quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Nós (Silva Ramos - 1853 - 1930)


Eu e tu: a existência repartida
por duas almas; duas almas numa
só existência. Tu e eu: a vida
de duas vidas que uma só resuma.

Vida de dois, em cada um vivida,
vida de um só vivida em dois; em suma:
a essência unida à essência, sem que alguma
perca o ser una, sendo à outra unida.

Duplo egoísmo altruísta, a cujo enleio
no próprio coração cada qual sente
a chama que em si nutre o incêndio alheio.

Ó mistério do amor onipotente,
que eternamente eu viva no teu seio,
e vivas no meio seio eternamente.

domingo, 27 de novembro de 2011

O martírio do artista (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz, e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!

sábado, 26 de novembro de 2011

O carro (Elisa Lucinda - 1958)

Manhã de segunda
eu passo a primeira
guio o carro da semana
sua cara aparece
no vidro, vestido
de editor-chefe.
Redação de viscose
o linho
nobre imagem
de você no pára-brisa
indo todo de vez
guardando o sono
das avenidas
na algibeira do mês.
Metade negro
metade francês
meu corpo freme
em prol do acelerador
mas a perna é sua
música indolor
a perna soa e sua
o tempo que carbura
dor.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

memórias póstumas (Geraldo Carneiro - 1952)

embora todas as coisas ao meu redor
continuem caindo,
por força da gravitação dos corpos,
ainda sustento dois ou três sonhos
a alegria de rever amigos
a esperança de amar até que a morte
me carregue do reino deste mundo,
o único reino em que jamais reinei.

se houver reinos além, serei feliz,
se não, não creio que o mundo perdesse
coisa alguma com minha partida,
a não ser por certo modo de ser e não ser
que outros saberão exercitar.
saberei me curvar à minha insubstância
e sumo nas não-esferas do éter
eu arlequim nos carnavais do caos

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O último viandante (Mario Quintana - 1906-1994)


Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem sabia mais aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Aos maus juízes (Botelho de Oliveira - 1636 - 1711)

Que julgas, ó Ministro da Justiça?
Por que fazes das leis arbítrio errado?
Cuidas que dás sentença sem pecado,
sendo que algum respeito mais te atiça,

por obrar os enganos da justiça?
Bem que teu peito vive confiado,
o entendimento tens todo arrastado
por amor, ou por ódio, ou por cobiça.

Se tens amor, julgaste o que te manda;
se tens ódio, no inferno tens o pleito;
se tens cobiça, é bárbara e execranda.

Oh, miséria fatal de todo feito!
Que não basta o direito da demanda,
se o julgador te nega esse direito...

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Aos que sonham (Raul de Leoni - 1896-1926)

Não se pode sonhar impunemente
um grande sonho pelo mundo afora,
porque o veneno humano não demora
em corrompê-lo na íntima semente...

Olhando no alto a árvore excelente,
que os frutos de ouro esplêndidos enflora,
o sonhador não vê, e até ignora
a cilada rasteira da serpente.

Queres sonhar? Defende-te em segredo,
e lembra, a cada instante e a cada dia,
o que sempre acontece e aconteceu:

Prometeu e o abutre no rochedo,
o calvário do filho de Maria
e a cicuta que Sócrates bebeu!

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Meios de transporte (João Cabral de Melo Neto - 1920-1999)

 
                            1
O câncer é aquele ônibus
que ninguém quer mas com que conta;
não se corre atrás dele,
mas quando ele passa se toma;

que ninguém quer mas sabe;
e que um dia ao sair-se do sono,
lá está, semi-surpresa,
quase pontual, no seu ponto.

                            2
Sem pontos de parada,
solto nas ruas como um táxi,
sem o esperar, querer,
sem ter por que, se toma o enfarte:

táxi que, de repente,
ao lado de quem não se pensava,
pára, no meio-fio,
toma, quem não o vira ou chamara.

domingo, 20 de novembro de 2011

Outra vida (Francisca Júlia - 1874 - 1920)

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
de sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
lei que me condenou à tortura constante;
porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
na minha solidão a sua voz escuto,
e sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio...

sábado, 19 de novembro de 2011

Filhos (Ferreira Gullar - 1930)

Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
        e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram com sua alegria

se foram

Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
        se há tantos
        e tantos
        anos
        não os via
        crianças
        já que
        agora
        estão os três
        com mais
        de trinta anos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Biografia (Sophia de Mello Breyner Andersen - 1919 - 2004)


Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar, no vento.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A fome é curável (Erich Kästner - 1899 - 1974)

O homem entrou no hospital
e disse: "Não me sinto bem".
Então, extraem-lhe o apêndice
e lavam-no com formol.

