domingo, 30 de junho de 2013

Há certos rios que é preciso rever (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Há certos rios que é preciso rever.
Por isso volto, Ricardo, àquelas margens
Onde na sombra um verde descansava
E um canteiro de limo sob os nossos pés
Adiante desaguava. Volto, seguindo a viagem
De mim mesma e aos poucos convergindo
Oculta, vária
Até fechar um círculo e entender
Essa asa de fogo sobre as coisas.
Talvez neste canto eu te direi
Das estreitas passagens, do lodo
Convulsivo dos ancoradouros, dos funerais
Que vi, para chegar à luz da primeira paisagem.
Meus olhos deram volta à ilha.
Sigo pelos caminhos, transfiguro-me
Sei que um igual destino eu já cumpri
E ao mesmo tempo em tudo me descubro
Casta e incorpórea. Sou tantas,
Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me
Pródiga me faço larva e asa.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A esse papo Indo-lente (Elisa Lucina - 1958)

Quando me perguntam depois de
"Ó que lindos olhos"...
Esses olhos são seus?"
Me sinto como se perguntassem
se o sol é rei mesmo
ou uma espécie de lâmpada de mil
Me sinto constrangida como se tivesse
sido possível a alguém alguma vez
confundir lata de goiabada com fruta de pé.
me sinto velha virada há milênios
Aniversariada por várias civilizações e nada esqueci.
Me sinto madura madeira escaldada
pra lá destas idades do agora.
Sou dos longínquos tempos de goiabeiras
mangueiras, formigas cabeçudas
tanajuras de umidade, baratas cascudas
e canaviais nos quintais
Sou ainda mais
na magia do que havia nesses anais,
sou do tempo em que era bom
nascer com olhos de esmeralda
e a artista a ser cumprimentada
era a mãe-natureza
pela proeza de olhos ser olhos
e lente ser lente.
Sou do tempo em que eu era
toda realeza
e com certeza não se compravam olhos
em shoppings, meus deus.
Sou do tempo em que meus olhos
Só podiam ser meus.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Late ilusão (Elisa Lucinda - 1958)

Em noite de lua cheia
geme ao meu lado o meu cão
acabado de chegar
late ilusões ao meu ouvido
e meu sentido
diz que ele veio pra ficar
Mas a vida passa e vira
páginas da folhinha
o que era cheia e domingo
foi minguando em segundas e terças
e meu homem, minha besta
voltou novo e repetido
como se fosse ficar até sexta
três dias de ele chegando de madrugada
Três dias de ele nadando na minha água
Conversas de homem e mulher
beijo na boca
tirar a roupa
novos latidos de ilusão no meu duvido
meu homem partiu na derradeira manhã
todo agradecido
dos momentos de amor que uivou comigo
eu fiquei lua sozinha no céu com aquela saudade amarela
e ele na terra cantando latindo partindo
uivando pra ela.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Quanto mais vela mais acesa (Elisa Lucinda - 1958)

Um dia quando eu não menstruar mais
vou ter saudade desse bicho sangrador mensal
que inda sou
que mata os homens de mistério

Vou ter saudade desse lindo aparente impropério
desse império de gerações absorvidas

Desse desperdício de vidas
que me escorre agora mês de maio.

Ensaio:

Nesse dia vou querer a vida
com pressa
menos intervalo entre uma frase e outra
menos respiração entre um fato e outro
menos intervalos entre um impulso e outro
menos lacunas entre a ação e sua causa
e se Deus não entender, rezarei:

Menos pausa, meu Deus
menos pausa.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Se eu soubesse brincar (Pedro Nava - 1903 - 1984)

Si eu tivesse seis anos si soubesse brincar
pedia ao Menino Jesus que viesse me dar
seus brinquedos coloridos

E ele dava mesmo dava tudo
dava brinquedos variados de todas as cores
brinquedos sortidos
dava bolas lustrosas pra mim soltar de noite e
mandar todas pro céu com minha reza

Dava bolas dava quitanda dava balas
e havia de ficar melado, todo doce de minha baba.

