segunda-feira, 30 de abril de 2012

Formas de abençoar (Alberto da Cunha Melo - 1942 - 2007)

Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.

Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.

Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.

Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.

No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.
 

domingo, 29 de abril de 2012

Soneto de constatação - XXVI (Pedro Lyra - 1945)

Nasce um homem.
Quando ele se percebe
joga contra o destino a sua vontade:
quer luzir
quer voar
quer sobrepor-se
para provar que a vida tem sentido.

Trabalha:
cada fruto desse esforço
lhe torna o mundo em forma de desfrute.

Combate:
cada etapa ultrapassada
acrescenta-lhe forças para a próxima.

Pesquisa:
cada jóia imaginada
lhe confirma o triunfo sobre o tempo.

Mas na hora mais densa opaca íntima
em que um espelho cego cobra o sendo
nem glória
nem riqueza
nem poder:

— só interessa mesmo o que lhe falta.

sábado, 28 de abril de 2012

Perspectiva (Myriam Fraga - 1937)

Este é um mundo-limite
(A que me oponho)
De ciciadas palavras,
De mesuras,
De faces decalcadas
De outras faces
E de sentenças duras.

Este é um mundo-mentira
(Não me enganam)
Da espiral de cinza.
Do frangalho do sonho.
Onde a espera faz-se inútil
E o tempo é nada.

Mundo-agora.
O demônio com seus filtros
O desvairado cachorro.
Sua matilha.
Semeando este chumbo,
Esta ameaça.

Duro é o espreitar do olho
Em cada face.
Na boca devastada
A fome pasce
E a mão ensaia o gesto
E se disfarça.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Um mundo (Eucanaã Ferraz - 1961)

Onde montanhas não são levantamentos
íngrimes de terra. Onde rios não são cursos
de água que se vão lançar no mar,
nos lagos, noutros rios. As casas

não têm paredes ou teto, ruas
não são vias de acesso, caminhos não vão
de um ponto a outro e os pontos não põem
fim, não abreviam, não são laçadas na malha

da lã ou nas voltas da linha. Por sua vez,
linhas não são fios, nem fibras, nem traços.
Não há sulcos na palma das mãos. Não há frentes
de combate. Linhas não são rumos

ou normas. O Equador não é o anel extremo do globo
e as superfícies esféricas não se chamam esferas.
Não há moedas. O espaço ilimitado, indefinido
no qual se movem os astros é a terra, enquanto

acima das cabeças, pregados pelo horizonte, densos,
amarelos, vão jardins em movimento. Venta.
Há um vento constante, há um canto constante.
Pode-se ver a música, de terraços, belvederes

e torres instaladas para tal finalidade. Mundo
em que se ganha o que se perde.
Toda pedra é pérola. Onde o amor
é entre duas mulheres.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Nenhuma ferida (Fabrício Carpinejar - 1972)

Nenhuma ferida
separava teus pesadelos.
Quando vagaste em meia-idade

pela selva escura, fiquei
a conversar com tuas camisas,
aprumando boinas

que afogavam os cabelos.
Tinha sete anos ao certo
e uma lua vadia disputando

corridas comigo.
Fiquei a entreter
os tecidos alinhados,

como um exército em revista,
procurando convencer
uma peça ao menos

a delatar tua deserção.
Quando vagaste em meia-idade
pela selva escura, fiquei

alimentando o aquário
das gravatas.
Pedia privacidade às traças.

Vestia tua camisa,
copiando o ritmo
dos teus traços,

a respiração copiosa,
sendo meu próprio
e definitivo pai.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Vozes da morte (Augusto dos Anjos - 1884 - 1914)

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte inda teremos filhos!

terça-feira, 24 de abril de 2012

Carta (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Vento (Manoel de Barros - 1916)


Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha para trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda.
Ele não dói nada.
Vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz ui.
A gente estudou no Colégio que vento
é o ar em movimento.
E que o ar em movimento é vento.
Eu quis uma vez implantar um costela
no vento.
A costela não parava nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo
do vento.
Depois me ensinaram que vento não tem
organismo.
Fiquei estudado.

domingo, 22 de abril de 2012

Antônio Carancho (Manoel de Barros - 1916)

Me chamam de Antônio Carancho:
Carancho é por maneira que eu ando de pé virado
Moda carancho mesmo.
Pra bobo eu não sou condicionado.
Sou mais garantido de cantor.
Porém meu canto é fechado.
Lastreadamente sou Antônio Severo dos Santos.
Carancho é de caçoada.
Tenho vareios no olhar as coisas.
Chego de ver vaidade nas garças.
Eu ouço a fonte dos tontos.
Pedra tem inveja de lírios.
Isso eu sei de espiar.
Eu combino melhor com árvores.
Totalmente ao senhor eu falo:
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais
dentro dele.
Outra pessoa desabre.

sábado, 21 de abril de 2012

Separação (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Desmontar a casa

e o amor. Despregar

os sentimentos 
das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas

após a tempestade 
das conversas.



