segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Bem ali na esquina (Jorge Emil - 1970)

Alguns rostos vão se agregando a outros,
parecidos. O saldo não é saudade,
mas um gosto salgado, que até agrada.

Passou, num susto. Hoje parecem justos
os muitos clichês sobre a vida fugaz
- dos quais um jovem foge enquanto pode.

'Tudo de novo? Eu não aguentaria.
Como pude atravessar tanto tumulto
e esquecer aquele insulto inesquecível?'

Na volta da esquina, ele olha pro chão
e, ao passo que volta a seus passos aos nove,
descobre que seu filho é um adulto.

domingo, 29 de setembro de 2013

Estar pronto é tudo (Jorge Emil - 1970)

Meus para-choques!
Com dois cortes
- este e este -
e muita sorte,
sobreviveste,
à pior peste
que grassou ao norte,
às batalhas leste-oeste
e à grande fome ao sul.
Mas evita fazer festa
e não tires a veste
de combate.
Não viste
as ameaças da morte
partindo de toda parte?
Podem chegar numa tarde
de trégua como esta.
O homem, treinado e triste,
é o eternamente prestes
a passar por novos testes.

sábado, 28 de setembro de 2013

Velha história (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias…
Os únicos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.

E o homem se lembrou dos outros caminhos.
Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
Lá havia tempestade e havia bonança
Havia sombra e havia luz.

O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Bilhete a Baudelaire (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Poeta, um pouco à tua maneira
E para distrair o spleen
Que estou sentindo vir a mim
Em sua ronda costumeira

Folheando-te, reencontro a rara
Delícia de me deparar
Com tua sordidez preclara
No velha foto de Carjat

Que não revia desde o tempo
Em que te lia e te relia
A ti, a Verlaine, a Rimbaud...

Como passou depressa o tempo
Como mudou a poesia
Como teu rosto não mudou!

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Sonho do mármore (Thiago de Mello - 1926)

Teu corpo se modela
no mármore do meu sonho.
Cântico morno.

Te desenho no desejo,
teu corpo me sai da mão:
um rumor de asas.

Chegas altiva de carne
banhada de resplendor:
delícia extrema.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O vértice da luz (Thiago de Mello - 1926)

Sem teu passo pela casa,
sem teu corpo no meu corpo,
sinto falta de mim mesmo:
virás cantando.

É perfumada a verdade
das tuas coxas: no vértice
está a luz do meu caminho,
profundo canto.

Como te vou receber?
Tu amanheces sabendo
que o teu riso abre o meu sol
de cada dia.

Vem, abre os braços, e canta
a canção que a solitária
madrugada me ensinou:
meu peito, teu lugar.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Antianalgésica (Alexandre Pilati - 1976)

a aguda dor das coisas
não é água, meu camarada

dói dia-a-dia agora
na ida e na vinda

do seu diafragma
e também adia-se

para amanhã
como o trabalho

do moço com pele de árvore
que vai varrendo as ruas

a dor das coisas
late latente marca

de dedos sujos
com crime ou sonatas

imemoriais pegadas
da humana vida

sério ciclo em roda
de bicicleta ou engrenagem

gasta, gasta, gasta
como cotidianamente

teus dentes vão sumindo
em contato que o que te alimenta

e a dor é deus
entrando em ti

sem licença
sem censura ou vaselina

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

auto-atestado (Alexandre Pilati - 1976)

tenho a mesma idade de David Beckham

em criança aprendi a respeitar os mais velhos e a ter
vergonha deles
tomei alguns antibióticos, analgésicos, usei supositórios,
fantasiei aventuras
senti dores no corpo, tive uma infecção intestinal e
ganhei concursos literários na escola
fraturei o perônio, não acredito em duendes e nada
disso mudou o fato de que

tenho a mesma idade de David Beckham

nunca repeti o ano, mesmo sendo um aluno mediano
que lia pornografia e filosofia
tenho calças jeans da moda compradas em liquidações
de lojas de departamento
atendo ao telefone com cordialidade fingida quase
sempre, pois odeio telefone
dirijo com destreza impressionante e tenho horror à
canalha, o que me faz lembrar que

