sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O verbo no infinito (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se, e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Permanência (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesma, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

A flor e a náusea (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Vem, doce morte (Henriqueta Lisboa - 1904- 1985)

Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfiam pálidos casulos
e o suspiro das árvores - secreto -
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.

Quando queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso - mais alto - refloresça.

domingo, 25 de agosto de 2013

Volúpia (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...

sábado, 24 de agosto de 2013

Acostuma-te a ver atrás de mim a sombra (Pablo Neruda - 1904 - 1973)

Acostuma-te a ver atrás de mim a sombra
e que as tuas mãos saiam do rancor, transparentes,
como se na manhã do mar fossem criadas:
o sal deu-te, meu amor, proporção cristalina.

A inveja sofre, morre, esgota-se com meu canto.
Um a um agonizam seus tristes capitães.
Digo amor, e o mundo povoa-se de pombas.
Cada sílaba minha traz a Primavera.

Então tu, minha flor, meu coração, bem-amada,
és nos meus olhos como a folhagem
do céu, e vejo-te reclinada na terra.

Vejo o sol transportar cachos para o teu rosto,
olhando para o alto reconheço os teus passos.
Matilde, bem-amada, diadema, bem-vinda!

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Espinhos, vidros partidos, enfermidades, lágrimas (Pablo Neruda - 1903 - 1974)

Espinhos, vidros partidos, enfermidades, lágrimas
assediam noite e dia o mel dos seres felizes
e de nada servem a torre, a viagem, os muros:
a desgraça atravessa a paz dos que dormem,

a dor sobe e desce e aproxima as suas colheres
e não há homem sem este movimento,
não há dia de anos, não há teto nem cerca:
é preciso ter em conta este atributo.

E também não aproveitam, no amor, olhos fechados,
profundos leitos longe do pestilento ferido,
ou do que passo a passo conquista a sua bandeira.

Porque a vida é pegajosa como cólera ou rio
e abre um túnel sangrento por onde nos vigiam
os olhos duma imensa família de dores.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Dorme ruazinha... (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Envelhecer (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sendo quem sou, em nada me pareço (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.

Cansam-me as esperanças renovadas
E o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Despe-te das palavras e te aquece (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Despe-te das palavras e te aquece.
Toma nas mãos esses odres de terra
E como quem passeia, leva-os ao mar.
Se tudo te foi dado em abundância
O sal e a água de uma maré cheia
Eu te darei também a temperança.

Deita-te depois e vibra tua garganta
Como se fosse o início de um cantar.
Não cantes todavia.
Aqui, zona de tato e calor, margem do ser
Larga periferia, olha teu corpo de carne
Tua medida de amor, o que amaste em verdade.
O que foi síncope.
Todavia não cantes na perplexidade.

domingo, 18 de agosto de 2013

Escarpa (Ivan Junqueira - 1934)

Vem. É por aqui.
É por aqui a escarpa
onde te aguarda
a áspera escalada.
Nem relva nem regato,
tampouco uma árvore
que te agasalhe
ou solitário galho
cuja sombra magra
de ti se apiade.
Sequer um pássaro
(às vezes, mas é raro,
o ninho ensanguentado
de uma ou outra águia).
Apenas o calcário
de trilha que se arrasta,
pedregosa e escassa,
entre urtigas e cactos.

A esperança não importa,
nem o amor, nem a saudade
dos que te amaram
e ficaram lá embaixo.
Mas uma pedra te cabe
e hás de levá-la
até às bordas da escarpa,
mesmo que saibas
(e este é o caso)
que ela depois desaba
encosta abaixo,
e que ainda uma vez
e outra vez mais
te cabe apenas carregá-la
rumo ao topo ensolarado,
como se leva um fardo
(talvez o teu cadáver)
sobre o arco das espáduas.

Vem. É por aqui.
É por aqui a escarpa
que hás de galgar
em direção ao nada.

sábado, 17 de agosto de 2013

Não virá (Ivan Junqueira - 1934)

Quando virá? Não virá nunca.
Será sempre a garra adunca
encravada em minha nuca.
Será sempre essa verruma
que a memória me perfura
e o pensamento me empurra
para o túmulo da dúvida.
Será, não o sol, mas a chuva
cujas gotas caem mudas
sobre o inútil latifúndio
onde tudo enfeza e murcha.
Será a alma na penumbra,
alheia ao êxtase e ao júbilo,
sobre si dobrada em ruga
e atenta apenas ao curso
do tempo e de suas curvas,
desse rio em cujo fluxo
somente uma vez mergulhas.
Será talvez, quando muito,
essa espera taciturna,
essa volúpia da luz
que soluça ao fim de um túnel
jamais percorrido a fundo.
Não virá, não virá nunca.
E lá estarás, ao crepúsculo,
sem esperanças nenhuma,
o rosto absorto, mediúnico,
sem mover sequer um músculo.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O andarilho (Manoel de Barros - 1916)

Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papeis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Prefácio (Manoel de Barros - 1916)

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) -
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
dependimentos demais
e tarefas muitas -
os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
que as moscas iriam iluminar
o silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas -
passaram essa tarefa para os poetas.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Gnomos de sândalo (José Leite Netto - 1973)

templário de pó meu amor de mármore
sonhos idos, sonhos meus que se perdem
teus olhos um deus de seiva e árvore
aroma em que desenho mito e éden

gnomos de sândalo, dor que se deixa
aos incensos e ao vento feito pedra
esculpindo na esfinge tempo e queixa
rosas, pétala e cheiro que em quimera

a ilusão de um só tempo que não passa
e sendo eu tua louca alquimia e perfume
perco-me em teu ser e me acho em tua praça

feito negro cacto espinho em seu gume
vou por entre teu sexo penetrar-te
com dionisíacas fadas possa eu gozar-te?

