sexta-feira, 31 de maio de 2013

Noturno de Ouro Preto (Emílio Moura - 1902 - 1971)

Que alada figura aquela
transformada em algo lívido?
Que pedia? Que falava
de sua órbita aérea,
com suas múltiplas vozes?
Ah, noite, há muito submersa
em labirintos de sono!
Quem chamava? Quem sofria?
Quem jogava com o segredo
de tantas áreas ignotas?
Que espectro, a vagar, tecia
o próprio avesso do sonho?
E aquele morrer de novo
a cada inútil aurora?
O ardor, o ritmo brusco
da vida jogada fora,
com tantas, tantas raízes
perdidas, esmigalhadas?
Que era tudo? Que era
aquele fluir do tempo
como invisível cortejo
como vento no caminho?

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Neste lugar (Mariana Ianelli - 1979)

Nenhum traço de delicadeza,
Só palavras ávidas
E o tempo,
A devoração do tempo.

Um jardim entregue
Às chuvas e aos ventos.

O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres.

Caminhos de sangue
Onde reina o amor primeiro,
Morada de súbita
Ausência do medo.

Um despenhadeiro, o céu
E uma queda
Sem alívio de esquecimento.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Os patriarcas (Mariana Ianelli - 1979)

Nós que enlouquecemos de orgulho
Produzindo ferro e fazendo música,
Com que despeito vertemos nosso nojo,
Nosso uivo, nossa dor de criatura

E o que dizer do prazer subterrâneo
De atravessar desertos farejando sangue,
Qualquer coisa que se mova e resplandeça,
Uma infância para extirpar do mundo

E quanto ainda pode valer nossa aliança
Com o demônio do sarcasmo, essa jura
De um dia pousar sobre a nossa cara
O hálito quente do destino feito um lobo

Uma cicatriz feito um brasão de família,
Todos marcados, condecorados pelo crime,
Tantos filhos, tanta fúria depois
De termos gerado em nós os assassinos.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Soneto da intimidade (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Moça linda bem tratada (Mário de Andrade - 1893 - 1945)

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

Dona flor (Vicente de Carvalho - 1866 - 1924)

Ela é tão meiga! Em seu olhar medroso
Vago como os crepúsculos do estio,
Treme a ternura, como sobre um rio
Treme a sombra de um bosque silencioso.

Quando, nas alvoradas da alegria,
A sua boca úmida floresce,
Naquele rosto angelical parece
Que é primavera, e que amanhece o dia.

Um rosto de anjo, límpido, radiante...
Mas, ai! sob êsse angélico semblante
Mora e se esconde uma alma de mulher

Que a rir-se esfolha os sonhos de que vivo
— Como atirando ao vento fugitivo
As folhas sem valor de um malmequer...

Este amor que vos tenho, limpo e puro (Camões - 1524 - 1580)

Este amor que vos tenho, limpo e puro
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso ou duro Fado,
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o Inverno e Estio deita;
Só pera meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos pera mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

domingo, 26 de maio de 2013

Eu cantei já, e agora vou chorando (Camões - 1524 - 1580)

Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei: mas se me alguém pergunta "quando":
Não sei, que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
Que o passado por ledo estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, se tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

sábado, 25 de maio de 2013

Erros meus, má fortuna, amor ardente (Camões - 1524 - 1580)

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

sexta-feira, 24 de maio de 2013

À beira mágoa (José-Augusto de Carvalho - 1937)

Eu soube de um país à beira-mar,
à beira-pesadelo, à beira-pranto...
De insônias e tristezas no cantar,
do sonho, que a tardar, doía tanto!

Eu soube de um país que teve um cais
e um barco que largou ao mundo além...
Que foi e que voltou por entre os ais
e sempre desse além ficou refém...

Eu soube de um país à beira-fado,
guitarra dedilhando a decadência...
Amante, entre grinaldas, mal-amado,

cativo de masmorras e de ausência...
Eu soube de um país que se rendeu,
num dia de novembro, e se perdeu...

