou
o inconsciente segredo.
Um texto ou coisa
que ultrapassa a régua,
a etiqueta e o medo,
copo que se derrama,
corpo que no amor
transborda a cama
e se alucina de gozo
onde havia obrigação.
Enfim, um texto operário
que abandonou o patrão.

Às vezes ocorre
um autor estar aquém
da criação.
O texto-sábio
criando asas
e o autor pastando
grudado ao chão.

— Como pode um peixe vivo
estar aquém do próprio rio?
— Que coisa é esse bicho
que rompe as grades do circo
e se lança na floresta
no descontrole de fera?
— Que coisa é essa
que se enrola?
É fumaça? ou texto?
que se alça do carvão?

Lá vai o poema ou trem
que larga o maquinista
na estação
e se interna no sertão.
Ali o poema
olhado de binóculo
— só de longe tocado —
e o autor, falso piloto
largado na pista ou salas
do aeroporto, atrás do vidro,
enquanto o texto
levanta seu vôo cego
com o radar da emoção.

Enfim,
um poema que vira pássaro
onde termina a mão
ou avião desgovernado
que ilude o autor e a pista
e explode na escuridão.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Chegando em casa (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia:

- hoje 22 de agosto de 1994
meu marido perdeu, deste terraço:

mais um pôr de sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Nada foi feito que revivesse a coisa morta (Mariana Ianelli - 1979)


Nada foi feito que revivesse a coisa morta,
Mas no rosto do amante solitário
Uma tarde despontou dentre milhares
E quis do homem o seu prazer intenso
De sonhar o mesmo vulto sobre a cama,
O mesmo vínculo que se estabeleceu
Para ser rompido como os que o antecederam
E os que viriam raramente depois dele.
Cindiu a indiferença dos anos e voltou
Com sua fome, seu poder ambíguo de encantar
Pela eternidade do instante que floresce
Apenas quando a melancolia de tê-lo perdido
Também volta, agora com toda a sua beleza visionária.
Uma tarde cuja manhã já se esqueceu
No traço de tantas iguais que vêm e passam
Como para só cumprir o ato necessário;
Uma tarde cuja noite se tornou algum resíduo amortalhado.
Estava ilhada, suspensa no fluxo do tempo,
Era a relíquia do amante, e era o seu trauma.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

As três parcas (Sophia de Mello Breyner Andresen - 1919 - 2004)

As três Parcas que tecem os errados
Caminhos onde a rir atraiçoamos
O puro tempo onde jamais chegamos
As três Parcas conhecem os maus fados.

Por nós elas esperam nos trocados
Caminhos onde cegos nos trocamos
Por alguém que não somos nem amamos
Mas que presos nos leva e dominados.

E nunca mais o doce vento aéreo
Nos levará ao mundo desejado
E nunca mais o rosto do mistério

Será o nosso rosto conquistado
Nem nos darão os deuses o império
Que à nossa espera tinham inventado.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Nirvana (Antero de Quental - 1842 - 1891)

Para além do Universo luminoso,
Cheio de formas, de rumor, de lida,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vácuo tenebroso.

A onda desse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida...
Numa imobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso...

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo desse mundo morto
E torna a olhar as coisas naturais,

À bela luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tédio, em tudo quanto fita,
A ilusão e o vazio universais.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Domingo (Olavo Bilac - 1865 - 1918)

Domingo... Os sinos repicam
Na igreja, constantemente,
E todas as ruas ficam
Alegres, cheias de gente.

Todo um dia de ventura...
Como o domingo seduz!
O homem, cansado, procura
Ter paz, ter ar, e ter luz.

Paradas e sem trabalho,
Dormem na roça as enxadas;
Dormem a bigorna e o malho
Nas oficinas fechadas.

Também, meninos cansados,
Os vossos livros deixai!
Deixai lições e ditados!
Dormi! Sorri! Cantai!

Fechem-se as aulas! e o bando
Ruidoso das criancinhas
Livre se espalhe, voando,
Como um bando de andorinhas!

Deus, quando o mundo fazia,
Sete dias trabalhou,
E ao fim do sétimo dia
Do trabalho descansou...

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A madrugada (Olavo Bilac - 1865 - 1918)

Os pássaros, que dormiam
Nas árvores orvalhadas,
Já a alvorada anunciam
No silêncio das estradas.

As estrelas, apagando
A luz com que resplandecem,
Vão tímidas vacilando
Até que desaparecem.

Deste lado do horizonte,
Numa névoa luminosa,
O céu, por cima do monte,
Fica todo cor-de-rosa;

Daí a pouco, inflamado
Numa claridade intensa,
Se desdobra avermelhado,
Como uma fogueira imensa.

