sábado, 30 de junho de 2012

Cor-respondência (Elisa Lucinda - 1958)

Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem-feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaço o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Miserable verdad (Carlos Bousoño - 1923)

Miserable verdad que te pareces
tanto a la noche. Tú, mi bien perdido,
tarde alcanzado, tarde apetecido,
tarde bebido hasta la turbias heces.

Yo sé lo que es vivir. Oh, cuántas veces
mi corazón manchado, ennegrecido.
Y amé la mancha y conocí el gemido,
llanto perdido em mar de turbios peces.

Yo sé lo que es vivir. Por eso digo
una salutación tan manãnera
a las pocas verdades que consigo,

a la luz tan escassa que tuviera,
y los errores que viví contigo
hermosamente, aunque la noche fuera.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

recado no avião (Geraldo Carneiro - 1952)

busco em você o sol do meu sistema
eu circulando sempre ao seu redor.
busco em você o bem e o mal de amor
o sonho o carnaval e a dor maior

não sei em que sessão, em que cinema
você nasceu do mar como sereia,
desde que encarnação você passeia
na Ipanema da imaginação

só sei que é cedo sempre que te vejo
e acendo o sol de que o desejo é feito
e fica aqui pairando e percebendo
que até agora o mundo era imperfeito

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Olha-me rindo uma criança (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Olha-me rindo uma criança
E na minha alma madrugou.
Tenho razão, tenho esperança
Tenho o que nunca me bastou.

Bem sei. Tudo isto é um sorriso
Que é nem sequer sorriso meu.
Mas para meu não o preciso
Basta-me ser de quem mo deu.

Breve momento em que um olhar
Sorriu ao certo para mim...
És a memória de um lugar,
Onde já fui feliz assim.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Nada sou, nada posso, nada sigo (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Nada sou, nada posso, nada sigo.
Trago, por ilusão, meu ser comigo.
Não compreendo compreender, nem sei
Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

Fora disto, que é nada, sob o azul
Do lato céu um vento vão do sul
Acorda-me e estremece no verdor.
Ter razão, ter vitória, ter amor

Murcharam na haste morta da ilusão.
Sonhar é nada e não saber é vão.
Dorme na sombra, incerto coração.

Enredo para quarta-feira (Salgado Maranhão - 1953)

claro como ver o sol
que brinca feito um gato
na contradança real da cidade
escarrando na manhã dos favelados:
brilhos e bactérias.

calma na manhã verde-rosa
acossada aos tapumes,
e as cinzas sob o claro
e o teto sob a cara
amanhecendo os pandeiros,
silenciando os enredos: ali,

na revanche dos olhos,
entre ar-
            canos e pipas-alarde
o vento alude
uma pavana para Cartola.

e novamente haverá
salários baixos, fomes, sangue
e paciência,
até o próximo carnaval?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Falando (segundo ato) (Salgado Maranhão - 1953)

A cor dessas horas ínvias
é a mesma cor delírio
dos meus pântanos secretos.

estou para o que vejo
assim como
a faca está pro queijo.

coração de poeta é como espada.

quando estou triste
sou dinamite nos trilhos.
quando me alegro
sou lamparina de festa.

estou para o desejo
assim como
a boca está pro beijo.

coração de poeta é como éter...

domingo, 24 de junho de 2012

Voz de ninguém (Mariana Ianelli - 1979)

Tão somente um gesto
E não o fiz,
Que muitos houvessem tentado,
Apenas eu resisti.

Homens que marcham, que se deixam levar,
Porque vivem.
Estranho guerreiro, eu não marcho.
Corpo morto, já não me carrego.

À frente de cem milhas agrestes,
Como se contra o nada, respondi:
- Estou aqui e perduro.
Isto que hoje fala em mim, em mim se cala.

sábado, 23 de junho de 2012

A viagem (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)

Quem é alguém que caminha
toda a manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
vem morrer no longe horizonte
de meu quarto, onde esse alguém
é vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Poema deserto (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)

Todas as transformações
todos os imprevistos
se davam sem o meu consentimento.