"Sente-se melhor?" Responde: "Não".
Mas os médicos dão-lhe coragem
e cortam-lhe a perna esquerda,
garantindo: "Agora vai ficar bom".

Continua a sofrer, no entanto,
e enche de gritos o hospital.
Para descobrir o que pode ser,
praticam-lhe uma cesariana.

Embora doutíssimos no ramo,
os cirurgiões fazem caretas.
Mudo, sem forças para gritar,
ele morrer, não morre não.

Esvai-se-lhe pouco a pouco o sangue,
o ar já lhe vai faltando?
Serram-lhe três costelas,
e finalmente expira.

O cirurgião-chefe contempla o cadáver.
Aí, pergunta-lhe um estudante:
"Que coisa tinha esse pobre diabo?".
O doutor, engasgado, murmura:
"Acho que era apenas fome".

* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade e constante do livro "Poesia Traduzida", editado pela Cosac Naify.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A voz da tília (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera...

E de manhã o Sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primavera...
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás de ser tília como eu sou..."

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Canção quase melancólica (Cecília Meireles - 1901-1964)

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...

Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.

Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?

Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

As estrelas (Olavo Bilac - 1865-1918)

Quando a noite cair, fica à janela,
E contempla o infinito firmamento!
Vê que planície fulgurante e bela!
      Vê que deslumbramento!
Olha a primeira estrela que aparece
Além, naquele ponto do horizonte...
Brilha, trêmula e vívida... Parece
Um farol sobre o píncaro do monte.

      Com o crescer da treva,
Quantas estrelas vão aparecendo!
De momento em momento, uma se eleva,
E outras em torno dela vão nascendo.

Quantas agora!... Vê! Noite fechada...
Quem poderá com tantas estrelas?
Toda a abóbada está iluminada:
E o olhar se perde, e cansa-se de vê-las.

Surgem novas estrelas imprevistas...
      Inda outras mais despontam...
Mas, acima das últimas que avistas,
Há milhões e milhões que não se contam...

      Baixa a fronte e medita:
- Como, sendo tão grande na vaidade,
Diante desta abóboda infinita
É pequenina e fraca a humanidade!

domingo, 13 de novembro de 2011

Epitáfio (Vinícius de Moraes - 1913-1980)

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.

sábado, 12 de novembro de 2011

Poeta fui e do áspero destino (José Albano - 1882-1923)

Poeta fui e do áspero destino
senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
e sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
que tanto engana mas tão pouco dura;
e inda choro o rigor da sorte escura,
se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
dos sonhos que sonhava noite e dia
e só com saudades me atormento,

entendo que não tive outra alegria
nem nunca outro qualquer contentamento,
senão ter cantado o que sofria.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Noturno resumido (Murilo Mendes - 1901-1975)

A noite suspende na bruta mão
que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprada no turco a prestações.

A lua e os manifestos da arte moderna
brigam no poema em branco.

A vizinha sestrosa da janela em frente
tem na vida um camarada
que se atirou dum quinto andar.
Todos têm a vidinha deles.

As namoradas não namoram mais
porque nós agora somos civilizados,
andamos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambas
que eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedos
e me aborrece tanto:
não posso escrever a obra-prima
que todos esperam do meu talento.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Já és minha. Repousa com teu sono no meu sono (Pablo Neruda - 1904-1973)

Já és minha. Repousa com teu sono no meu sono.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite em suas rodas invisíveis
e ao meu lado és pura como o âmbar adormecido.

Nenhuma outra, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma outra viajará pela sombra comigo,
apenas tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves signos sem rumo,
teus olhos fecharam-se como duas asas cinzentas,

enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento fiam o seu destino,
e sem ti já não sou senão apenas o teu sonho.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Cruz na porta da tabacaria (Fernando Pessoa - 1888-1935)

Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-'star que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou!

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.

(Poema do heterônimo Álvaro de Campos)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Esperança ancestral (Cristiane Sobral - 1974)

A minha mãe esperava meu pai
Esperava um tempo melhor
Esperava a cada nove meses um rosto
Esperava o feijão cozinhar

O meu pai tinha esperança no emprego
Esperança no sossego
O meu pai nos alimentava com esperança

Eu espero se tão capaz de esperar
Tão sábia para administrar o meu mundo
Tão forte para parir
E não parar

Tenho o meu próprio movimento
Espero,
mas tenho uma comichão por dentro
que me empurra à luta...

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Tu que me deste o teu cuidado... (Manuel Bandeira - 1886-1968)

Tu que me deste o teu carinho
E que me deste o teu cuidado,
Acolhe ao peito, como o ninho
Acolhe o pássaro cansado,
O meu desejo incontentado.

