domingo, 30 de novembro de 2014

Retrato de Katia (Mariana Ianelli - 1979)

Separada da tua sorte, desde muito,
trago junto da manhã
teus olhos estrangeiros e assustados.
Todo retrato que defendo para mim.
Num segundo meio deslocado
da nossa espera sem-razão, adiante,
te verei mulher de uma clareza expandida
que me confundirá.
Vejo estes silvestres para que eu não te duvide
quando surgires entre eles e eu te redescobrir.
Tua boca não é essa, não é como nenhuma,
a tua boca é só a tua
e os olhos que eu lembro,
não os mais belos, não os mais quentes,
são o teu brilho triste de ser, tua síntese azul.
E quando vieres, eu te pergunto,
serás quem eu lembro?
Luto, emboscada, revolta italiana,
ou terás merecido os outros
que me põem muito medo
por seus caminhos hesitantes, suas armadilhas?...
Organizo aquela mesma menina
jogando o cabelo louro para trás
e peço repetidamente
que sejas ela quando vieres,
que eu sorria, quando vieres,
como outra criança que te fizesse festa.
Alguma saudação calada entre a gente
de improviso vai lembrar e esquecer
o peso obrigatório dos dias.
Adiante, surgiremos desvelando nosso próprio susto.
Agora vem, que está feita a minha prece.

sábado, 29 de novembro de 2014

Pântano (Mariana Ianelli - 1979)

Haverá uma noite
No fundo desta lama
Para tudo o que foi teu:
O caminho de partida,
O horizonte das bandeiras,
O extraordinário ano de 1980.

Entre guelras e barbatanas,
No ventre de uma água sonolenta,
O castelo de tua memória se acende.
Ressurge um alto portão de madeira,
De longe brilha a pesada maçaneta,
Cresce para baixo o tronco do velho castanheiro.

No escuro passeia o teu amigo inexistente,
Deitam-se juntas as tuas amantes insatisfeitas,
Do topo de uma escada o teu filho te acena.
Os muros contornados e logo desconhecidos,
As alamedas visitadas e já desaparecidas
Formarão ali tua cidade secreta e sem fronteiras.

O retorno para casa como se para um cativeiro,
Toda vacuidade do suplício e do desejo,
Um gemido de orgasmo reboando no silêncio:
Tudo o que foi teu renascerá
No pântano de uma noite derradeira
Para além do tempo do esquecimento.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Minha vida foi isso o tempo todo (Mário Lago)

Recomeçar ainda que partido;
Refazer o horizonte a cada passo;
Buscar razões no que perdeu sentido;
Mover-me sempre, embora o pouco espaço;

Compreender todas as vozes mudas,
Perdido entre o não dito e o não pensado;
Procurar no vazio alguma ajuda;
Repisar mil caminhos já pisados;

Falar sem nunca ter ouvido um grito
De aplauso, de protesto ou xingamento;
Pensar que era de céu o chão de lodo;

Os pés na terra, os olhos no infinito.
Sonhando estar lá longe o meu momento...
Minha vida foi isso o tempo todo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O amor é a vida (Mário Lago)

Mais de um amor numa vida
É muito fácil de ter
A dor de amor é esquecida
Talvez nem chegue a doer
Mesmo se o fim é tristeza
Vazio no coração
No fim só fica a beleza
De uma bonita paixão

E embora o amor destruído
E o tanto que se sofreu
O tempo não foi perdido
A gente é que se perdeu

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Três coisas (Mário Lago)

Pra mim três coisas no mundo
Valem bem mais do que o resto.
Pra defender qualquer delas
Eu mostro o quanto que presto.
É o gesto, é o grito, é o passo,
É o grito, é o passo, é o gesto.

O gesto é a voz do proibido
Escritasem deixar traço.
Chama, ordena, empurra, assusta.
Vai longe com pouco espaço.
É o passo, é o gesto, é o grito,
É o gesto, é o grito, é o passo.

O passo começa o vôo
Que vai do chão pro infinito.
Pra mim, que amo estrada aberta,
Quem prende o passo é maldito.
É o grito, é o passo, é o gesto,
É o passo, é o gesto, é o grito.

O grito explode o protesto
Se a boca não tem espaço
Que guarde o que há pra ser dito
No grito, no passo e gesto.
É o gesto, é o grito, é o passo,
É o passo, é o gesto, é o grito.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Bilhete em caráter de urgência (Mário Lago)

Homem, eu não te peço
Que leves a vida inteira
Me olhando, me admirando,
Me chamando de alegria,
Me tratando de rainha,
Dizendo pra toda gente
Que eu enfeito a tua casa,
Que te sirvo de paisagem,
Que sou teu sal e teu sol.