Todos os atentados
eram longe de minha rua.
Nem mesmo pelo telefone
me jogavam uma bomba.

Alguém multiplicava
alguém tirava retratos:
nunca seria dentro de meu quarto
onde nenhuma evidência era provável.

Havia também alguém que perguntava:
Por que não um tiro de revólver
ou a sala subitamente às escuras?

Eu me anulo me suicido,
percorro longas distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina.

Solitudo (Olavo Bilac - 1865 - 1918)

Já que te é grato o sofrimento alheio,
Vai! Não fique em minh'alma nem um traço,
Nem um vestígio teu! Por todo o espaço
Se estenda o luto carregado e feio.

Turvem-se os largos céus... No leito escasso
Dos rios a água seque... E eu tenha o seio
Como um deserto pavoroso, cheio
De horrores, sem sinal de humano passo...

Vão-se as aves e as flores juntamente
Contigo... Torre o sol a verde alfombra,
A areia envolta a solidão inteira...

E só fiquem em meu peito o Saara ardente
Sem um oásis, sem a esquiva sombra
De uma isolada e trêmula palmeira!

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A montanha (Olavo Bilac - 1865 - 1918)


Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
De um vago sussurrar de ladainha,
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha:

Rezas sobre os desertos e as areias,
Sobre as florestas e a amplidão marinha;
E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias,
Mudas servas aos pés de uma rainha.

Ardes, num holocausto de ternura...
E abres, piedosa, a solidão bravia
Para as águias e as nuvens, a acolhê-las;

E invades, como um sonho, a imensa altura,
- Última a receber o adeus do dia,
Primeira a ter a benção das estrelas!

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Discurso (Cecília Meireles - 1901 - 1964)

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

terça-feira, 19 de junho de 2012

A Mário de Andrade ausente (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.

Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra.
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue,
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.

Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua vida continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.

domingo, 17 de junho de 2012

Dia 7 (Maurício Arruda Mendonça - 1964)

Folhas farfalhando pela áspera calçada.
O jeito como o sol resplandeceu.
Foi setembro o dia inteiro
e desfiles de colossais batalhões de sonho
cruzaram a avenida marchando
sobre as flores violáceas dos ipês
com suas fanfarras esfuziantes!
Quem de correr e levitar
numa manhã de brisa sedativa assim,
coisa pouca - rádio ligado no último,
semáforos de drops,
cidade estilhaçando as vitrines do olhar.
Este dia me invadiu a ideia,
veloz como um sorriso,
vaga-lume em terreno baldio,
pôr do sol desbotando um outdoor.

sábado, 16 de junho de 2012

Enigmas (Mario Benedetti - 1920 - 2009)

Todos temos um enigma
e como é lógico ignoramos
qual é a sua chave seu sigilo
raspamos a proximidade
colecionamos os despojos
nos extraviamos nos ecos
e o perdemos no sonho
justo quando ia se decifrar

e tu também tens o teu
um enigma tão simples
que os postigos não o escondem
nem o descartam os presságios
está em teus olhos e os fechas
está em tuas mãos e as retiras
está em em teus peitos e os cobres
está em meu enigma e o abandonas

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Estar aqui (Marcos Siscar - 1964)

ESTAR AQUI seria estar longe de você
você me disse mas que distância
nos tem faltado aqui a cada hora
senão este irreparável acontecimento
de estar vivo se você estivesse aqui
enquanto o procuro no que dos olhos
se vê ou numa inflexão do toque
mal sabia que estar longe seria
tão definitivo tão inusitado tão adjetivo
delírio do lírico respaldo do verbo
para a nossa incontinência afetiva
ah se você soubesse o quanto e como
estar longe é o começo de estar vivo

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Oração da borboleta (Carmen Bernos de Gasztold - 1919)


Senhor!
(Em que ponto eu estava?
Ah, sim, este sol, esta flor...)
Obrigada. Sua criação é uma beleza.
E este perfume de rosa!
(Mas onde é mesmo que eu estava?)
A gota de orvalho
acende fogueiras no coração do lírio.
Eu precisava ir...
Nem sei mais!
O vento pintou suas fantasias
em minhas asas. Fantasias...
(Em que ponto eu estava?)
Ah, é verdade, Senhor,
eu tinha uma coisa para lhe dizer:
                                       Amém.


* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade e constante do livro "Poesia Traduzida", editado pela Cosac Naify.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

a outra voz (Geraldo Carneiro - 1952)


não adianta, nada neste mundo
pertence a ti, nem essa ínfima parte
que te compete recifrar em arte.
só é teu o circo das desilusões,
o canto das sereias, o naufrágio
no qual perdeu-se a vida, o rumo, a nave,
a memória da ilha em que viveste
o ato inaugural da tua odisseia.
Penélope esgarçou-se em muitas faces,
e mesmo a guerra, com seus alaridos,
só sobrevive nas versões dos bardos.
não há mais ilha, nem há mais princípio:
teu principado é só imaginário.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Ludismo (Orides Fontela - 1940 - 1998)

Quebrar o brinquedo
é mais divertido.

As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
Os cacos são outros reais
antes ocultos pela forma
e o jogo estraçalhado
se multiplica ao infinito
e é mais real que a integridade: mais lúcido.

Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só.
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
e o livre jogo instituído
contra a limitação das coisas
contra a forma anterior do espelho.

E a vertigem das novas formas
multiplicando a consciência
e a consciência que se cria
em jogos múltiplos e lúcidos
até gerar-se totalmente:
no exercício do jogo
esgotando os níveis do ser.

Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Deve haver tanta coisa desabada... (Mario Quintana - 1906-1994)

Deve haver tanta coisa desabada
Lá dentro... Mas não sei... É bom ficar
Aqui, bebendo um chope no meu bar...
E tu, deixa-me em paz, Alma Penada!

Não quero ouvir essa interior balada...
Saudade... amor... cantigas de ninar...
Sei que lá dentro apenas sopra um ar
De morte... Não, não sei! não sei mais nada!

Manchas de sangue inda por lá ficaram,
Em cada sala em que me assassinaram...
Pra que lembrar essa medonha história?

Eis-me aqui, recomposto, sem um ai.
Sou o meu próprio Frankenstein - olhai!
O belo monstro ingênuo e sem memória...

domingo, 10 de junho de 2012

Outros olhos (Verônica de Aragão - 1965)

Pra que almejar a coisa em si
e chegar ao inusitado,
se todo o fato já foi dito,
se todo o infinito já foi ao menos intuído?

Pra que desperdiçar a miséria
e almejar o absoluto?

Em luto
pelo que todos conhecem.
E todos os sábios percorrem o mesmo caminho.

Não quero mais do que ser previsível:
apenas olhar a humanidade
e usar palavras;
mostrar as coisas da realidade
que todos conhecem
mas que poucos vislumbram
com os humanos olhos de poeta.

sábado, 9 de junho de 2012

Quando o amor recupera a visão (Fabio Weintraub - 1967)

Tão logo alguém se aproxima
joga-se no chão
finge ter sido espancado
roubado até o último vintém

Se o ajudam a erguer-se
abraça a alma caridosa
esvaziando-lhe a bolsa

O maligno o arrasta
através do fogo
através do vau e do redemunho
do lamaçal e do charco
põe facas em seu travesseiro
ratoeiras em sua sopa

Ele também
não faz por menos:
bebe pinga com o cachorro
joga dados viciados
cede o corpo a proxenetas

É fustigado nos albergues
nos hospitais públicos
e posto na rua a pontapés
quando o amor recupera a visão

Barrabás (Fabio Weintraub - 1967)

Vocês não podem velar
o corpo do meu marido
ao lado desse aí
que a polícia acertou

Vocês me desculpem
imagino o sofrimento
perder um filho assim tão moço

Meu Cícero
morreu trabalhando
Um tiro pelas costas
às duas da manhã
Ao lado do desse aí
o corpo dele não vai gelar