E dava homenzinhos, arvinhas, bichinhos, casinhas e
em minhas mãos ingênuas eu tirava o mundo novinho,
cheiroso de cola e verniz, das caixas nurembergue
pra recomeçar deslumbrando a brincadeira da
vida

O Menino Jesus dava tudo si eu fosse menino
si soubesse brincar pra brincar com ele.

domingo, 23 de junho de 2013

Noturno de Chopin (Pedro Navs -1903 - 1984)

Eu fico todo bestificado olhando a lua
enquanto as mãos brasileiras de você
fazem fandango no Chopin

Tem uma voz gritando lá na rua:
Amendoim torrado
tá cabano tá no fim...
Coitado do Chopin! Tá acabando tá no fim...

Amor: a lua tá doce lá fora
o vento tá doce bulindo nas bananeiras
tá doce esse aroma das noites mineiras:
cheiro de gigilim manga-rosa jasmim.

Os olhos de você, amor...

O Chopin derretido tá maxixe
meloso
gostoso
(os olhos de você, amor...)
correndo que nem caldo
na calma da noite belo horizonte.

sábado, 22 de junho de 2013

No alto (Machado de Assis - 1839 - 1908)

O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro lhe deu a mão.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Flor da mocidade (Machado de Assis - 1839 - 1908)

Eu conheço a mais bela flor;
És tu, rosa da mocidade,
Nascida aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor.
Tem do céu a serena cor,
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor,
És tu, rosa da mocidade.

Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.
Teme acaso indiscreta mão;
Vive às vezes na solidão.
Poupa a raiva do furacão
Suas folhas de azul celeste.
Vive às vezes na solidão,
Como filha da brisa agreste.

Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flor morta já nada val.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra é mais jovial
Todo o bem nos parece eterno.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Mulher proletária (Jorge de Lima - 1895 - 1953)

Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Cataplaft (Lau Siqueira - 1957)

com seus tacapes digitais
e tangas pierre cardin
os cariris contemporâneos
invadem o shopping
e jantam champignons
com xerém
no self-service

ajustando as penas
desajustam os cocares
da cultura pagã

cultuam o corpo
em academias
e investem fortunas
da floresta tropical
nas delícias
da nova moda verão

já sem matas
matam-se nas guerras
da pós-modernidade

disputas sangrentas
por hectares de asfalto
ou pontos de venda
de coca
(ou pepsi)

e dançam o rap
da globalização

com as mãos enfiadas
nas algemas ideológicas
do terceiro milênio

terça-feira, 18 de junho de 2013

1965 (Lau Siqueira - 1957)

rabisquei
poemas
e insultos
nos muros
quem dera

meus olhos
de menino

tão verdes
tão puros

nas mãos
fechadas

butiás maduros

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Os olhos do meu pai (Lau Siqueira - 1957)

— "Detenham o homem!"
(Alguém tremeu no brilho da faca.)
— "Comunista!" (Disseram.)
— "Canalhas!" (Pensei.)

Eu vi o mundo
refletido nos olhos do meu pai.
Verdes e brilhantes: a cor
do desespero, do destempero, do...
No Presídio Municipal de Jaguarão,
vertiam lágrimas das paredes
e o inverno pendia nas grades.

— "Comunista!"(Gritaram.)
— "Eu não sou comunista!" Disse ele
com os mesmos olhos verdes fixos no vazio.

Eu vi a tristeza brilhando
como um clarão de relâmpago
nos olhos do meu pai.

Eu vi...

domingo, 16 de junho de 2013

Essa infanta (Jorge de Lima - 1895 - 1953)

Essa infanta boreal era a defunta
em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de óleos renovados.

Hoje é rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair são dela;
dela é a visão dos homens subterrâneos,
consolo como chuva desejada.

Tendo-a a insônia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanhã surgirão campos mais mortos.

Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.