Há longos anos ele arqueja
Em aflita escuridão.
Sê compassiva e benfazeja.
Dá-lhe o melhor que ele deseja:
- Teu grave e meigo coração.

Sê compassiva. Se algum dia
Te vier do pobre agravo e mágoa,
Atende à sua dor sombria:
Perdoa o mau que desvaria
E traz os olhos rasos de água.

Não te retires ofendida.
Pensa que nesse grito vem
O mal de toda a minha vida:
Ternura inquieta e malferida
Que, antes, não dei nunca a ninguém.

E foi melhor nunca ter dado:
Em ti pungindo algum espinho,
Cinge-se ao teu seio angustiado.
E sentirás o meu carinho.
E sentirás o meu cuidado.

domingo, 6 de novembro de 2011

A máquina de escrever (Maíra Ramos)

        
          Pois eu inventei de querer uma máquina de escrever... E qual não foi minha surpresa ao saber que esse tipo de equipamento não mais existe à venda no mercado de consumo. Fui a uma loja de artigos para escritório e a vendedora, assustada, disse não saber o que era uma máquina de escrever. Perguntou-me se servia máquina de calcular de mesa, pois essa eles tinham, aos montes, para vender.
          Tive que me socorrer, então, de um site da internet, onde se acha de quase tudo para comprar, desde mini-garrafinhas antigas de coca-cola a calotas de opala dos anos 85 a 86.
          E lá estavam elas: máquinas de escrever de todas as cores, tipos e preços. Algumas impossibilitadas ao uso, com teclas emperradas, fita muito gasta, muitas que serviriam apenas como objeto de decoração, o que fazia com que o preço fosse bem baixo.
          Selecionei algumas, dentre as opções disponíveis, dando mais atenção àquelas cujo anúncio dizia estarem em perfeito estado e em funcionamento. Eis que achei uma que muito me agradou: verdinha, pequena, portátil, com peso de quase três quilos... Uma beleza! Fechei negócio!
         A máquina não demorou muito para chegar em minha casa, vinda através de encomenda pelos correios. Lembro-me da minha alegria ao me deparar com o embrulho. Já sabia que era a minha máquina que tinha chegado e estava ali, em minhas mãos. Fui, então, feliz da vida, abrir o pacote...
          A máquina estava ali, em minha frente, perfeitinha mesmo, como não havia mentido o anúncio. A fita é que estava um pouco gasta, mas nada que uma fita nova não resolvesse. 
        Então, voltei a minha peregrinação às papelarias e lojas do tipo e qual não foi a minha surpresa ao perceber que era muito mais difícil encontrar a fita para a máquina de escrever do que a própria máquina de escrever.  Hoje, tenho a máquina e realizei um antigo sonho de criança, no entanto não consigo usá-la. A vida tem dessas coisas, vá entender!

sábado, 5 de novembro de 2011

Anatomia (Felipe Fortuna - 1963)

Um poema é uma guerra: nele e nela
se desintegram a palavra e a vida
e o que resta é perda que ressuscita:

ler um poema de certo modo o mata,
pois morre o que não se pensou ao ler,
embora a leitura aos poucos esclareça

o que se pensou jamais se fosse ler.
Poema é duelo plural e infinito:
é, acrobática, sobre o papel a escrita

ao mesmo tempo enigma, estigma, ígnea.
Ler o poema, mas não resolvê-lo:
isso acontece há muito tempo,

e somos nós que estamos lá dentro.
O poema nos faz e desfaz, a guerra também,
e é com palavra e arma que sabemos

o quanto nos resta de sonho e de renascimento.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A invenção do dia (Valberto Cardoso)

Desconheço aquela paisagem
Que cobria os meus olhos, os meus pés, os meus dedos,
Sirenes do dia

Desconheço o brejo e suas fábricas
As crianças que brincavam comigo,
Que atravessavam a história do beijo

Não desejei perseguir as ruas por onde construí estes descaminhos
Onde ficou o nosso hóspede no momento em que o porão se desfazia
Emparedado à sombra da renúncia?

Assim foi a casa, a cozinha, o quintal
E a fração do almoço,
Como proclamar o diário da boca
E assim a obrigação de dobrar lençóis...
O sol - maior que os quartos - e a terra nos vestiam de intervalos

Entre os inventários, a ruína
O rito das traças, a melodia devorada
Fora da sala o incompleto palácio

E a oração da tarde
A percorrer a ingênua cidade

O anúncio da hora prévia
E exata da verdade

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O ator (Eucanaã Ferraz - 1961)

Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,

embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:

nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza

que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos

em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,

sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Com os mortos (Antero de Quental - 1842-1891)


Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Consolo na praia (Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
 
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
 
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.