Não adianta insistir
ao lado de bandido
meu marido não fica

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Ignoro se tu és capaz de voltar (Mariana Ianelli - 1979)

Ignoro se tu és capaz de voltar.
Quero a novidade de tua ausência
Com uma paixão sem calor que mais aumenta
Quando tento vencer a realidade.
Sou a paz em que acredito inutilmente
E ainda sou a vertigem desta paz.
O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem,
Que tua forma irresponsável de mover-se,
E se despir e descansar no meu passado.
Tu permaneces aqui sem corpo
E, pensando no oculto, eu abondono a existência
Para me deitar no lago das carpas.
Teria sido o final de um verão
E não o tempo em que te foste
Se em vez de amando eu estivesse louco.
Tu vives no propósito de minhas ficções:
Uma terra deserta, estável e mansa.
Nesta hora em que despareces do meu sonho,
Também eu, predador da tua alma, vou com os mortos.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Amor, dirigimo-nos agora para a casa (Pablo Neruda - 1904 - 1973)

Amor, dirigimo-nos agora para a casa
onde a trepadeira sobe pelas escadas:
antes de tu chegares chegou ao teu quarto
o verão nu com pés de madressilva.

Nossos beijos errantes percorreram o mundo:
a Arménia, espessa gota de mel desenterrado,
Ceilão, pomba verde, e o Yang Tsé separando
com antiga paciência os dias e as noites.

E agora, ó bem amada, pelo mar crepitante
como duas aves cegas voltamos ao muro,
ao ninho da distante primavera,

porque o amor não pode voar sem se deter:
ao muro ou às pedras do mar vão nossas vidas,
ao nosso território regressaram os beijos.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O coisa ruim (Ademir Assunção - 1961)

me querem manso
cordeiro
imaculado
sangrado
no festim dos canibais

me querem escravo
ordeiro
serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal

me querem rato
acuado
rabo entre as pernas
medroso
um verme, pegajoso

mas eu sou osso
duro de doer
caroço
faca no pecoço
maremoto, tufão, furacão

terça-feira, 5 de junho de 2012

Autorretrato (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)


Nome: Vinicius. Por quê?
O Quo Vadis, saído em 13
Ano em que também nasci.
Sobrenome: de Moraes
De Pernambuco, Alagoas
E Bahia (que guardo em mim).
Sou carioca da Gávea
Bairro amado, de onde nunca
Deveria ter saído.
Fui, sou e serei casado
E apesar do que se diz
Não me acho tão mau marido.
Filhos: três e um a caminho
Altura: um metro e setenta
Meão, pois. O colarinho
Trinta e nove e o pé quarenta.
Peso: uns bons setenta e três
(precisam ser reduzidos...)
Dizem-me poeta; diplomata
Eu o sou, e por concurso
Jornalista por prazer
Nisso tenho um grande orgulho
Breve serei cineasta
(Ativo). Sou materialista.
Deito mais tarde que devo
E acordo antes do que gosto.
Fui auxiliar de cartório
Censor cinematográfico
Funcionário (incompetente)
Do Instituto dos Bancários.
Atualmente sou segundo
Secretário de Embaixada.
Formei-me em Direito, mas
Sem nunca ter feito prática.
Infância: pobre mas linda
Tão linda que mesmo longe
Continua em mim ainda.
Prefiro vitrola a rádio
Automóvel a trem, trem
A navio, navio a avião
(De que já tive um desastre).
Se voltasse a vida atrás
Gostaria de ser médico
Pois sou um médico nato.
Minhas frutas prediletas
Por ordem de preferência:
Caju, manga e abacaxi.
Foi com meu pai, Clodoaldo
de Moraes, poeta inédito
Que aprendi a fazer versos
(Um dia furtei-lhe um
Para dar à namorada).
Tinha dezenove anos
Quando estreei com meu livro
"O Caminho para a Distância"
Meu preferido é o último:
"Poemas, Sonetos e Baladas".
Toco violão, de ouvido
E faço sambas de bossa
Garoto, lutei "jiu-jitsu"
Razoavelmente. No tiro
Sobretudo em carabinas
Sou quase perfeito. As coisas
Que mais detesto: viagens
Gente fiteira, facistas,
Racistas, homem avarento
Ou grosseiro com mulher.
As coisas que mais gosto:
Mulher, mulher e mulher
(com prioridade da minha)
Meus filhos e meus amigos.
Ajudo bastante em casa
Pois sou um bom cozinheiro
Moro em Paris, mas não há nada
Como o Rio de Janeiro
Para me fazer feliz
(E infeliz). Desde os 7 anos
Venho fazendo versinhos
Gosto muito de beber
E bebo bem (hoje menos
Do que há dez anos atrás).
Minha bebida é o uísque
Com pouca água e muito gelo.
Gosto também de dançar
E creio ser essa coisa
A que chamam de boêmio.
Em Oxford, na Inglaterra
Estudei literatura
Inglesa, que foi
Para mim fundamental.
Gostaria de morrer
De repente, não mais que
De repente, e se possível
De morte bem natural.
E depois disso, ao amigo
João Condé nada mais digo.