tenho a mesma idade de David Beckham

perdi a virgindade, fiz discursos, chorei algumas vezes
e falo da doméstica como se ela integrasse uma raça
paralela
chorar é cada vez mais difícil, agora que tenho mais
escravos e acesso rápido à www
compadeci-me dos desesperados, dos pobres, das
prostitutas e de meus CD´s e livros
nunca transei com uma puta ou cheirei cocaína mas,
mesmo inconscientemente, sei que

tenho a mesma idade de David Beckham

assisto ao futebol, à novela, ao jornal, ouço Chico e
Caetano e sou latino-americano
adoro praia e luxo, odeio gerúndios e loiras oxigenadas,
jazz e axé music
me acho normalmente mais inteligente que os outros
mesmo sabendo que sou uma besta como qualquer um
sinto-me mais limpo que o porteiro e o tumulto febril
da cidade e do cyberespaço parecem sempre me
anunciar que

tenho a mesma idade de David Beckham

creio-me brasileiro, possua uma dívida com a receita
federal e meus ideais sempre estiveram à esquerda
não jogo lixo pela janela do carro nem de casa, uso
cinto de segurança e aliança
já acreditei em Deus e no PT, hoje comporto-me bem à
mesa e isso é tudo que me basta
tenho fé no cinema nacional e assino revistas semanais
que me lembram de que

tenho a mesma idade de David Beckham

já dei jóias de presente e não sou afeito a escândalos,
mesmo sendo desabusado e cínico
sou ateu e li literatura: Drummond, Cabral, Dostoievski,
Gullar, Machado, Kafka, Rulfo, Brecht, Beckett, Neruda
nada disso basta para quem mora na asa sul, no plano
piloto, perto do eixo sul
pois sempre sinto a iminência de um terremoto capaz
de me revelar outra vez que

tenho a mesma idade de David Beckham

ando temeroso pela rodoviária às duas horas da tarde
de uma véspera de feriado
nunca vou às cidades satélites e condeno o trabalho
voluntário e o jejum
meu carro é um balão de ar condicionado singrando
ruas da capital federal às 7:00 am
prefiro a macumba à igreja evangélica para tentar
esquecer que

tenho a mesma idade de David Beckham

saberia usar como ninguém uma metralhadora se
morasse no Oriente Médio
não jogo videogame e condeno filmes violentos, mas
isso não me impede de às vezes tomar água com gás
já tive o nome negativado durante cinco anos, mas a
dívida expirou e hoje posso enganar qualquer um
grudo as melecas que retiro do nariz embaixo de minha
mesa de trabalho, onde há um aviso dizendo:

tenho a mesma idade de David Beckham

sou professor e utilizo numa boa o sistema urbano de
transportes coletivos
uma bala pode a qualquer segundo estourar em meu
peito ou em minha têmpora
e nunca terei sido entrevistado, não terei causado
loucura em ninguém, nem sequer matado alguém que
merecesse morrer
também não terei salvo nenhuma vida ainda que
queime 80% do corpo
mas sempre saberei que

tenho a mesma idade de David Beckham

domingo, 22 de setembro de 2013

quebra do decoro rudimentar (Alexandre Pilati - 1976)

“saio de meu poema
como quem lava as mãos”

cabral falou tirando a cera do meu ouvido

“tenho apenas duas mãos”
sussurrou sob seu túmulo drummond

quisera gritar tudo isso
com palavras feitas de miçangas
num outdoor do setor comercial sul

mas estaria contente
apenas com fato matemático
(porém cheiro de plumas e flores)
de conseguir pagar todas as dívidas que contraí

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Pinga (Cacaso - 1944 - 1987)

garrafa de pinga
sem garra na farra na cana
caninha
no cano no gole na gula na rixa
cana canícula
o homem sua na cana dura
cana não é na cama
pinga não é na cama
pinga não é na garra
cana não é garapa
pinga sumo garra rapa
agarra na pinga pura
dorme o sono e sua

açúcar do sono mole
melado do corpo escorre

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Cântico (Domingos Carvalho da Silva - 1915 - 2004)

Do teu corpo nasce um lírio
que se dissolve num lago
onde um cisne de marfim
persegue estrelas e carpas.
Onde o sol molha no frio
das águas o rosto ardente.
Onde os salgueiros mergulham
as pontas na rama verde.
Do lago desponta a noite
com sua face ardósia,
engalanada de círios
e perfumada de morte.
Da noite nasce um relâmpago
Com sete pontas de luz:
sete espadas pra manchar
de sangue o ventre da lua.
Teu corpo é assim: como as ondas
de um mar rouco, em desvario,
de onde me assalta, em sua fúria,
o monstro do Apocalipse.
Cardo de agudos espinhos
ou sensitiva de carne,
teu corpo é um trigal de lanças
e morre ao toque dos lábios.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Maracatu (Ascenso Ferreira - 1895 - 1965)

Zabumbas de bombos
estouros de bombas
batoques de ingonos,
cantigas de banzo,
rangir de ganzás...

