terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Textamento (Affonso Romano de Sant'Anna - 1937)

Minha mãe teve dúvidas
se eu deveria nascer ou não.
Pensou em me abortar.
Nasci. E, de alguma maneira, dei certo.
Cedo aprendi com os animais domésticos
e com os legumes da horta
que a morte é estranhamente cotidiana.

Amei, sim, amei
na medida de meu descompassado desejo.
E já ia envelhecendo
aprendi a me comunicar com os cães.
Não posso me queixar.

Vencidas as dificuldades iniciais,
os limites do quintal, a inveja
e os jogos na boca da noite,
descobri modos de me expressar.
Algumas palavras íntimas
tornaram-se públicas
e nisto encontrei satisfação.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O aluno (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

São meus todos os versos já cantados;
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Sísifo (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

hoje agora me decido
depois amanhã hesito
o dia detém meu passo
a noite cala meu grito

deuses onde? céu existe?
céu existe? deuses onde?
um eco que faz perguntas
um espelho que responde

e eu sísifo tardotriste
a tilintar as correntes
de dilemas renitentes

lá me vou sem vez nem voz
rolar a pedra dos mudos
pela montanha dos sós

Canção do adolescente (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:

a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu pobre corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Pela boca (Mariana Ianelli - 1979)

Antes de tudo, o grito
- Ninguém sabe se de dor
Ou de aviso.
A fome dessedentada
No peito da mãe.
As primeiras letras gagas
Até que algum nome
Do mundo dos homens foi dito.

Em outros tempos, novos sabores.
O beijo que ensina a delícia,
O fumo alimentando o vício,
A delação que trai o falso amigo,
O consolo num copo de sidra.
A voz, conhecendo a si mesma,
Canta um bolero azul de Andaluzia.

São mínimas as distrações,
Enormes os compromissos.
Uma promessa de vida longínqua,
Um leve murmúrio ao pé do ouvido,
O sopro que faz voar um cisco,
Um discurso antibelicista
Para uma platéia de vítimas.

Pela boca se urde a lembrança
De um sem-número de sentidos.
A saliva morna, espumando,
Tão grande e indomável é a cobiça,
Minutos de felação,
A confissão de uns poucos delitos,
Um túmulo dentro de outro
Depois do último suspiro.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Treva alvorada (Mariana Ianelli - 1979)

Absurda leveza que te faz afundar
E não é a morte.

Cumpres tua descida calado
(Uma palavra por descuido
Seria amputar a verdade).

Náufrago do tempo,
Tuas horas transbordam.
Dentro da lágrima,
Imensidão, já não choras.

Estrelas e estrelas,
Copulam a sede e o engenho
De que te alimentas
Como nunca te alimentou
O gosto da carne.

Tua face atônita
Se existisse uma face,
Tuas costas nuas,
Se a nudez fosse do corpo.

Um sorvedouro
Onde a paz dos contrários,
Treva alvorada.

Fecundado, flutuas.
É a lei da graça.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

À meia voz (Mariana Ianelli - 1979)

A terra fraca eu amei,
A terra fraca e desdenhada.

Amei tua carnadura
Sedenta de cuidados,
Meu Deus.

Me doía a casa morta
Erguida sobre séculos,
Em toda parte o ressaibo
De uma guerra difícil.

O leão de pedra na porta
Foi sempre o guardião
Dos jardins
E eu nem sabia.

Não sabia
Do que uma prece é capaz
Quando te abisma
Meu Deus
Num mundo de humana ira.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Dentro da hora (Adriano Espínola - 1952)

— E se acaso este grito
não encontrar sua resposta?

— Se ao invés esta ferida
mais alargar seu território?

— Que faremos se esta briga
armar o tempo à nossa volta?

— Que valia nós teremos,
cercados de chumbo e ódio?

— E se este medo crescer
suas facas dentro de nós?

— Até onde nossos punhos,
sangrando dentro da hora?

— Até quando nosso viver,
se somos tantos roçando a morte?

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Aviso (Adriano Espínola - 1952)

não há lei nem rei
que me afronte:
meu poema é liberdade
minha casa uma ponte

não há rei nem lei
que me amedronte:
meu cartório é o vento
minha escritura é defronte

não há lei nem rei
que me afronte:
minha gleba é o homem
e a hora minha fonte

não há lei nem rei
que me amedronte:
trago um mandato do tempo
e a dor no horizonte.

domingo, 22 de dezembro de 2013

As dunas (Adriano Espínola - 1952)

Avançam,
sorrateiras,
tangidas pela mão simétrica
do vento.

A luz da manhã sobre elas
escorre
como ondas na maré
cheia.
Verdevivos,
os arbustos se agarram
em desespero
à alva memória da areia.

Ali,
as dunas espreitam a cidade
— o bote de areia armado —
à espera do tempo.

Tácitas,
levam nas costas,
esvoaçante,
o presente;
nos peitos, o passado
semovente.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Celeste (Adelino Fontoura - 1859 - 1884)


É tão divina a angélica aparência
e a graça que ilumina o rosto dela,
que eu concebera o tipo de inocência
nessa criança imaculada e bela.

