quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Poema espiritual (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Eu me sinto um fragmento de Deus
Como sou um resto de raiz
Um pouco de água dos mares
O braço desgarrado de uma constelação.

A matéria pensa por ordem de Deus,
Transforma-se e evolui por ordem de Deus.
A matéria variada e bela
É uma das formas visíveis do invisível.
Cristo, dos filhos do homem és o perfeito.

Na igreja há pernas, seios, ventres e cabelos
Em toda parte, até nos altares.
Há grandes forças de matéria na terra no mar e no ar
Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões dos pensamentos divinos.
A matéria é forte e absoluta
Sem ela não há poesia.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A marcha da história (Murilo Mendes - 1901 -1975)

Eu me encontrei no marco do horizonte
Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias.

Eu me encontrei onde o real é fábula,
Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores,

Onde o homem e a mulher são um,
Onde as espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Provisões (Alberto da Cunha Melo - 1942 - 2007)

A palavra Deus está fria
como uma máquina ao relento;
é uma palavra que morreu
sem lã, na garganta dos pobres.

Amarrado a este tronco velho
e esperando que ele apodreça,
que grito agora tu darás
para aqueles que se aproximam?

Amanhã não é propriamente
uma palavra que te salve.
É um sonho que busca outro sonho
mais longínquo, para esganar-te.

É cedo ainda porque as chamas
da ventania não chegaram,
é cedo ainda porque insistes
em contemplá-las algum dia.

Vozes isoladas nos campos
murados não se comunicam;
e alguém, que de longe te viu,
entre espinheiros fecha os olhos.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

felicidade (Geraldo Carneiro - 1952)

meu escasso repertório de metáforas
não dá conta da vida, que é uma flor.
não me canso de voar na ave-vida,
nas aventuras que penso e planejo
até que a morte me convença
e me vença:
só assim haverá de me arrancar
dessa cidade-esplendor que se lança
sobre o mar:
é aqui que sonho todos os amares
a vida-mar em que navegarei
por avesso a viagens noutro céu
que não essa ave-rara: a Guanabara.

domingo, 27 de janeiro de 2013

o não quixote (Geraldo Carneiro - 1952)

a raça humana sempre me agradou,
embora não me agradem seus costumes.
gosto do ser humano sem a armadura
dos conceitos de como proceder,
como sorver o céu o sal a mulher amada.
sou sempre desconforme as circunstâncias.
um sopro me conduz embriagado
sob a luz das lâmpadas que se acendem
no interior das pessoas.
quando não se acendem, sou a treva,
me atrevo a navegar o mar escuro
entre a demência e a melancolia
até que me atraco no cais de um verso,
elejo alguma deusa que me abrigue,
faço da utopia minha lança
com que me lanço contra todos os moinhos,
mesmo sabendo que serei desfeito
e devolvido à poeira do universo.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Amor (Álvares de Azevedo - 1831 - 1852)

Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!

Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábios beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!

Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
A tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minha'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!

E entre suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Rimas (Euclides da Cunha - 1866 - 1909)

Ontem - quando, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão - louca - suprema
E no teu lábio, essa rósea algema,
A minha vida - gélida - prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...

Hoje, que vivo desse amor ansioso
E és minha - és minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste sendo tão ditoso!

E tremo e choro - pressentindo - forte,
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida - que é a morte...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Umbrática nuvem (Bárbara Lia - 1955)

Tudo que me toca
Vira livro
Só você virou esfinge
(Miragem)

Tudo que me toca
Esfuma
Só você grudou
Água na pele
(Placenta de Eros onde nado)

Tudo que me toca
Agride
Só você no quarto antigo
(Baque de algodão)

Tudo que me toca
Vira livro
Só você cruzou meu céu
- Umbrática nuvem -
Escreveu-me / Inscreveu-se

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Ars Poética (Myriam Fraga - 1937)

Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.

Nas esquinas da morte
Enterrei a gorda
Placenta exundiosa

E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.

Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos,
Um lento porejar
De venenos sob a pele.

Poesia é arte
Da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.

Em vão,
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A estrutura das vísceras.

Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.