— Loanda, Loanda, aonde estás?
Loanda, Loanda, aonde estás?

As luas crescentes
de espelhos luzentes,
colares e pentes,
queixares e dentes
de maracajás...

— Loanda, Loanda, aonde estás?
Loanda, Loanda, aonde estás?

A balsa no rio
cai no corrupio,
faz passo macio,
mas toma desvio
que nunca sonhou...

— Loanda, Loanda, aonde estou?
Loanda, Loanda, aonde estou?

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Metamorfose (Cassiano Ricardo - 1895 - 1974)

Meu avô foi buscar prata
mas a prata virou índio.
Meu avô foi buscar índio
mas o índio virou ouro.

Meu avô foi buscar ouro
mas o ouro virou terra.
Meu avô foi buscar terra
e a terra virou fronteira.

Meu avô, ainda intrigado,
foi modelar a fronteira:
E o Brasil tomou a forma de harpa.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Briga no beco (Adélia Prado - 1935)

Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

domingo, 15 de setembro de 2013

Servidão de passagem (Haroldo de Campos - 1929 - 2003)

poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia

poesia em lugar do homem
pronome em lugar do nome

homem em lugar de poesia
nome em lugar do pronome

poesa de dar o nome

nomear é dar o nome

nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome

nomeio a fome

sábado, 14 de setembro de 2013

Extensão do Mito (Mariana Ianelli - 1979)

Contam que ele desceu
Ao vale dos esquecidos
E cantou acima do suplício.

Que apaziguou o vento,
Estufou as vinhas,
De olhos fechados
Seduziu a serpente
Como se replantasse
O primeiro jardim.

Que foi odiado, despedaçado,
Lançado ao mar,
Para nunca mais
Uma voz se atrever à harmonia.

Mas não contam que uma mulher
Reuniu seus fragmentos
E encantou as mulheres da ilha,
Que assim Orfeu amou Eurídice,
Finalmente em corpo e lira.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Vigília (Mariana Ianelli - 1979)

Esta noite
Nem o gozo do pensamento
Te entretém.

Teu sentimento
É todo um espanto seco
Como se te mirassem
Os olhos da inocência
E desta vez não te acudisse
O desprezo.

Te comove
Teu sangue trabalhando
Em silêncio,
Resvalar te comove,
Pode ser teu ato extremo.

Nada se põe entre esta noite
E a perfeição
Da tua órbita no tempo.

Só tuas mãos ainda servem
De instrumento,
E elas se deitam.
Podem alcançar adiante,
Escolhem alcançar
A transparência.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Segunda vez (Mariana Ianelli - 1979)

Quando te chamarem
E a hora for grave,
Não respondas,
Não respondas ainda.

Repara antes no teu nome,
Separa-te dele, levita.
Repara no que não foi batizado,
Escarlate, atroz, que extasia.

Procura as mãos
Que te cavaram para fora,
Inaugurando o teu passado,
Imiscuindo-te entre a fome e o frio.

A estocada de luz, imagina,
Que te cristalizou no tempo
E assimilou a tua forma
Na forma viva de um grito.

Tua mãe, imagina tua mãe,
Quanto ela envelheceu num dia,
Os olhos mais alucinados
Que os olhos de um assassino.

No teu sono sem pecado
Procura o que não pode ser limpo –
Todo o impossível pode
No teu sono sem política.

E se te chamam,
Se te chamam ainda,
Que seja maior o teu longe,
Mais largo o teu giro.

Sonâmbulo, plácido
Sabedor dos ventos,
Sobrevoa o teu nome
No parto do teu espírito.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Passando em frente... (Eucanaã Ferraz - 1961)

Passando em frente
ao antigo, imponente
prédio:

o leão, velho, pára
e repara, atento,
naquele seu estranho parente.

Repara nas patas
bem postas,
pesadas, afiadas,

nos pelos, nos olhos,
em tudo que, granítico,
jamais apodrece.

