segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Nuvem e nuvem (Thiago de Mello - 1926)

Só digo do que existo e vejo.
Falo somente o que sinto.
E se canto o que imagino
mesmo dormindo e sonhando
é para que o pão pequeno
mal entre no forno, cresça
do tamanho da esperança.
Só vivi, por isso sonho
a vida real, a vida dos homens
que moram sob as estrelas.
Não falo a língua dos anjos.
Na verdade nunca ouvi
uma palavra sequer
do idioma no qual milícias
de anjos cantando espalharam
a pastores assombrados
a chegada de um menino
fadado a lavar pecados.

Notícias dos nossos dias
contam anjos bons de corpo,
desalados, não carecem
de idiomas, basta o olhar,
dizem tudo. Mas não sei.

Verdade é que a meu lado vive um anjo
que mais fala quando cala,
não tem asas mas tem ancas
cheias de estrelas que guardam
seu isósceles perfeito.

Falo a linguagem dos homens,
que entre os homens aprendi.
Mas cuidado! Quando digo nuvem
estou dizendo simplesmente nuvem.
A única diferença entre a nuvem
que flutua brilhante lá no céu
brincando de dragão e bailarina,
e a nuvem que gravo no papel,
é que a minha o vento não esgarça,
nem se desfaz em chuva sobre o solo:
nuvem será, sempre nuvem,
porque feita de palavra,
matéria imperecível
cujos atómos resguardam
os segredos da vida.

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