Os galos, batendo as asas,
Madrugadores, já cantam;
Já há barulho nas casas,
Já os homens se levantam,

O lavrador pega a enxada,
Mugem os bois à porfia;
— É a hora da madrugada
Saudai o nascer do dia!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A boneca (Olavo Bilac - 1865 - 1918)

Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: "É minha!"
- "É minha!", a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

A mesa (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)

O jornal dobrado
sobre a mesa simples;
a toalha limpa,
a louça branca

e fresca como o pão.

A laranja verde:
tua paisagem sempre,
teu ar livre, sol
de tuas praias; clara

e fresca como o pão.

A faca que aparou
teu lápis gasto;
teu primeiro livro
cuja capa é branca

e fresca como o pão.

E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente

e fresca como o pão.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O doce (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

A boca aberta para o doce
já prelibando a gostosura,
e o doce cai no chão de areia, droga!

Olha em redor. Os outros viram.
Logo aquele doce cobiçado
a semana inteira, e pago do seu bolso!
Irá deixá-lo ali, só porque os outros
estão presentes, vigilantes?

A mão se inclina, pega o doce, limpa-o
de toda areia e mácula do chão.
"Se fosse em casa eu não pegava, não,
mas aqui no colégio, que mal faz?"

domingo, 11 de janeiro de 2015

Poema que aconteceu (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Nenhum desejo neste domingo
nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse.

Linhas paralelas (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Um presidente resolve
Construir uma boa escola
Numa vila bem distante.
Mas ninguém vai nessa escola:
Não tem estrada para lá.
Depois ele resolveu
Construir uma estrada boa
Numa outra vila do Estado.
Ninguém se muda pra lá
Porque lá não tem escola.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Meu epitáfio (Cora Coralina - 1889 - 1995)

Morta... serei árvore
Serei tronco, serei/ronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras de meu berço
São as cordas que brotam de uma lira

Enfeitei de
Olhos verdes
Apedra de meu túmulo
Num simbolismo
De vida vegetal

Não morre aquele
Que deixou na terra
A melodia de seu canto
Na música de seu verso.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Rumos errados (Cora Coralina - 1889 - 1985)

A caminhada ...
Amassando a terra.
Carreando pedras.
Construindo com as mãos
sangrando
a minha vida.

Deserta a longa estrada.
Mortas as mãos viris
que se estendiam às minhas.
Dentro da mata bruta
leiteando imensos vegetais,
cavalgando o negro corcel da febre,
desmontado para sempre.

Passa a falange dos mortos ...
Silêncio! Os namorados dormem.
Os poetas cobriram as liras.
Flutuam véus roxos
no espaço.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Toda palavra (Viviane Mosé)

Procuro uma palavra que me salve
Pode ser uma palavra verbo
Uma palavra vespa, uma palavra casta.
Pode ser uma palavra dura. Sem carinho.
Ou palavra muda,
molhada de suor no esforço da terra não lavrada.
Não ligo se ela vem suja, mal lavada.
Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada.
Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei
e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos.
Penso em quanta fadiga me dava
o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido.
Hoje imploro uma fala escrita,
não pode ser cantada.
Preciso de uma palavra letra
grifada grafia no papel.
Uma palavra como um porto
um mar um prado
um campo minado um contorno
carrossel cavalo pente quebrado véu
mariscos muralhas manivelas navalhas.
Eu preciso do escarcéu soletrado
Preciso daquilo que havia negado
E mesmo tendo medo de algumas palavras
preciso da palavra medo como preciso da palavra morte
que é uma palavra triste.
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida.  
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.
Toda palavra é bem dita e bem vinda

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Vidência (Alexei Bueno - 1963)

Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que pára o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Intimidade (Alexei Bueno - 1963)

Caros mortos do Rio de Janeiro,
Quando eu ando nas ruas em que andastes
Não são meus olhos tão somente engastes
Dos vossos, vendo o que vistes primeiro?

Estar vivo, este fato, não é um só
E mesmo, se se exclui cenário e nome?
Não é a mesma uma boca quando come
E dois pés na calçada erguendo o pó?

Não será isso enfim a vida eterna,
Livrar-se da memória e andar nas ruas?
Ser só olhos com pés, as íris nuas
De tudo o que das horas nos governa?

Não morremos? Talvez nunca tenhamos
Deixado o mesmo ponto intacto e alheio.
O que é o agora? O que é? Como está cheio
Este jardim deserto onde uivam ramos.