O amor não resistiu 
às balas, pragas,
flores, 
e corpos de intermeio. 


Empilhar livros, quadros, 
discos e remorsos. 

Esperar o infernal 
juízo final do desamor.



Vizinhos se assustam de manhã 

ante os destroços junto à porta: 

- pareciam se amar tanto!

Houve um tempo: 

uma casa de campo, 
fotos de Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.



Amou-se um certo modo de despir-se, 
de pentear-se. 

Amou-se um sorriso e um certo 
modo de botar a mesa.
Amou-se 
um certo modo de amar.



No entanto, o amor bate em retirada 

com suas roupas amassadas, tropas de insultos, 

malas desesperadas, soluços embargados.



Faltou amor no amor? 

Gastou-se o amor no amor? 

Fartou-se o amor?


No quarto dos filhos 
outra derrota à vista: 

bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.


O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.



Erguerá outra casa, o amor? 

Escolherá objetos, morará na praia? 

Viajará na neve e na neblina?



Tonto, perplexo, sem rumo 

um corpo sai porta afora 

com pedaços de passado na cabeça 

e um impreciso futuro. 

No peito o coração pesa 

mais que uma mala de chumbo.

Natal (Miguel Torga - 1907 - 1995)

Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam
Que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Móbile (Eucanaã Ferraz - 1961)

Passamanarias de arame, papel
e luz, que recobri com a pele,

onde instalei meus ossos desatados percutindo
no vento, está lá

o arabesco,
sem arrimo, pingando um tempo estacionário entre

palmeiras, contra o céu da Voluntários, o Cristo
ao fundo, o cinema. Seu movimento

hesita, esgrima, cigarra, urina, é-não-é,
flores da ferrugem, palavras fáceis e cento

e um dentes ameaçando carros e coisas
elétricas, edifícios em fila, famílias. Fiz

o que tinha de ser. Ficou lá, inútil, ardendo
sobre o trânsito,

o móbile
gigante que seus olhos não viram,

que seus olhos não quiseram,
que seus olhos não e não.

Ficou lá, inútil, adiado
sobre o domingo,

o monstro
que seus cuidados não souberam,

que seu medo não quis,
que nem ao menos.

Está lá, inútil, ardil desativado,
sobre nada,

lixo,
lixo,

mas, esteja certo disto, tinha o tamanho
certo de nos vestirmos com ele, para,

dentro dele, suspensos,
descansarmos na palma um do outro, acredite,

era lindo, era fácil,
era puro.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Relógio (Oswald de Andrade - 1890 - 1954)


As coisas vão
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Neste soneto (Paulo Mendes Campos - 1922 - 1991)


Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma é pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Soneto contrariado (Glauco Mattoso - 1951)

Por ser o cedo tarde e o tarde cedo;
por ser tarde a manhã e a noite dia;
por ser gostosa a dor, triste a alegria;
por serem ódio amor, coragem medo;

Se o plágio é mais invento que arremedo;
se exprime mais virtude o que vicia;
se nada vale tudo que valia;
se todos já conhecem o segredo;

Por ser duplipensar barroco a língua;
por menos ter aquele que mais quer;
se a falta excede e tanto abunda a míngua;

Por nunca estar o nexo onde estiver,
desdigo o que falei e a vida xingo-a
de morte, se a cegueira é luz qualquer.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Das impurezas (Felipe Fortuna - 1963)

Misteriosa também é
a cera de meus ouvidos
(e tudo o que escapa de mim:
meu vácuo, meus excessos, minha urina).
É o que fabrico de coisas esquecidas
que se misturam no sonho
sem alimento de luz.
Misterioso o suor, misterioso o esperma,
todas as heranças
que dedico à vida por cansaço,
por calor e calafrio.
O corpo se faz sozinho, oferta
nua e ruminada,
aquecido pelo acaso,
derramando verniz pelos poros que me informam
do mundo e do contágio.
Excrementos, unhas, cabelos:
me fazem mais vivo, mais morto ou doceamargo
ou mais resignado?
Já não quero perder a dor nenhuma.
O que me resta é partilhar a perda
com outro corpo que me consuma
sem direção e sem destino
- até que eu perca o suave grito,
até que eu perca o medo.

domingo, 15 de abril de 2012

O Chamado (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai - a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.

sábado, 14 de abril de 2012

Exaltação (Miguel Torga - 1907 - 1995)

Venha!
Venha uma pura alegria
Que não tenha
Nem a senha
Nem o dia!

