domingo, 31 de julho de 2011

Não te quero senão porque te quero (Pablo Neruda - 1904-1973)

Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Quero-te apenas porque a ti eu quero,
a ti odeio sem fim e, odiando-te, te suplico,
e a medida do meu amor viajante
é não ver-te e amar-te como um cego.

Consumirá talvez a luz de Janeiro,
o seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história apenas eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.

Busco um sinal teu em todas as outras (Pablo Neruda - 1904-1973)

Busco um sinal teu em todas as outras,
no brusco, ondulante rio das mulheres,
tranças, olhos meio submersos,
pés claros que resvalam navegando na espuma.

De repente parece-me que te distingo as unhas
compridas, fugitivas, sobrinhas duma cerejeira,
e é o teu cabelo que passa outra vez e parece-me
ver arder na água o teu retrato de fogueira.

Olhei, mas nenhuma tinha a tua pulsação,
a tua luz, a argila escura que trouxeste do bosque,
nenhuma tinha as tuas minúsculas orelhas.

Tu és total e breve, única entre todas,
e assim contigo vou percorrendo e amando
um vasto Mississípi de estuário feminino.

sábado, 30 de julho de 2011

Enojo (Fagundes Varela - 1841-1875)

Vem despontando a aurora, a noite morre,
desperta a mata virgem seus cantores,
medroso o vento no arraial das flores
mil beijos furta e suspirando corre.

Estende a névoa o manto e o val percorre,
cruzam-se as borboletas de mil cores,
e as mansas rolas choram seus amores
nas verdes balsas onde o orvalho escorre.

E pouco a pouco se esvaece a bruma,
tudo se alegra à luz do céu risonho
e ao flóreo bafo que o sertão perfuma.

Porém minh'alma triste e sem um sonho
murmura olhando o prado, o rio, a espuma:
como isto é pobre, insípido, enfadonho!

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Anticonsumo (Ferreira Gullar - 1930)

Como vai longe o dia, Maninho,
em que a gente podia ser comum

Entre ervas burras, folhas molhadas de mamona
e salsa
a gente podia ser
simplesmente
nossas mãos nossos pés nossos cabelos
e o que queimava dentro
no escuro

Como vai longe o tempo como as águas
batendo na amurada
                               alegremente
como os peixes
vivendo no seu músculo
o mistério do mundo

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Para quê? (Florbela Espanca - 1894-1930)

Para quê ser o musgo do rochedo
Ou urze atormentada da montanha?
Se arranca a ansiedade e o medo
E este enleio e esta angústia estranha

E todo este feitiço e este enredo
Do nosso próprio peito? E é tamanha
E tão profunda a gente que o segredo
Da vida como um grande mar nos banha?

Pra quê ser asa quando a gente voa,
De que serve ser cântico se entoa
Toda a canção de amor do Universo?

Para quê ser altura e ansiedade,
Se se pode gritar uma Verdade
Ao mundo vão nas sílabas dum verso?

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Retratar a tristeza... (Marquesa de Alorna - 1750-1839)

Retratar a tristeza em vão procura
quem na vida um só pesar não sente,
porque sempre vestígios de contente
hão de surgir por baixo da pintura;

porém eu, infeliz, que a desventura
o mínimo prazer me não consente,
em dizendo o que sinto, a mim somente
parece que compete esta figura.

Sinto o bárbaro efeito das mudanças,
dos pesares o mais cruel pesar,
sinto do que perdi tristes lembranças;

condenam-se a chorar, e a não chorar,
sinto a perda total das esperanças,
e sinto-me morrer sem acabar.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Funeral de um professor ou dia de pagamento (Jairo Cézar - 1977)

Este contracheque que tens
na mão escondido,
é dinheiro menor
e ainda dividido.

É de bom tamanho,
nem pouco, nem muito,
é a parte que te cabe
deste sistema imundo.

Não é dinheiro grande,
é dinheiro medido,
é o dinheiro que não querias
nem para teu inimigo.

É um dinheiro grande
para teu esforço pouco,
mas te sentirás mais néscio
que um ébrio, um louco.

É um dinheiro grande
para teu estudo parco,
porém mais que leproso
te sentirás fraco.

É um dinheiro grande
para tua luta pouca,
mas à esmola dada
não se abre a boca.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Boda espiritual (Manuel Bandeira - 1886-1968)

Tu não estás comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a... Afago-a...
Ah, como a minha mão treme... Como ela é tua...

Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra n'água.

Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso...

Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo...

E te amo como se ama um passarinho morto.

domingo, 24 de julho de 2011

O choro do gado (Antenor Moraes - 1881-1955)

Aquele grande borrão
que se vê junto ao umbu,
de sangue esparso no chão,
é sinal de carneação
que se fez de algum zebu.