A esperança (Augusto dos Anjos - 1884 - 1914)

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!

sexta-feira, 14 de junho de 2013

A ideia (Augusto dos Anjos - 1884 - 1914)

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Soneto (Junqueira Freire - 1832 - 1855)

Arda de raiva contra mim a intriga,
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.

Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.

Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.

Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Louco (Junqueira Freire - 1832 - 1855)

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha:
Suas ideias não cabiam nele;
Seu corpo é que lutou contra sua alma,
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários;
Foi um duelo, na verdade insano:
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino a combater com o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho
Soltou-se-lhe do nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.

Agora, sim - o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas,
E zombando o chamais, portanto: - um louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
aproxima-se mais à essência etérea.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Santa Maria (Fabrício Carpinejar - 1972)

Morri em Santa Maria hoje.
Quem não morreu?
Morri
na Rua dos Andradas, 1925.
Numa ladeira encrespada de fumaça.

A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul.
Nunca uma nuvem foi tão nefasta.

Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia.
Seguirá sozinha, avulsa,
página arrancada de um mapa.

A fumaça corrompeu o céu para sempre.
O azul é cinza,
anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.

As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte
nunca mais será controlada.

Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.

Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.

Morri sufocado de excesso de morte;

como acordar de novo?

O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço.

Não vão se lembrar de nada.
Ou entender como se distanciaram de repente do futuro.

Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo
da mãe, do pai, dos irmãos.

Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças.
As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.

Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu
As palavras perderam o sentido

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O resignado (Jorge Emil - 1970)

Corri com tanta revolta
que tombei exausto no lugar exato
donde não saí, dando voltas
idiotas à minha volta.

No afã de ser preciso,
fiz todas, todas as emendas.
Mas perfeita era a versão primeira,
agora extraviada.

Vulcânicos, irrompem os tiques
de nossos pais e dos mais
impensáveis avós, pipocam em nós
e convém não coçar.

Dor e culpa me dão prumo.
Premido por mãos ancestrais,
queira ou não, meu sumo
exala seu cheiro cristão.

domingo, 9 de junho de 2013

Bazar (Jorge Emil - 1970)

Eu já devia ter partido...
Contudo, ainda sou capaz
de ler revista feminista no dentista
e jornal cultural no recital.
Me conte quantas vezes você pulou da ponte.
Afora ir longe com um tapa, só faço viagens através do mapa.
2 da manhã; estou persuadido
de que não há amor; mas aí
um parente tosse no quarto ao lado.
Eu tu ele e ah bem nós vós eles mas em
verdade ninguém. Mundo louco, não sei
se estás todo oco ou se está tudo
OK. Que entusiasmo: breve serei fantasma.
Sou ruim sim — ó minha cópia
infinitamente melhor que eu próprio.
Sofri o acidente, estou cego?, quero
ser o líder. Rebolou demasiado acabou
perdendo o rebolado. Não sei por que cargas
d’água quase morri de sede.
A minha ótica, longe de ótima, é patética.
Descompreendo a coisa enfática — tu sem migo, eu
sem vosco... Erro tosco de gramática, de amor.
Descoberta um dia
a fonte de toda angústia a fonte de toda
angústia de descobrir.
Eu já devia ter partido... Não houve jeito:
sobrevivi. A culpa é do comprimido.

sábado, 8 de junho de 2013

A cabra (Florisvaldo Mattos - 1932)

Talvez um lírio. Máquina de alvura
Sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra, o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me, perdurando nos ouvidos,
laborada em marfim — luz e presença
de reinos pastoris antes servidos —,

teu pêlo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Lua secreta (Florisvaldo Mattos - 1932)

Conosco se parecem os desertos.
Quando seres gentis vão viver juntos,
é como acalentar sonhos defuntos,
quando melhor será vê-los despertos.

Se para mim são sempre bons assuntos
(os sonhos), seguem eles, sempre abertos
às batalhas da vida nos desertos,
se de vãs esperanças, devoto, unto-os.