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Poema para Maria Magdala (José-Augusto de Carvalho - 1937)

Que manto de silêncio assim te esconde,
perdida sob névoa e banimento?
Já nem o eco à minha voz responde!
Até te silencia a voz do vento!

A boa nova, espanto e maravilha,
aos outros que ficaram, tu levaste.
Eleita, confirmaste, na partilha,
a força da raiz na frágil haste.

O turbilhão dos tempos te tragou.
Das trevas sem registo e sem memória,
a lenda que o sem tempo deslumbrou
no todo o sempre escreve a tua história.

Na tela onde o pintor te quis dilecta,
eu vivo a minha angústia de poeta.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Canção das noites de abril (Miguel Carneiro - 1957)

A minha amada
tem olhos de madrugada
como fachos acesos de tição.
A minha amada é inquilina
bem menina
de meu velho coração.

Chama-me pro canto
Fascina-me
faz-se de traquina
em meu templo de celebração.

A minha amada tem a boca de mel
semelhante ao manjar do céu.
De travo tão bom,
espairecida no Jardim das Delícias
E nessa preguiça
permaneço a lhe enamorar.

Minha amada tem um cheirinho
que de longe eu posso identificar
Aquece-me e me cobre
e dorme sempre depois que eu estou a cochilar

terça-feira, 21 de maio de 2013

Balada da minha dor (Miguel Carneiro - 1957)

Eu sou um cão vadio sobre a face da terra,
Farejando no ar tanto indignação.
Eu lambi as feridas de São Roque,
Levei o seu precioso pão.

Eu fui o cão de caça do palácio de Gotardo.
Transitei num tempo de peste,
e nas colinas ao Leste,
quando me buscaram,
eu estava distante cravejando minha presa no calcanhar do Cão.

Eu estive com São Lázaro,
e testemunhei a sua ressurreição
Por longas décadas andei de pelo caído,
de sardas espalhadas pelo chão.
E nem por isso abaixei o meu focinho,
nem deixei que o carinho,
diluísse nesses tempos de completa podridão.

Eu permaneci ligado,
Algumas vezes travado:
de haxixe, maconha e bom bocado.
Nesse condado repleto por putas, veados e ladrões.

Eu vi a miséria tomar conta de meu país
e nem assim me exilei,
eu aqui fiquei.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Transparências (Antonio Cícero - 1945)

venho da praia de um verão em que as ondas rolam redondas e lisas
sobre o mar sem formar espumas
e os olhos gulosos engolem glaucas e mornas transparências
goles de azul e verde
fazendo inveja à língua aos lábios e à goela.

por que me induzes por areias sem águas
ou zonas infestadas de feras
ou paludes sombrios
ou friagens cíticas
ou mares coagulados

por que me queres nessa terra monstruosa e trágica
onde erram poetas e mitógrafos
e nada é certo nada claro.

domingo, 19 de maio de 2013

O poema (Manoel de Barros - 1916)

O poema é antes de tudo um inutensílio.

Hora de iniciar algum
convém se vestir roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer.

sábado, 18 de maio de 2013

A um Pierrô de Picasso (Manoel de Barros - 1916)

Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.

Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.

Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto.

Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
............................
Solidão tem rosto de antro.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Não há silêncio bastante (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.

Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido
Quero que saibam:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Deu-me o amor este dom (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Deu-me o amor este dom:
O de dizer em poesia.
Poeta e amante é o que sou
E só quem ama é que sabe
Dizer além da verdade
E dar vida à fantasia.

E não dá vida o amor?
E não empresta beleza
Àquele que se quer bem?
Que não vos cause surpresa
O perceber neste amor
Fidelidade e nobreza.

E se eu soubesse que à morte
Meu muito amar conduzia,
Maior nobreza de amante
Afirmar-vos inda assim
Que ele tal e qual seria
Como tem sido até agora:

Amor do começo ao fim.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

A bela adormecida (Ferreira Gullar - 1930)

Onde ela dorme
não há lugar senão
o que o sono faz

a grama não é:
cresce perene e azul
rente a seus pés

os pássaros cantam
- é a antiga flor que volta
das vasilhas do pó

e nem move os lábios
dessa que dorme
fora da esperança

E a flora suicida
vai dançando em volta
seus fachos mortais

terça-feira, 14 de maio de 2013

No corpo (Ferreira Gullar - 1930)

De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Matilde, onde estás? (Pablo Neruda - 1904 - 1973)

Matilde, onde estás? Notei, em baixo,
entre a gravata e o coração, e em cima,
certa melancolia intercostal:
é que tu estavas, de súbito, ausente.