E quando no céu não arde
mais o disco do calor,
o gado, num grande alarde,
enche de choros a tarde,
em tristes berros de dor.

É que a rês tem sentimento,
sente saudades também,
e expressa seu sofrimento,
em um profundo lamento,
chorando a falta de alguém.

sábado, 23 de julho de 2011

A prostituta (Manuel Ribeiro - 1878-?)


Nessa viela, onde mal entra o ar,
viceja a pobre cortesã do vício
que, como outro qualquer que tem ofício,
aluga o corpo para o sustentar.

Seus beijos dá-os já sem sacrifício
a todo aquele que a quiser beijar.
E de tantos gemidos abafar
só no seu peito d'ais se encontra indício.

Toda a tristeza que há na vida - e é tanta! -
sempre nessa alma um eco vai deixando
e para alívio dos seus males canta.

Mas julga a gente que ela está cantando,
ouvindo a voz gemer-lhe na garganta,
ela coitada, está mas é chorando.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Vai-te, fera cruel, vai-te, inimiga (Bocage - 1765-1805)

Vai-te, fera cruel, vai-te, inimiga,
horror do mundo, escândalo da gente,
que um férreo peito, uma alma que não sente,
não merece a paixão que me afadiga.

O Céu te falte, a Terra te persiga,
negras fúrias o Inferno te apresente,
e da baça tristeza o voraz dente
morda o vil coração que amor não liga.

Disfarçados, mortíferos venenos,
entre licor suave em áurea taça,
mão vingativa te prepare ao menos;

e seja, seja tal a tua desgraça,
que ainda por mais leves, mais pequenos,
os meus tormentos invejar te faça.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Funeral do desgoverno provisório (Silvério de Paraopeba - 1763-1843)

Expirou, deu à costa, enfim morreu
o governo que fora improvisado;
se mal nascido foi, foi malfadado,
que a contento de todos faleceu!

Nenhuma mão piedosa o socorreu,
contumaz acabou no seu pecado,
sem pompa ou funeral é sepultado,
agouro que lhe fiz quando nasceu.

Bem que se foi de tão pequena idade,
causou nesta província tanto dano
que só deixa lembrança e não saudade.

Tirai, rebeldes, dele o desengano,
conhecei, que este monstro da maldade,
acabou de existir antes de um ano.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

barco da vida (Geraldo Carneiro - 1952)


cada dia que gasto é um espetáculo,
o espírito e a carne se conciliam
para fazer da minha vida um gesto
cujo sentido desconheço, mas pressinto.
alguma voz me acende o pensamento
e voo convertido em palavra-vida:
todos os mares hoje me pertencem:
sou eu na vastidão dos meus naufrágios.
a vida se projeta como um arco
cujos extremos são o sul e a morte.
não temo a finitude e o infinito:
tudo na vida é morte, vida-morte,
no fim fica o segredo do princípio.
sei que tenho o horizonte por limite
mas nessa vida-barco em que navego
alguma sempre-coisa principia.

terça-feira, 19 de julho de 2011

dissonância (Geraldo Carneiro - 1952)

depois do dia em que você morreu
(ou só morreu aqui dentro de mim)
enlouqueci, fiquei fora de si,
exorbitei, gastei exorbitâncias,
as ânsias do passado e do futuro.
em suma, eu me matei ou me morri
depois ressucitei e recitei
meus paradoxos, minhas paralaxes,
perdi a fé, o centro, o astro rei
os para-lamas da minha sintaxe,
só me restando como contraforte
o dom de me entranhar noutras criaturas
e fabricar fragmentos de poesia,
eu kamikase de mim mesmo
extravagando a esmo à-toa ao léu
sem direção, sem coração, sem lua
desorbitado para além de mim.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Lubricidade (Cruz e Sousa - 1861-1898)

Quisera ser a serpe venenosa
que dá-te medo e dá-te pesadelos
para envolver-me, ó flor maravilhosa,
nos flavos turbilhões dos teus cabelos.

Quisera ser a serpe veludosa
para, enroscada em múltiplos novelos,
saltar-te aos seios de fluidez cheirosa
e babujá-los e depois mordê-los...

Talvez que o sangue impuro e flamejante
do teu lânguido corpo de bacante,
de langue ondulação de águas do Reno,

estranhamente se purificasse...
Pois que um veneno de áspide vorace
deve ser morto com igual veneno.

domingo, 17 de julho de 2011

Eu não espero o bem que mais desejo (Vicente de Carvalho - 1866-1924)


Eu não espero o bem que mais desejo:
sou condenado, e disso convencido;
vossas palavras, com que sou punido,
são penas e verdades de sobejo.