Não se deve elidir a quem se ausenta
de oferecer um ombro, à mínima hora,
em que a lua socorre e cumprimenta.

Não há como fugir. Estrada afora,
muito, como de sábio, o corpo atenta:
amar, se precipício, nos melhora.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Sutilíssimo eterno (César Leal - 1924)

Sutilíssimo eterno que habita
minhas saletas interiores
onde trago o tempo guardado
noturno e resignado

sutilíssimo eterno interior
que como um tálamo é
em minha alma limpa e sofrida
como água dormida em pedra

que eterna seiva alimenta
este tempo em mim retido
plumagem livre de flor
forma exata imperecível

sinto-te assim como um trunfo
branda coroa do eterno
além das nuvens, das águas
ouço o teu metal desperto

se existes no ser completo
na cinza móvel das sombras
por que retiras de mim
tudo o que em mim não é pântano?

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Análise da sombra (César Leal - 1924)

Analisa-se da sombra
seu caráter permanente:
pela manhã retraindo
a imagem, à tarde crescente.

E aquele instante em que a sombra
adelgaça o corpo fino
como se no chão entrasse
quando o sol se encontra a pino.

Quem a esse instante mira
em oposição ao lado
onde o sol era luz antes
logo vê o passo vago

da sombra que agora cresce
o corpo de onde se filtra
até fundir-se no limbo
que em torno dela gravita.

Forma esse limbo a coroa
que as sombras traz federadas:
soma de todas as sombras
num só nó à noite atadas.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Mas eu quero morrer... (Mauro Cappelletti - 1927 - 2004)

Mas eu quero morrer...
Oh não me olheis feio,
morrer somente com o pensamento,
isso, figurar-me morrer...

Sou fraco e este pensamento
me dá força: enxuga as lágrimas
mesmo aquelas que não querem sair

é um pensamento que profundamente
penetra o espírito
e é tão doce sereno tranquilo
que parece - devo repeti-lo - parece
como um trago de morte.

Quando dele tiver bebido toda a taça
dormirei, como se dorme bêbado,
suavemente.


* Traduzido pelo poeta Alexei Bueno

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Commiato (Mauro Cappelletti - 1927 - 2004)

A coisa maior,
diz a filosofia,
é a morte: o tudo e o nada.
Mas a coisa mais bela,
diz o poeta,
é esta centelha:
a existência.


* Este poema foi traduzido por Alexei Bueno

domingo, 2 de junho de 2013

São filhas do sol as estrelas (Mauro Cappelletti - 1927 - 2004)

São filhas do sol as estrelas,
bem sei, disse aquele velhinho
que tratava das flores, que a elas
regava, a tremer, de mansinho,

recordas? e em meio das flores
narrava, narrava aos meninos
a história de sonhos, de amores,
a história de encantos divinos,

com sua voz solene narrando,
descrevendo com a mão tremente.
Vejo-o agora: vem se chegando
até mim, no amieiro virente.

Vem a mim trazer o louvor,
a homenagem do uso aldeão
que é devida ao novo doutor;
novas crianças traz pela mão.

- Avozinho, conta-me a história,
a mais verdadeira que há?
- Mas tu a sabes bem de memória
e além disso... és um homem já!

Oh, acreditas? Mas na alma temos
uma voz dizendo - meninos,
vovô, se nascemos, meninos
vivemos, meninos morremos.


* Poema traduzido por Alexei Bueno

sábado, 1 de junho de 2013

Marinha (Emílio Moura - 1902 - 1971)

Grito teu nome aos ventos.
Olha: há uma revoada marítima.
O horizonte se afasta, há um ritmo largo
de ondas que se espreguiçam.

Velas esguias,
para onde voam?

Sulcos de prata,
para onde levam?
Amiga, amiga! Ah, dize-me depressa:
Quem grita aos ventos o teu nome?
O mar, ou eu,
o grande mar que o está cantando?