Fez-me falta a luz da tua energia
e olhei devorando a esperança,
olhei o vazio que é uma casa sem ti,
ficam apenas trágicas janelas.

De puro taciturno o teto ouve
cair antigas chuvas desfolhadas,
plumas, o que a noite aprisionou:

e assim te espero como casa abandonada
e tornarás a ver-me e a habitar-me.
De outro modo as janelas me entristecem.

domingo, 12 de maio de 2013

sujeito indireto (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
fosse a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.

sábado, 11 de maio de 2013

pareça e desapareça (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Prazer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo.
Tão fácil ser semelhante,
quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.
Mas vice-versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
A fita não coincide
Com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Nunca e sempre (Helena Kolody - 1912 - 2004)

Sempre cheguei tarde
ou cedo demais.
Não vi a felicidade acontecer.
Nunca floresceram
em minha primavera
as rosas que sonhei colher.

Mas sempre os passarinhos
cantaram e fizeram ninhos
pelos beirais
do meu viver.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Empurrão (Jorge Emil - 1970)

Baixa uma voz em mim,
seríssima e serena.
Uma voz 'que se acha'.
Em tom baixo me ordena:
- Em marcha!
E obedeço, bisonho.
Que querem que eu faça?
Não se fala em senha,
nem um mapa eu tenho,
nenhum dinheiro em caixa.
Escapo deste sonho?
Não posso apostar
um centavo que seja.
Antes isso. Antevejo,
contra todo o meu desejo,
que estranhas estratégias
com desígnios duvidosos
no caminho se adivinham
e sozinhas se desenham.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

O motim primordial (Jorge Emil - 1970)

Se, assim que ganharam tino,
tivessem feito o cálculo
do alarde do seu destino

de construtores de cacos,
não teriam descido
do planeta de macacos.

Diz a mensagem do oráculo:
a aragem ficou na origem,
quando ainda não era tarde.

Sou um bípede covarde.
Não me sentisse tão fraco,
voltava já para a árvore.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Estado de poesia (Chico César - 1964)

Para viver em estado de poesia
Entranharia nestes sertões de você
Pra me esquecer da vida que eu vivia
De cigania antes de te conhecer
De enganos livres que eu tinha porque queria
Por não saber que mais dia, menos dia
Eu todo me encantaria pelo todo do teu ser
Pra misturar meia noite, meio dia
Enfim saber que cantaria a cantoria
Que há tanto tempo queria
A canção do bem querer
É belo vês o amor sem anestesia
Dói de bom
Arde de doce
Queima a calma
Mata, cria
Chega tem vez que a pessoa que enamora
Se pega e chora do que ontem mesmo ria
Chega tem hora que ri de dentro pra fora
Não fica, nem vai embora
É o estado de poesia

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O dia depois de hoje (Pedro Abrunhosa - 1960)

Sem sabermos,
A cidade parou,
Uma noite,
Que afinal não chegou.
E tu como um livro,
No branco das páginas
E eu a ler-te nas lágrimas,
Que a manhã acordou.
Sem sabermos,
Inventámos a dor.
A vida é um jogo,
Um instante infinito
Um quarto de fogo,
A esconder cada grito.
Sem saber,
Abracei-te demais,
Uma porta fechada,
Os teus passos na escada
A fazerem sinais.
A vida é um jogo,
Um instante infinito.
Um quarto de fogo,
A esconder cada grito.
E Antes do fim,
Antes de ti.
Amanhã, parto contigo.
Amanhã, foge comigo.
Amanhã, longe daqui.
Amanhã, leva-me em ti.
Sem saberes,
Escrevemos as ruas,
Uma sombra,
Desfazendo-se em duas.
E tu como um filme,
Na vertigem da morte
Eu aqui nesta sorte