Poesia é esta coisa
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo,

Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Estudo 165 (Antonio Brasileiro - 1944)

Compor um homem
com suas tramas, seus dramas,
teogonias, gramáticas, soluços:
compor um homem,
do orvalho matinal compor um homem,
do céu cheio de estrelas, do mistério
do homem
compor o homem; compor um homem
a criança que há no homem, do homem
a adivinhar-se em antiquíssimas retinas;
compor um homem
com seus soluços, gramáticas, teogonias
- e recitá-lo perante os outros homens.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Se há muito o que inventar... (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Se há muito o que inventar por estes lados
O que sei com certeza são meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza.

À procura da rosa tenho andado
Causando às criaturas estranheza.
(Se me encontrares
Terei um jeito de flor
E um não sei quê de brisa
Nos meus ares.
Hei de buscar a rosa
- A dos altares -
E sinto graça nos pés
Leveza nos andares)

Não temes
As deidades atentas da memória
Os gnomos secretos, a loucura,
A morte?

domingo, 20 de janeiro de 2013

No álbum do artista (Castro Alves - 1847 - 1871)

Nos tempos idos... O alabastro, o mármore
Reveste as formas desnuadas, mádidas
De Vênus ou Friné.
Nem um véu p'ra ocultar o seio trêmulo,
Nem um tirso a velar a coxa pálida...
O olhar não sonha... vê!

Um dia o artista, num momento lúcido,
Entre gazas de pedra a loura Aspásia
Amoroso envolveu.
Depois, surpreso! ... viu-a inda mais lânguida...
Sonhou mais doido aquelas formas lúbricas...
Mais nuas sob um véu.

É o mistério do espírito... A modéstia
É dos talentos reis a santa púrpura...
Artista, és belo assim...
Este santo pudor é só dos gênios!—
Também o espaço esconde-se entre névoas...
E no entanto é... sem fim!

sábado, 19 de janeiro de 2013

Destruição (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Uma vez mais, amor, a rede do dia extingue (Pablo Neruda - 1904 - 1973)

Uma vez mais, amor, a rede do dia extingue
trabalhos, rodas, fogos, estertores, adeuses,
e nos entregamos à noite o trigo vacilante
que o meio-dia obteve da luz e da terra.

Só a lua no meio da sua página pura
sustenta as colunas do estuário do céu,
o nosso quarto adota a lentidão do ouro
e as tuas mãos vão e vêm, preparando a noite.

Oh amor, oh noite, oh cúpula fechada por um rio
de impenetráveis águas na sombra do céu
que destaca e submerge as suas uvas tempestuosas,

até que somos apenas um só espaço escuro,
uma taça onde cai a cinza celeste,
uma gota no pulso dum lento e longo rio.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Poética (Claudio Willer - 1940)

então é isso
quando achamos que vivemos estranhas experiências
a vida como um filme passando
ou faíscas saltando de um núcleo
não propriamente a experiência amorosa
porém aquilo que a precede
e que é ar
concretude carregada de tudo:
a cidade refluindo para sua hora noturna e todos
indo para casa ou então marcando encontros
improváveis e absurdos, burburinho da multidão
circulando pelo centro e pelos bairros enquanto as
lojas fechadas ainda estão iluminadas, os loucos
discursando pelas esquinas, a umidade da chuva
que ainda não passou, até mesmo a lembrança da
noite anterior no quarto revolvendo-nos em carícias
e mais nosso encontro na morna escuridão de um
bar - hora confessional, expondo as sucessivas
camadas do que tem a ver - onde a proximidade
dos corpos confunde tudo, palavra e beijo, gesto e
carícia
TUDO GRAVADO NO AR
e não o fazemos por vontade própria
porém por atavismo

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Flor do ofício (Mariana Ianelli - 1979)

Emboscada no silêncio
Eu preparo a rosa inútil
Com as horas que salvei
Do desperdício.

Feito um verme
Decompondo ceticismo
Em força indômita,
Preparo e deito essa flor
No teu caminho
Para quando o teu corpo
(Tão quebrantável quanto o meu)
For sozinho pastorear
Seus demônios no vazio.