O que dizeis é mal muito sabido,
pois nem se esconde nem procura ensejo
e anda à vista naquilo que mais vejo:
em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
ao meu amor desamparado e triste
toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
põe-se a sonhar o bem que não existe.

sábado, 16 de julho de 2011

Unidade (Raul de Leoni - 1896-1926)

Deitando os olhos sobre a perspectiva
das coisas, surpreendo em cada qual
uma simples imagem fugitiva
da infinita harmonia universal.

Uma revelação vaga e parcial
de tudo existe em cada coisa viva:
na corrente do bem ou na do mal
tudo tem uma vida evocativa.

Nada é inútil; dos homens aos insetos
vão-se estendendo todos os aspectos
que a idéia da existência pode ter;

e o que deslumbra o olhar é perceber
em todos esses seres incompletos
a completa noção de um mesmo ser...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Humildade (Cecília Meireles - 1901-1964)

Tanto que fazer!
Livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestadade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás da grande chuva,
e os mortos em redoma de cânfora.

(E uma canção tão bela!)

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Morrer (Ivan Junqueira - 1934)


Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir;

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.

Limbo (Ivan Junqueira - 1934)

Ali está. Alheio às minhas mãos,
informe e pequenino, tão
indeciso, iluminado apenas
de sua pouca e solitária luz.
Dorme na sombra que o circunda,
como no fundo de um casulo. Ignora
ainda o que o povoa, sequer
sabe que existe. Ali perdura
à espera do ritmo, da música.
Estrelas, insígnias, leves partituras.
(Que ouvidos as escutam?)
Está ali. Imóvel e silencioso,
a um passo da síncope e do gozo.
Ali está. Heráldico emblema
- o signo incógnito do poema.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Noite de abril (Sophia de Mello Breyner Andersen - 1919-2004)

Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas da aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera

Alguém que ela conhece.
E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.

Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro (Pablo Neruda - 1904-1973)

Nos bosques, perdido, cortei um ramo escuro
e aos lábios, sedento, ergui o seu sussurro:
era talvez a voz da chuva soluçando,
um sino partido ou um coração cortado.

Algo que de tão longe me parecia
oculto gravemente, coberto pela terra,
um grito ensurdecido por imensos outonos,
pela entreaberta e húmida negrura das folhas.

Ali, despertando dos sonhos do bosque,
o ramo de aveleira cantou na minha boca
e seu perfume errante subiu no meu critério

como se me procurassem de repente as raízes
que abandonei, a terra que perdi com a infância,
e ali fiquei ferido pelo aroma errante.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Soneto do amigo (Vinícius de Moraes - 1913-1980)

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho da minha alma multiplica...

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Os amores da abelha (Olavo Bilac - 1865-1918)

Quando, em prônubo anseio, a abelha as asas solta
e escala o espaço, - ardendo, exul do corcho céreo,
louca, se precipita a sussurrante escolta
de noivos zonzo, voando ao nupcial mistério.

Em breve, sucumbindo, o enxame arqueja, e volta...
Mas o mais forte, um só, senhor do excelso império,
segue a esquiva, e, em zunzum zeloso de revolta,
entoa o epitalâmio e o cântico funéreo:

toca-a, fecunda-a, e vence, e morre na vitória...
A esposa, livre, ao sol, no alto do firmamento,
paira, e, rainha e mãe, zumbe de orgulho e glória;

e, rodopiando, inerte, o suicida sublime,
entre as bênçãos da luz e os hosanas do vento,
rola, mártir feliz do delicioso crime.

sábado, 9 de julho de 2011

Pecadora (Eduardo Coimbra - 1864-1884)

Conheci-a feliz. Na fina transparência
do seu rosto gentil dum tom aveludado,
havia a nota ideal dum sonho imaculado,
e o perfume sutil da cândida inocência.

Restava-lhe inda a mãe. Que límpida existência,
no pequeno casebre antigo e sossegado!
Como o tempo corria alegre e perfumado!
Que esplêndido viver de luminosa essência!

Há dias encontrei-a. Ao vê-la, estremeci;
não era a mesma já, que em tempo conheci
de modesto roupão e olhar que alucinava.

Mas notei o cetim lustroso do vestido
tinha manchas sutis - vestígio dolorido
das lágrimas sem fim que a tristeza derramava.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

A lua no cinema (Paulo Leminski - 1944-1989)

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Estudo anatômico (Fontoura Xavier - 1856-1922)

Entrei no anfiteatro da ciência,
conduzido por mera fantasia,
e aprouve-me estudar anatomia,
por dar um novo pasto à inteligência.