A mão a um passo da pele.
Sem saberes,
Inventaste-me o céu.
A vida é um jogo,
Um instante infinito.
Um quarto de fogo,
A esconder cada grito
Antes do fim,
Antes de ti.
Amanhã, parto contigo.
Amanhã, foge comigo.
Amanhã, longe daqui.
Amanhã, leva-me em ti.

domingo, 5 de maio de 2013

Quem me leva os meus fantasmas (Pedro Abrunhosa - 1960)

Aquele era o tempo
Em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam,
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a Ursa Maior eram ferros acesos.
Marinheiros perdidos em portos distantes,
Em bares escondidos,
Em sonhos gigantes.
E a cidade vazia,
Da cor do asfalto,
E alguém me pedia que cantasse mais alto.

Quem me leva os meus fantasmas,
Quem me salva desta espada,
Quem me diz onde é a estrada?

Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam,
Em que homens negavam
O que outros erguiam.
E eu bebia da vida em goles pequenos,
Tropeçava no riso, abraçava venenos.
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro.
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta.

Quem leva os meus fantasmas,
Quem me salva desta espada,
Quem me diz onde é a estrada?

De que serve ter o mapa
Se o fim está traçado,
De que serve a terra à vista
Se o barco está parado,
De que serve ter a chave
Se a porta está aberta,
De que servem as palavras
Se a casa está deserta?

Quem me leva os meus fantasmas,
Quem me salva desta espada,
Quem me diz onde é a estrada?

Retrato (Manoel de Barros - 1916)

O homem possuía:
Um ocaso
E duas mãos.

Lembrava
Uma rosa seca
Num porto.

Lembrava também
Pássaro adunco
Na ponte de uma península.

Uma tarde pousou
(como um pardal)
No banco
De uma praça.

Lembrava:
Um corgo atrás de um sobrado
Um lápis numa ilha.

sábado, 4 de maio de 2013

Eu não lastimo o próximo perigo (Alvarenga Peixoto - 1744 - 1793)

Eu não lastimo o próximo perigo,
uma escura prisão, estreita e forte,
lastimo os caros filhos, a consorte,
a perda irreparável de um amigo.

A prisão não lastimo, outra vez digo,
nem o ver iminente o duro corte,
que é ventura também achar a morte
quando a vida só serve de castigo.

Ah, quão depressa então acabar vira
este enredo, este sonho, esta quimera,
que passa por verdade e é mentira!

Se filhos, se consorte não tivera,
e do amigo as virtudes possuíra,
um momento de vida eu não quisera.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Distância (Cecília Meireles - 1901 - 1964)

Quando o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve seco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Eu quero ouvir o coração falar (Fausto Guedes Teixeira - 1871 - 1930)

Eu quero ouvir o coração falar
e não os homens a falar por ele!
Enquanto a gente fala, há de parar
no peito a vida estranha que o impele.

Independente à forma de o expressar,
o sentimento existe, e ai daquele
coração triste que se julgue dar
na cerração em que a palavra o vele.

Astro no peito, é sobre a língua chaga.
Dizer uma alegria ou um tormento
é um mar em que sempre se naufraga.

Era a essência de Deus vista e atingida!
Se é a força da vida o sentimento,
fez-se a palavra pra mentir a vida.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Taquari (César Pereira - 1934)

Nos lábios da paixão,
o rio Taquari
banha os passeios da infância

Olho quem sai do escuro
- luz nos umbrais da memória.

O amor crescendo maduro,
entre dois favos
- mel do aconchego

Tia Lourdes faz café
Vó Amália entre o crochê
e o chimarrão.

Lembranças coladas à pele
andam comigo
pelas veredas do destino

Caramujo (Orides Fontela - 1940 - 1998)

A superfície
suave convexa
não revela seu dentro:
apenas brilha.

A entrada
estreita abóboda
é sóbria sombria
gruta.

A seqüência
rampa enovelada
se estreita num pasmo
labiríntico.

O fim
limite íntimo
nada é além de si mesmo
ponto último.

A saída
é a volta.