Abra-se a porta da vida
Sem se perguntar quem é!
E cada qual que decida
Se quer a alma aquecida
No lume da nova fé.

Venha!
Venha um sol que ninguém tenha
No seu coração gelado!
Venha
Uma fogueira de lenha
De todo o tempo passado!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

É duro ter coração mole (Alice Ruiz - 1946)

Por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado,
pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Quando eu tiver setenta anos (Paulo Leminski - 1944 - 1979)

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O retrato fiel (Gilka Machado - 1893 - 1980)

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;

naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Lembranças (Gilka Machado - 1893 - 1980)

Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.

Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.

Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Testamento (Alda Lara - 1930 - 1962)

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
 
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

domingo, 8 de abril de 2012

Do amor (Neide Archanjo - 1940)

Acordo quando falas
e nunca sei o que quero ouvir.
Sei que falas e isso basta
porque esta hora é feliz.
E desejo outras e mais outras
em que dirás tudo o que quero ouvir.

Saudades futuras.

A teu lado caminho quase muda
e estando contente
nunca estou feliz.

                                    *

Não pude ser
o teu amor perfeito
antes esta ferida.

Por isso para ti
não serei a pele
- poro a poro teu alumbramento -
serei apenas a cicratiz.

Perfeita.

sábado, 7 de abril de 2012

Filósofo (Emil de Castro - 1941)

Tenho as minhas mãos
cheias de sim e não.
Sim creio na luz, no Sol,
na água corrente sem volta,
no mergulho renovado, no fluir
por entre as pedras e o limo.
Sim creio no voo de Ícaro,
no retornar de Ulisses,
na ática existência, no som
e na fúria, na sede, crio
a luz que transborda dos olhos
da amada Marisa mansa e plena.
Não transo figuras, transfiguro
a espera de um trem que não pressinto
mas que sinto trilhar nas minhas veias.
Estação de partida sou sem chegada.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

As três palavras mais estranhas (Wislawa Szymborska - 1923 - 2012)

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
Crio algo que não cabe em nenhum não ser.


* Wislawa Szymborska, poeta polonesa, faleceu em 01/02/2012

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Aos amigos e inimigos (Carlos Nejar - 1939)


De amigos e inimigos
fui servido,
agora estamos unidos,
atrelados ao degredo.   

Nunca fui o escolhido
onde os deuses me puseram.
Nem sou deles, sou de mim
e dos íntimos infernos.
 
Não.
Não me entreguem aos mortos,
os filhos que me pariram
e plasmei com meus remorsos
no seu mágico convívio.  

De amigos e inimigos
fui servido
e com tão finada vida
e alegados motivos,
que ao dar por eles, já partira
e quando dei por mim, não estava vivo.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Ser (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.

Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apóia em meu ombro
seu ombro nenhum.

Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?

Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste
contudo chamava-te

como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.

O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.

João Boa-Morte - cabra marcado para morrer (Ferreira Gullar - 1930)

Excertos

Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.

Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.

João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro."

Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pranto para comover Jonathan (Adélia Prado - 1935)


Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

domingo, 1 de abril de 2012

Setembro (Eucanaã Ferraz - 1961)

Nunca mais será setembro,
nunca mais a tua voz dizendo
nunca mais, eu lembro,

nunca mais, eu não esqueço,
a pele, nunca mais,
o teu olhar quebrado,

dividido, vou esquecê-lo,
é o que te digo, nunca mais
a minha mão no teu sorriso,

a tua voz cantando,
vou apagá-la para sempre,
e os nossos dias, setembro, lembro

bem, dentro a tua voz dizendo não
(ouço ainda agora), como se quebrasse
Um copo, mil copos, contra o muro.

Rasgarei o que não houve, o que seria,
mesmo que tudo em mim me diga não
(e diz), mas é preciso.

Como não se pensa mais um pensamento,
quero, prometo:
nunca mais será setembro.