Quase dois mil anos
Guardado no deserto
Um salmo esperou
Para recobrar sua melodia –
E eu não te esperaria?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O país das maravilhas (Antonio Cícero - 1945)

Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrei às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Viajar (Felipe Fortuna - 1963)

Viajar todas as vezes
que o corpo precisar
(fabricar a viagem de alguma substância
da glândula).
As lágrimas são uma necessidade,
assim como o suor:
que a viagem também
transforme seu rosto,
regule a temperatura do corpo.

Depois, ir.

Ir suspenso, guiado por tudo
que produzir
os verbos “fazer chegar”.
Muitas curvas, montanhas,
encontrar com surpresa “córrego,
atalho”, tudo levando à mesma viagem
que já deixa memória,
mas está por começar?

Viagem por onde só a família foi,
viagem que tem animais, portas,
nomes de lugares.
E a persistência
enfática:
continuar. Febre, sede.

Depois, voltar?
Induzir a turva reação
de cores prolongadas, e partir
para outro caminho,
à solta.
A viagem repete o viajante,
e ele não nota.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Paisagem nua (Salgado Maranhão - 1953)

um corpo de mulher
diz o que quer:
trópicos de cores vivas
pontos cardeais do ser.

de algum maná invisível
despencam formas de frutas
pedaços de flor e fúria.

um corpo de mulher
pode o que quer
e reina em suas leis de lã
desarmando lanças
de furiosos invasores.

vaza do gomo dos seios,
brota do vértice das coxas,
essa paisagem hipnótica
que ri da nossa certeza.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Aparência (Álvaro Alves de Faria - 1942)

Não é um dia
este dia
mas um instante.
Nada além
nem aquém disso:
um momento.

Não é uma noite
esta noite
mas um apelo.
Nada mais
nem menos que isso:
um pedido.

Não é o mundo
este mundo
mas sim ausência.

Nem isso nem aquilo:
só aparência.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Mas (Sérgio Alcides - 1967)

Não há corpos, não há tempo
fora desta mancha gráfica,
página estreita virando,
escrita sombra de sonho,
curva de interrogação
- num tobogã? numa foice? -
por onde desliza o carro
de quem mesmo? Faetonte?
Aquileu? Belerofonte?
Meu? Não fui eu quem botou
uma letra atrás da outra
como se fossem os dias
afiando a sua lâmina, e
preparando meu espanto
que vai dar na poesia.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

As faces encostadas nos vitrais (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

As faces encostadas nos vitrais
E através, as figuras e o jardim.
E era tanta a vontade de ver mais
Que uma névoa descia sobre mim.

E o que eu queria ver, via jamais.
O cheiro quase rubro dos jasmins
Redobrava meu pranto de seus ais
Nessa tarde de luz nos seus confins.

Voltou-se o amigo e olhou minha tristeza.
Eu só te vejo a ti. Antes não visse.
Imaginaste a tarde. Ela não existe.


Mas seu rosto era pleno de beleza
E por isso deixei que me mentisse
Antes que só por mim ficasse triste.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Martírio (Junqueira Freire - 1832 - 1855)

Beijar-te a fronte linda
Beijar-te o aspecto altivo
Beijar-te a tez morena
Beijar-te o rir lascivo
Beijar o ar que aspiras
Beijar o pó que pisas
Beijar a voz que soltas
Beijar a luz que visas
Sentir teus modos frios,
Sentir tua apatia,
Sentir até repúdio,
Sentir essa ironia,
Sentir que me resguardas,
Sentir que me arreceias,
Sentir que me repugnas,
Sentir que até me odeias,
Eis a descrença e a crença,
Eis o absinto e a flor,
Eis o amor e o ódio,
Eis o prazer e a dor!
Eis o estertor de morte,
Eis o martírio eterno,
Eis o ranger dos dentes,
Eis o penar do inferno!