Meu povo, meu poema (Ferreira Gullar - 1930)

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Passeio (Renato Rezende - 1964)

Demoro-me
no centro da cidade,
no Castelo, no Passeio.
Demoro-me
no Rio de Janeiro
como se fosse outrora
e se dissesse:
Ele demorava-se no Centro,
a esmo.
Demoro-me como quem quer
ser atropelado
sumir num tropeção
esquecer-se de si mesmo.
Demoro-me como se demoram
os mendigos que moram na rua
e que esperam o dia inteiro
para suas casas serem abandonadas.
Demoro-me como um destituído
cuja única felicidade
o clarão de luz na cara.

domingo, 3 de junho de 2012

Correio (Miguel Sanches Neto - 1965)

Trago-te flores de hoje,
recém-colhidas,
embrulhadas em jornais
já amarelos.

Ei-las envolvidas por anúncios
de carro, acompanhante,
casa em bairro bem localizado
e pelas notícias ínfimas:
a queda do ministro,
o índice da inflação de abril
e um etc. igualmente medíocre.

Traga-te estas flores
embrulhadas em assuntos velhos
(quem se lembrará do ministro caído?)
para que você não se esqueça
de amar-me com urgência.

sábado, 2 de junho de 2012

Sair (Antonio Cicero - 1945)

Largar o cobertor, a cama, o medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul - céu do dia -
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Ela e sua cidade (Fabrício Corsaletti - 1978)

Vai buscando as nuvens compactas,
como um samba perfeito,
nesta tarde de sol em que a poesia
é menos que a poesia.
Sabe onde estão os vidros da noite.
Tem dedos infinitos,
narinas transparentes,
imperfeitas sobrancelhas intocadas.
Nos seus quadris começa o mundo.
Seu passo aperfeiçoa o amor.
Há redes grávidas, amarelas
em toda a costa do mapa.
De cada bicho rouba uma surpresa.
Pantera branca, garota de colégio
(jamais um tigre de Bengala
desbotado); brancura acinzentada
do cinema em preto-e-branco.
E as palavras vivas, na boca viva,
são um pensamento livre.
(Ela deveria ter sido poupada para o mundo justo.)
Antes de se cansar, desaparece.
Depois amanhece.
Viver para ela deve ser bom.

29 dias (Josely Vianna Baptista - 1957)

restos de flores de goivo,
gomos e lábios vermelhos
- o lento engenho do jogo
no começo dos afagos

(sobre o leito frondoso
o alvorecer poento
encontre os noivos reclusos
dentro do próprio desejo)

dedos trêmulos e beijos
sobre teus cabelos negros
- lampejo sombrio de gozo
no fôlego dos abraços

(junto aos latejos do fogo
o poente poeirento
encontre os noivos desnudos
no assombro do silêncio)

restos de flores de goivo
sobre seus cabelos negros