Discorria com toda a sapiência
um lente, numa mesa em que jazia
uma imóvel matéria muda e fria,
a que outrora animara humana essência.

Fora uma meretriz. Seu rosto belo
pude, tímido, olhá-lo com respeito,
por entre negras ondas de cabelo...

A um gesto do lente, contrafeito,
rasguei-a com a ponta do escalpelo
e não vi o coração dentro do peito!...

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Arte de amar (Thiago de Mello - 1926)

Não faço poemas como quem chora,
nem faço versos como quem morre.
Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira
quando muito moço; achava que tinha
os dias contados pela tísica
e até se acanhava de namorar.

Faço poemas como quem faz amor.
É a mesma luta suave e desvairada
enquanto a rosa orvalhada
se vai entreabrindo devagar.
A gente nem se dá conta, até acha bom,
o imenso trabalho que amor dá para fazer.

Perdão, amor não se faz.
Quando muito, se desfaz.
Fazer amor é um dizer
(a metáfora é falaz)
de quem pretende vestir
com roupa austera a beleza
do corpo da primavera.
O verbo exato é foder.
A palavra fica nua
para todo mundo ver
o corpo amante cantando
a glória do seu poder.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Sua mão (Onestaldo de Pennafort - 1902-1987)

A mão do meu suave amor é leve
como uma asa de pássaro a voar...
Tem todas essas curvas que descreve,
pelas areias úmidas, o mar...

De longe, às vezes, num adejo breve,
a alma me afaga, me afagando o olhar...
Mão que se cobre de um alvor de neve
se acaso tento os dedos beijar!

Ninguém diria que essa mão serena,
que tanta força tem, sendo pequena,
pode, num gesto de emoções febris,

mudar o curso das eternidades,
desmoronar impérios e cidades,
erguer montanhas... me fazer feliz!

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Andorinha (Hermes Fontes - 1888-1930)


À esfera, cujo azul glorioso abril desvenda
para a festa da luz, prodigamente esparsa,
a emigrante voltou. A sua alma é uma lenda,
do éter bordada na alta e invisível talagarça.

Alvinegra, pelo ar, ei-la que o voo emenda,
brinca, ziguezagueia, já a descer - disfarça,
alteia... e, assim, até voltar à humilde tenda,
onde tem glórias de águia e vaidades de garça.

E, quando, entre outras, chega enchendo o espaço de asas,
o coração lhe fica onde a prole se aninha,
no beiral de uma torre, erguida às coisas rasas...

A vida humana é tão diversa, é tão mesquinha!...
- Pudéssemos nós ter, no recesso das casas,
a alegria feliz do lar dessa andorinha!...

domingo, 3 de julho de 2011

Acorda amor (Mario Benedetti - 1920-2009)

Bonjour buon giorno guten morgen
acorda amor e presta atenção
só no terceiro mundo
morrem quarenta mil crianças por dia
no plácido céu aberto
pairam os bombardeios e os abutres
quatro milhões têm aids
a cobiça depena a amazônia

buenos días good morning acorda
nos computadores da vovó onu
não cabem mais cadáveres de ruanda
os fundamentalistas degolam estrangeiros
prega o papa contra a camisinha
havelange estrangula maradona

bonjour monsieur le maire
forza italia buon giorno
guten morgen ernst jünger
opus dei buenos días
good morning hiroshima

acorda amor
que o horror amanhece.

Desiludido (Alceu Wamosy - 1895-1923)


Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa, é céu que não se alcança,
mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
esse céu mentiroso, é um céu que foge e avança,
se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia,
hás de o teu coração, repleto de alegria,
para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
e que só se é feliz, dando-se o mesmo apreço
ao gozo que se goza, e à mágoa que se sofre!

sábado, 2 de julho de 2011

Último degrau (Adelino Veiga - 1848-1887)

Ao transpor os umbrais do teu prostíbulo,
busquei a embriaguez do esquecimento;
deixei lá fora a dor e o sentimento,
pisando este degrau como patíbulo.

Dá-me a cruz de teus braços, oh!... perdida!...
O amor te enlameou e envileceu...
Não és, não és, mulher, mais vil do que eu,
Naná!... Perdi a vida, dá-me a vida!...

E quando um dia alguém te perguntar
como é que pudeste ainda amar,
mulher, que sempre o amor vendido tens,

dize-lhe: - Era um perdido, um desgraçado;
dei-lhe o meu coração no vil mercado...
Pobre imundície que se atira aos cães!...

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Acrobacias (Ana Paula Inácio - 1966)

sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos seus membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.