O leão velho vê
a si mesmo
e inveja o irmão de pedra.

Pensa, por exemplo, que
não poderia guardar
entradas de edifícios

como faz o pétreo
leão de guarda,
impávido, perfeito.

Enquanto medita, moscas
fazem festa em volta de sua juba,
um tanto suja,

não há como negar, e
todo ele, desse jeito, mostra
uma ternura engraçada,

de palhaço,
de palhaço velho,
mais doce por isso.

O leão de pedra,
ao contrário, é,
depois de um século,

todo empáfia,
um rei
que não morresse,

que não morre,
que permanece, e
mais rei por isso.

O leão de pedra, imóvel,
guarda a entrada do templo,
enquanto o outro

procura por nós, igual
a nós, dentro
do tempo.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Vê: a luz, pela fresta (Eucanaã Ferraz - 1961)

Vê: a luz, pela fresta,
estrela magnífica
e doméstica, vem,

acaso e matemática,
morder no copo
a água que dormiu à mesa.

Do corpo amado, da canção,
de uma romã, de uma manhã qualquer
a lâmpada que se exala

pode não ser a morte da morte
e talvez não mostre a agulha perdida
na sala ou no tempo, mas

infringe, por ínfimo farol
que seja, certos escuros: um canto
do quarto, da dor, do olhar.

Dure apenas um minuto
a gema de um tal ardor,
sol tão pequeno,

há que se acender
em cada mínimo
a força da minúcia.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Testemunha (Ana Maria Lopes)

Sou de mim mesma
vítima e assassino
invento tudo que amo
e desinventando
em seguida
deixo de amar

Mas amo o que crio
e criando em pleno cio
reinvento o grito
a primeira palavra
o engatinhar
o engatilhar
o último tiro

Respiro e disparo
o beijo que dói

Vítima e assassino.

domingo, 8 de setembro de 2013

Costura (Ana Maria Lopes)

As palavras estão aí
estão soltas
à espera
de que alguém as emende
como uma colcha de retalhos
Elas precisam de costura
sem linha sem agulha
apenas agudez
esperteza de juntar
clareza de enxergar

Escrever é colchear.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sentimento do mundo (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados

ao amanhecer esse amanhecer
mais noite que a noite.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Tambores (Salgado Maranhão - 1953)

sou da terra
dos tambores que falam.
E guardo no corpo a memória
que acorda o silêncio.

eu vi a lua descer
para assistir minha mãe
dançar:

a camponesa que amava
latim.

eu vi a mão preta açoitar
o tambor; eu ouvi
roncar a madeira sagrada:

o rito da voz ancestral
antes do cogito e da parabólica.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Grão (Salgado Maranhão - 1953)

todas essas fábulas
que brincam em minha fala
passam pela boca do dragão.
levam-me ao rés do cais:
dentadas de sol na cara
pontos de cicatrizes.

todos esses séculos de não
que tento enfeitar com pérolas
com gemidos e tambores.

quem me conhece
sabe o meu labor
pra tirar do chão da dor
o simples grão que sou.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

À cidade da Bahia (Gregório de Matos - 1623 - 1696)

Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fôra de algodão o teu capote!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

o tal total (Geraldo Carneiro - 1952)

o amor é o tal total que move o mundo
a tal totalidade tautológica,
o como somos: nossos cromossomos
nos quais nunca se pertenceu ao nada:
só pertencemos ao tudo total
que nos absorve e sorve as nossas águas
e as nossas mágoas ficam revoando
como se revoltadas ao princípio,
àquele princípio originário
onde era Orfeu, onde era Prometeu,
e continua sendo sempre lá
o cais, o never more, o nunca mais,
o tal do és pó e ao pó retornarás

domingo, 1 de setembro de 2013

ilíada (Geraldo Carneiro - 1952)

nunca andei diante dos muros
de Troia
a não ser como parte do pensamento
de Zeus, que jamais dorme.
amei no entanto uma mulher que foi
morar do outro lado do Oceano
por quem chorei uns dois mediterrâneos
embora fosse um choro sem lágrimas.

não conheço a alegria do regresso.
meu coração perdeu todas as guerras.
meus navios partiram para nunca.
mas confio que os deuses são benignos
e os meus adeuses formam a cidade
em que ancorei meu barco:
e fico aqui na minha ilha-Ílion
enquanto eles desfilam em triunfo.