Homem, eu só te peço
Algum cuidado e respeito,
Não porque seja rainha
Ou melhor que qualquer outra.
Apenas porque sou vida.
Vida pra ser defendida
Como a tua e mais de vidas
Homem
Não me sangres nem permita
Que me sangrem
Homem
Apenas porque sou vida como a tua
Homem
Vida pra ser defendida como a tua

domingo, 23 de novembro de 2014

Embora você não creia (Mário Lago)

Embora você não creia
Não custa nada espiar
O amor que escrevi na areia
Nem o mar pode apagar

Veio quieto... Veio mudo
Me enredou em sua teia
Amo você mais que tudo
Embora você não creia

O meu peito é livro aberto
Sem folhas pra se rasgar
Você não crê?... Chegue perto
Não custa nada espiar

Mas chegue sem muita pressa
Se não você se incendeia
Pois no fogo é que começa
O amor que escrevi na areia

Paixão e sangue nas veias
Fizeram do meu cantar
Rimas que são das sereias...
Nem o mar pode apagar

terça-feira, 18 de novembro de 2014

um enorme rabo de baleia (Alice Sant'Anna - 1988)

um enorme rabo de baleia
cruzaria a sala nesse momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
é abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Turista acidental (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Fui fotografado à minha revelia,
em frente a um templo egípcio
no Metropolitan Museum de Nova York.
À minha revelia, de novo, fotografado fui
na 5a.Avenida às três e meia da tarde.

Assim, um sem- número de vezes
em frente ao Coliseu,
nas ruínas de Machu Pichu,
perto da Torre de Londres,
junto à Catedral de Colônia,
sobre as pedras da Acrópole, em Atenas,
nas mesquitas de Istambul
e, evidente, em Juiz de Fora.

Guardado estou
em álbuns
japoneses, italianos, americanos,alemães, franceses
argentinos, senegaleses,
disperso
desatento
como se aquele corpo
não fosse meu.

Quando mostram as fotos aos parentes e vizinhos
sou pedra-porta-árvore-sombra-paisagem.

Ninguém, reunindo as fotos, perguntará:
-Quem é este constante figurante
no flagrante do alheio instante?

Disperso-dispersivo estou.

Que álbum conterá a unidade perdida
revelada do negativo
perambulante que sou?

domingo, 16 de novembro de 2014

Estão se adiantando (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Eles estão se adiantando, os meus amigos.
Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar.
Não era isto o combinado.

Alguns se despedem heróicos,
outros serenos.Alguns se rebelam.
O bom seria partir pleno.

O que faço?Ainda agora
um apressou seu desenlaçe.
Sigo sem pressa. A morte
exige trabalho, trabalho lento
como quem nasce.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Os deslimites da palavra (Manoel de Barros - 1916 - 2014)

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O fazedor de amanhecer (Manoel de Barros - 1916 - 2014)

Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Entrevista (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Telefonam-me do jornal:
-Fale de amor-
diz o repórter,
como se falasse
do assunto mais banal.
-Do amor? -Me rio
informal. Mas
ele insiste:
-Fale-me de amor-
sem saber, displicente,
que essa palavra
é vendaval.

-Falar de amor?-Pondero:
o que está querendo, afinal?
Quer me expor
no circo da paixão
como treinado animal?

-Fala...-insiste o outro
-Qualquer coisa.
Como se o amor fosse
“qualquer coisa”
prá se embrulhar no jornal.

-Fale bem, fale mal,
uma coisa rapidinha
-ele insiste,como se ignorasse
que as feridas de amor
não se lavam com água e sal.

Ele perguntando
eu resistindo,
porque em matéria de amor
e de entrevista
qualquer palavra mal dita
é fatal.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Sagitário (Antônio Carlos Secchin - 1952)

Evite excessos na quarta-feira,
modere a voz, a gula, a ira.
Saturno conjugado a Vênus
abre portas de entrada
e armadilhas de saída.
Evite apostar em si, mas, se quiser,
jogue a ficha em número
próximo do zero. Evite acordar
o incêndio implícito de cada fósforo.
E quando nada mais tiver a evitar
evite todos os horóscopos.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Sete anos de pastor (Antônio Carlos Secchin - 1952)

Penetro Lia, mas Raquel é quem me move,
e faz meu corpo desatar toda alegria.
Se tenho Lia, minha pele não navega
nada além de nada em névoa fria.

Sete anos galopando em Lia e tédio,
sete anos condenado ao gozo escuro.
Raquel me tenta, e se me beija Lia
minha boca é não, e minha mão é muro.

Labão, o puto, perdoai-me nesse instante,
adoro a dor que doer em minha amante.
Vou cravar-lhe um punhal exausto e certo,

doar seu sangue ao livro e à ventania.
Quieta Lia será terra em que os cavalos
vão pastar, sob a serra e o deus do dia.

domingo, 9 de novembro de 2014

É ele (Antônio Carlos Secchin - 1952)

É ele!

No Catumbi, montado a cavalo,
lá vai o antigo poeta
visitar o namorado.
Não leva flores, que rapazes
raro gostam de tais mimos.
Leva canções de amor e medo.
Cachoeiras de metáforas,
oceanos de anáforas, virgens a quilo.
Ao sair, deixa ao sono cego do parceiro
dois poemas, um cachimbo e um estilo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Depois de tudo (Cassiano Ricardo - 1895 - 1974)

Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que fui.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A graça triste (Cassiano Ricardo - 1895 - 1974)

Só me resta agora
Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.

Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.

Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior — de quem fica —
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.

Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.

É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.

É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde.

domingo, 2 de novembro de 2014

Voz que se cala (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera, que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!