Peregrina do céu, pálida estrela,
exilada na etérea transparência,
sua origem não pode ser aquela
da nossa triste e mísera existência.

Tem a celeste e ingênua formosura
e a luminosa auréola sacrossanta
de uma visão do céu, cândida e pura.

E quando os olhos para o céu levanta,
inundados de mística doçura,
nem parece mulher - parece santa.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Espaço lírico (Cassiano Ricardo - 1895 - 1974)

Não amo o espaço que o meu corpo ocupa
Num jardim público, num estribo de bonde.
Mas o espaço que mora em mim, luz interior.
Um espaço que é meu como uma flor

Que me nasceu por dentro, entre paredes.
Nutrido à custa de secretas sedes.
Que é a forma? Não o simples adorno.
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço

Dentro do meu perfil, do meu contorno.
Que haja em mim um chão vivo em cada passo
(mesmo nas horas mais obscuras) para

Que eu possa amar a todas as criaturas.
Morte: retorno ao incriado. Espaço:
Virgindade do tempo em campo verde.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A medusa de fogo (Cassiano Ricardo - 1895 - 1974)

A simples bulha surda
Do meu coração batendo
Poderá te acordar.
Mesmo a penugem da lua
Que cai sobre o ombro nu
Das árvores, tão de leve,
Poderá te acordar.

A simples caída da bolha
D'água sobre a folha,
Por ser fria como a neve,
Poderá te acordar.
Só porque a rosa lembra
Um grito vermelho,
Retiro-a de diante do espelho
Porque — de tão rubra —
Poderá te acordar.

E se nasce a manhã
Calço-lhe logo pés de lã,
Porque ela, com seus pássaros,
Poderá te acordar.
Mesmo o meu maior silêncio,
O meu mudo pé-ante-pé,
De tão mudo que é,
Não irá te acordar?

Ó medusa de fogo,
Conserva-te dormida.
Com o teu fogo ruivo e meu,
Qual monstruosa ferida.
Como data esquecida.
Como aranha escondida
Num ângulo da parede.
Como rima água-marinha
Que morreu de sede.

E eu serei tão breve
Que, um dia, deixarei
Também, até de respirar,
Para não te acordar.
ó medusa de fogo,
Dormida sob a neve!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A vida é cópia da arte (Waly Salomão - 1944 - 2003)

Areia
Pedra
Ancinho
Jardins de Kioto

Alucinado pelo destemor
De morrer antes
De ver diagramado este poema
Ou eu trago Horácio pra cá
Pra Macaé-de-Cima
Ou é imperativo traí-lo
E ao preceito latino de coisa alguma admirar

Sapo
Vaga-lume
Urutau
Estrela

Nestes ermos cravar as tendas de Omar

Ler poesia como se mirasse uma flor de lótus
Em botão
Entreabrindo-se
Aberta

Anacreonte
Fragmentos de Safo
Hinos de Hörderlin
Odes de Reis
El jardín de senderos que se bifurcan
Jardim de Epicuro
Éden
Agulhas imantadas & frutas frescas para a vida diária.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Dentro do espelho (Duda Machado - 1944)

dentro do espelho
não mais nos vemos

a seu redor, cada objeto imprime
uma velocidade indefinível

já não importa a distância
a mesma nitidez alcança
o que está perto
e o que é remoto

assim persiste
até que uma fadiga
a cada coisa
desdobra e dissipa

qual um acorde
um desmentido
uma propulsão
um vácuo

rumo a um
nada extraordinário

sábado, 14 de dezembro de 2013

Imitação das coisas (Duda Machado - 1944)

Vamos, dedique-se por inteiro
às aparências, às coisas propriamente
ditas. Procure frequentá-las,
trazê-las para dentro de si mesmo,
incorporá-las dia a dia,
a cada instante,
por mais irrisório/absurdo que pareça.

Pode ser, no entanto, que você
não resista o tempo todo
e, de vez em quando, se afaste
da consistência das coisas
e se deixe levar
pelo hábito de transformá-las
em encantamento ou profundidade.

Não se perturbe. Ao persistir,
voltaremos mais uma vez a elas,
imperfeitos e concentrados
- como no amor -, decididos
a alcançá-las, embora adivinhando,
e já pouco importa, que ainda
não estamos preparados.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Satélite (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira.

Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,

Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão somente
Satélite.

Ah! Lua deste fim de tarde,
Desmissionária de atribuições românticas;
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
gosto de ti, assim:
Coisa em si,
-Satélite.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Nu (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

Quando estás vestida,
Ninguém imagina
Os mundos que escondes
Sob as tuas roupas.

(Assim, quando é dia,
Não temos noção
Dos astros que luzem
No profundo céu.

Mas a noite é nua,
E, nua na noite,
Palpitam teus mundos
E os mundos da noite.

Brilham teus joelhos,
Brilha o teu umbigo,
Brilha toda a tua
Lira abdominal.