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Farrapos de deuses (José Leite Netto - 1973)

caía a tarde afro nos olhos bruxa de Afrodite
na rua do desterro Adônis que ali morria
enquanto o desespero da saxífraga rompia
a solidão tenaz da rocha no asfalto

adagas onde o corpo morto apontava
sinal vermelho num mar de sonho abandonado
feito fúnebre hieróglifo encontrado
enigma velho: clarins rosa naufrágio

e amor que havia de ser correnteza calma
dorme sujo na esquina, morre na calçada
farrapos de deuses, gente não amada

dor que só a dor de um beijo solto do limbo
é restinho de vinho pigmentando flores
taça onde tudo é vida cálice de dores.

domingo, 11 de agosto de 2013

O grito (Antônio Cícero - 1945)

Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a sonhar
cruzamentos febris e inopinados.
Você diz “claro” e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo
E daí? Dia desses com um só grito
eu estraçalho todos os grilhões.

sábado, 10 de agosto de 2013

Alguns versos (Antônio Cícero - 1945)

As letras brancas de alguns versos me espreitam
em pé no fundo azul de uma tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Soneto das luzes (Antônio Carlos Secchin - 1952)

Uma palavra, outra mais, e eis um verso,
doze sílabas a dizer coisa nenhuma.
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço
que este quarteto seja inútil como a espuma.

Agora é hora de ter mais seriedade,
para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
mas não se cansa de acenar um não eterno.

Falar de amor, oh pastor, é o que eu queria,
porém os fados já perseguem teu poeta,
deixando apenas a promessa da poesia,

matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus frecheiro me lançasse a sua seta,
eu tinha a chave pra trancar este soneto.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Linguagens (Antônio Carlos Secchin - 1952)

Notei que o vôo negro da hipálage
não tinha o mel dos lábios da metáfora,
e mais notara, se não fora a enálage,
e mais voara, se não fosse a anáfora.

Chorei dois oceanos de hipérbole,
duas velas cortaram a metonímia.
O pé da catacrese já marchava
no compasso toante dessa rima.

Verteu prantos a anímica floresta,
mas entramos dentro do pleonasmo,
‘stamos em pleno oceano da aférese...

Vai-se um expletivo, outro e outro mais...
Os poetas somos muito silépticos;
os poemas, elípticos demais.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Concorde com Freud (Antônio Carlos Secchin - 1952)

Matou o analista e foi a Miami.
Na fuga, levou a reboque
a série inglesa de Hitchcock.

Damas ocultas em jardim sem medo
se ofereciam em zoom
para levá-lo a lugar nenhum.

Comparado a seu rosto, dir-se-ia negro
qualquer giz; tal qual surge, intenso,
um osso, no raio-x.

Indagado na fila do passaporte,
declarou que só trazia
na mala a morte.

A tudo respondeu solene e quieto
com minúcias tediosas
de um hemograma completo.

Da mãe herdara um trono abandonado,
escondido numa esquina da infância
e no calibre três-oitão recuperado.

Queria entrar no Reino da Fantasia,
saudar Minnie, Pateta, Alice e a Madrasta,
e com o mel do amor e o mal da teimosia

suplicou à polícia a dádiva de um dia.
Voltou algemado, em classe econômica,
sendo também proibido

de ligar até um fone de ouvido.
Desejou marcar nova sessão,
mas no Paraíso não se dá plantão.

Caju, Catumbi, João Batista,
num deles mora hoje o analista.
Órfão pela terceira vez,

passa o dia jogando damas
na cela do xadrez. Viver, agora,
quando tantos dissecaram sua história,

lhe parece bem mais fácil:
ele, sem qualquer ajuda,
conseguiu escrever o posfácio

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O vivo (Augusto de Campos - 1931)

Não queiras ser mais vivo do que és morto.
As sempre-vivas morrem diariamente
Pisadas por teus pés enquanto nasces.
Não queiras ser mais morto do que és vivo.
As mortas-vivas rompem as mortalhas
Miram-se umas nas outras e retornam
(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!)
Para amassar o pão da própria carne.
Ó vivo-morto que escarnecem as paredes,
Queres ouvir e falas.
Queres morrer e dormes.
Há muito que as espadas
Te atravessando lentamente lado a lado
Partiram tua voz. Sorris.
Queres morrer e morres.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A igreja nova (Augusto de Campos - 1931)

A antiga capela não bastava.
Mal sobranceava os colmos achatados.
Começou a erigir-se a igreja nova.
Delineara-a o próprio Conselheiro,
sem módulos, sem proporções, sem regras.
Frisos grosseiros e volutas impossíveis
cabriolando
num delírio de curvas incorretas.
Era sua obra-prima.
Ali passava os dias,
sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes.
O povo enxameando embaixo
estremecia muita vez ao vê-lo
passar, lentamente,
sobre as tábuas flexuosas e oscilantes,
impassível,
sem um tremor no rosto bronzeado e rígido,
feito uma cariátide errante
sobre o edifício monstruoso.

domingo, 4 de agosto de 2013

Língua-mar (Adriano Espínola - 1952)

A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.
Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar, viajando em todos nós.
No teu sal, singra errante a minha voz.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Poemeu final (Millôr Fernandes - 1923 - 2012)

Você que arquiteta,
Onde é que eu moro?
Você que canta,
Quando é que eu choro?
Você que me cobra,
Espera minha obra.
Quando a vida estiver pronta
Var ser aquele estrago!
Eu moro,
Eu choro,
Eu pago.