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Barbarola (Eudoro Augusto - 1943)

Hoje suja
a vida ainda apetece
e um fio de luz imunda me tece
enlaça ao sol meus olhos fechados
vermelhos inchados
ainda boiando no pântano da noite.
O mundo visível. Um clarão terrível.
Já em fogo o dia me recebe
com um sopro indiferente.
Com sua horda bárbara de ruídos,
risos, rezas, rosnada realidade.
Penso em vencer a repugnância
e beijar fundo a sua boca aberta.
Penso em navegar pelos mares de sua luz
e outra vez vestir a malha do sono.
Penso em ti. Penso em mim.
Um fragmento de carne pulsante
em forma de coração
coberto de erva e treva.
Luz, alegria: agora tudo apenas
fosca memória tilintante.
Sem mais, comunico com pesar
que o projeto Eudoro Augusto
não é viável neste momento.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Tenho tudo (Carlos Felipe Moisés - 1942)

Tenho tudo o que não quero.
Perder não é senão o intervalo
entre aguardar e nada ter.
(Que melodia é esta
que povoa o espaço em meu redor?)
Tenho tudo. Nada quero.
O coração desconhece
o compasso que amanhece
tudo em torno.
No entanto
meus passos seguem
- no encalço de quê?

Tenho tudo: a noite abrigada em meu peito
a música de meus passos
a relva o caminho
a distância
coberta por inesquecível melodia.
Não quero mais do que tenho.
(Um canto flutua no ar vazio.)

Tenho tudo: os pássaros que me fogem dos olhos
para saudar
no horizonte
a úmida manhã que principia.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Poema (Orides Fontela - 1940 - 1998)

Saber de cor o silêncio
diamante e/ou espelho
o silêncio além
do branco.

Saber seu peso
seu signo
- habitar sua estrela
impiedosa.

Saber seu centro: vazio
esplendor além
da vida
e vida além
da memória.

Saber de cor o silêncio

- e profaná-lo, dissolvê-lo
em palavras.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Longe (Leila Krüger)

Mas se eu tiver que ser sozinha, serei inteira
serei plácida, como o lago que espera a chuva
como a chuva que busca a manhã.

E se eu tiver que ser escura, serei grandiloquente
se tácita, valente
se árida, compreensiva, ao menos
se ainda assim severa... então liberta.

E se me perder de tudo, e até do fim...
possivelmente eu serei nova
como o verão, no céu de janeiro
como janeiro, no céu de Paris!
Seja lá onde for Paris...

Hoje, em qualquer lugar, longe daqui. Longe, longe...

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Ofício (Gastão Cruz - 1941)

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O portão (Lêdo Ivo - 1924 - 2012)

O portão fica aberto o dia inteiro
mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.
Não espero nenhum visitante noturno
a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.
A noite é tão silenciosa que me faz escutar
o nascimento dos mananciais nas florestas.
Minha cama branca como a via-láctea
é breve para mim na noite negra.
Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta
derruba uma estrela e enxota um morcego.
O bater de meu coração intriga as corujas
que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma
do dia e da noite paridos pelas águas.
No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.
Sou o vento que apalpa as alcachofras
e enferruja os arreios pendurados no estábulo.
Sou a formiga que, guiada pelas constelações,
respira os perfumes da terra e do oceano.
Um homem que sonha é tudo o que não é:
o mar que os navios avariaram,
o silvo negro do trem entre fogueiras,
a mancha que escurece o tambor de querosene.
Se antes de dormir fecho o meu portão
no sonho ele se abre. E quem não veio de dia
pisando as folhas secas dos eucaliptos
vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos
que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou
— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham
e se agitam na escuridão, e gritam as palavras
que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim
e ao doce esterco fermentado.
os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas
e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.
Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite.
Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho
protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras
e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.
À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.
Embora o meu portão vá amanhecer fechado
sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,
e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Acontecimento do Soneto (Lêdo Ivo - 1924 - 2012)

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O alfabeto da devassa (Luiz Roberto Nascimento Silva)

Por mais duro que pareça agora
isso tudo passará.
A tempestade irá embora.

As nuvens pesadas se dissiparão.
Poderemos olhar o céu,
sol poente; novamente

Guardaremos a lição:
para cada azul cintilante
brilhando sob nossas cabeças

existe igual noite de trevas
mosaico invertido,
grafite da escuridão.