Teus exíguos
- Como na rijeza
Do tronco robusto
Dois frutos pequenos -

Brilham.) Ah, teus seios!
Teus duros mamilos!
Teu dorso! Teus flancos!
Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos
Ficam nus também:
Teu olhar, mais longe,
Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,
Bóio, nado, salto
Baixo num mergulho
Perpendicular.

Baixo até o mais fundo
De teu ser, lá onde
Me sorri tu'alma
Nua, nua, nua...

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Por que, homem, te ocupas tanto (Mauro Cappelletti - 1927 - 2004)

Por que, homem, te ocupas tanto
se basta um canto para te fazer chorar
basta um nada para que morras?

Embebeda-te antes dos raios do sol
toca o violão aos raios da lua
beija a boca da mulher amada
goza o aperto do seu níveo seio.

Vive e goza do viver
mistura o leve vinho na taça cristalina
há tempo para morrer.


* Tradução do poeta Alexei Bueno

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O espantalho (Adriano Nunes)

Não mais tenho os meus
Artelhos de palha
Velha, nem a mente
A voar co' os corvos.

Quase a chuva e sol
Cegaram-me. Uns pelos,
Do espelho de orvalho,
Vão-se, longe, sinto-os,

De mim, como folhas
Que levar se deixam,
Além, espalhando-me.
Sou esta fagulha

Que aos poucos se esvai,
Tralha sobre tralha,
Trapo sobre trapo...
Perdi-me, entre agulhas,

As pilhas de milhos,
As ilhas de emendas,
As trilhas das traças
E o que partilhei

Com todos, meu ser
De pano e propósito,
O espantalho à espera
Da grã primavera.

Abro bem os braços
E em mim embaralho-me.
Um dia terei
Cabelos grisalhos?

Espanto-me. Encanto-me.
Em um salto mágico,
Todo o cosmo varro, e a
Dizer que me adora


Ouço o vento agora.

sábado, 7 de dezembro de 2013

As dádivas do amante (Carlos Pena Filho - 1929 - 1960)

Deu-lhe a mais limpa manhã
que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
e mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
deu-lhe o verde da ramagem,
deu-lhe o sol do meio dia
e uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
e a que ainda estava por vir,
deu-lhe a bruma dissipada
que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
em que uma rosa floriu
nascida do próprio vento;
ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
e um amanhecer violento
que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
e mais não podia dar.

Restos (Rubem Fonseca - 1925)

O garçom era um velho
habituado a ouvir as queixas dos fregueses
enquanto esperava
a aposentadoria e a morte.
Tinha um rosto branco
enrugado e triste.
Enquanto isso,
a freguesa da mesa da frente,
com ávida sensibilidade de radar,
corria o olhar de um lado para o outro,
procurando machos ainda curiosos
de sua beleza evanescente.
Quando saímos,
éramos os últimos,
uma fila disciplinada de fodidos
esperava os restos finais do dia.
Os restos dos restos
iriam depois para os cães
ainda mais famintos.
Era uma mulher magra
de lábios finos.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

À garrafa (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

Contigo adquiro a astúcia
de conter e de conter-me.
Teu estreito gargalo
é uma lição de angústia.

Por translúcida pões
o dentro fora e o fora dentro
para que a forma se cumpra
e o espaço ressoe.

Até que, farta da constante
prisão da forma, saltes
da mão para o chão
e te estilhaces, suicida,

numa explosão
de diamantes.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Culpado (Chacal - 1951)

foi mal lhe mal
tratei
como um tratante

mal educado
muito infeliz
pouco elegante

espero que
você me dê
mais uma chance

serei atento
a seu desejo
daqui em diante

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Sócio do ócio (Chacal - 1951)

doce ociosidade
sacia minha sede de ser assim
largado no mundo caído na vida
terra mãe luz da manhã

doce sociedade ociosa sempre no cio
já aboliram a escravatura
pendure sua rede mate sua sede
de se espreguiçar

de volta ao princípio
onde o que come é comido
cru ou cozido
vou te devorar

viva nossa carne mortal
de partículas imortais
para pulsar
filhos do sol

até que se cumpra
nosso destino cósmico
sou sócio do ócio
eu sou

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Poemas portugueses 5 (Ferreira Gullar - 1930)

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo – deuses frágeis -
eu colho a ausência que me queima as mãos.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Téquinico (Glauco Mattoso - 1951)

Reflete a inflexão do X no verso,
contada como sílaba. Assim quis.
Portanto, o som dum ‘ex’ vale ‘equis’
no ritmo brasileiro em que converso.

Da mesma forma, é ‘ritimo adiverso’,
mas nunca ‘rimo averso’ que se diz.
Se for no meio termo, como fiz,
às vezes um ‘submerso’ é ‘subimerso’.

A decisão é minha, soberano
que sou do meu soneto, como um rei.
Aqui não dita o crítico Fulano.

Aqui nunca confesso quando errei;
apenas justifico meu engano,
pois quanto mais pratico, menos sei.