quarta-feira, 29 de abril de 2015

As cidades e seus donos (Frederico Barbosa - 1961)

há cidades desconfiadas
impessoais misteriosas
recife são paulo
em que se mora por empréstimo
de aluguel de passagem
sem se sentir dono
como inquilino temporário
mas que ninguém tem

há cidades que por mistério
se entregam por inteiro
salvador rio de janeiro
em que cada morador
é proprietário verdadeiro
em que todo o povo
sente-se e afirma-se dono
em todo gesto no menor jeito

domingo, 26 de abril de 2015

Visão (Eucanaã Ferraz - 1961)

Seria fácil comparar as araucárias a candelabros.
Mas eu digo que elas se parecem com aquele rapaz

que, braços, cabelos, surgiu devagar
sob a luz de junho, úmida de orvalho.

Veio em minha direção.

E trazia o horizonte
nos seus ombros largos.

sábado, 25 de abril de 2015

A voz do poeta (Ferreira Gullar -1930)

Não é voz de passarinho
flauta do mato
viola

Não é voz de violão
clarinete pianola

É voz de gente
(na varanda? na janela?
na saudade? na prisão?)

é voz de gente - poema:
fogo logro solidão

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Homem sentado (Ferreira Gullar -1930)

Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Vestibular (Ferreira Gullar - 1930)

Paulo Roberto Parreiras
desapareceu de casa.
Trajava calças cinza e camisa branca
e tinha dezesseis anos.
Parecia com o teu filho, teu irmão,
teu sobrinho, parecia
com o filho do vizinho
mas não era. Era Paulo
Roberto Parreiras
que não passou no vestibular.

Recebeu a notícia quinta-feira à tarde,
ficou tarde
e sumiu.
De vergonha? de raiva?
Paulo Roberto estudou
dura duramente
durante os últimos meses.
Deixou de lado os discos,
o cinema,
até a namoradinha ficou dias sem vê-lo.
Nem soube do carnaval.
Se ele fez bem ou mal
não sei: queria
passar no vestibular.
Não passou. Não basta
estudar?

Paulo Roberto Parreiras
a quem nunca vi mais gordo,
onde quer que você esteja
fique certo
de que estamos de seu lado.
Sei que isso é muito pouco
Para quem estudou tanto
e não foi classificado (pois não há mais
excedentes), mas
é o que lhe posso oferecer: minha palavra
de amigo
desconhecido.
Nesta mesma quinta-feira
Em Nova York morreu
um menino de treze anos que tomava entorpecentes.
Em São Paulo, outro garoto
foi preso roubando um carro.
ou surgem como cometas ardendo em sangue, nestas noites,
nestas tardes,
nestes dias amargos.

Não sei pra onde você foi
nem o que pretende fazer
bem posso dizer que volte
para casa,
estude (mais?) e tente outra vez.
Não tenho nenhum poder,
nada posso assegurar.
Tudo que posso dizer-lhe
é que a gente não foge
da vida,
é que não adianta fugir.
Nem adianta endoidar.
é que você tem o direito de estudar.
É justa a sua revolta:
seu outro vestibular.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Boato (Ferreira Gullar - 1930)

Espalharam por aí que o poema
é uma máquina
ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pele
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.

Mas como, gente,
se estamos em janeiro de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos já me surgem no pentelho?
Como ser neutro se acabou de chover e a terra cheira
e o asfalto cheira
e as árvores estão lavadas com suas folhas
e seus galhos
existindo?
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no país
e eu estou infeliz?

Ora eu sei muito bem que a poesia
não muda (logo) o mundo.
Mas é por isso mesmo que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!

domingo, 19 de abril de 2015

Lições da arquitetura (Ferreira Gullar -1930)

Para Oscar Niemeyer

No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor
(ele não fez de pedra
nossas casas:
faz de asa).

No coração de Argel sofrida
fez aterrissar uma tarde
uma nave estelar
e linda
como ainda há de ser a vida.

(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular).

Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com a matéria dura:
o ferro o cimento a fome
de humana arquitetura.

Nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do ovo.

Oscar nos ensina
que a beleza é leve.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Desordem (Mário Annuza)

ai, quem me dera ser milionário 
morar na avenida vieira souto 
ter mais de vinte helicópteros 
não me preocupar com nada, 
e viver apenas de renda.

ai, quem me dera ser bacharel 
ser catedrático em harvard 
falar pelo menos cinco línguas 
ser casado com a cindy crawford 
e morrer coberto de glórias.

ai, quem me dera ser ary barroso 
ser o criador da aquarela do brasil 
ficar conhecido como compositor 
mostrar as curvas de uma mulata 
e ser considerado um gênio.

ai, quem me dera ser vieira souto 
morar na avenida cinco línguas 
ter mais de vinte glórias 
não me preocupar com o compositor, 
e viver apenas de bacharel.

ai, quem me dera ser helicópteros 
ser catedrático em nada 
falar pelo menos de renda 
ser casado com a aquarela do brasil 
e morrer coberto de ary barroso.

ai, quem me dera ser avenida 
ser o criador da cindy crawford 
ficar conhecido como harvard 
mostrar as curvas de um milionário 
e ser considerado uma mulata.

sábado, 4 de abril de 2015

Espectro (Fernando Pinto do Amaral)

Quem te disser agora como cai
a tarde apenas fala
da tua própria vida      Quem agora
te disser como desce devagar
o inverno mais secreto
ao teu corpo não mente — apenas fala
do tempo que foi teu desde o princípio
ao fim      Sempre soubeste
que nada vale nada
mas queres continuar      Todos os dias
entregam ao futuro a sua sombra
e no entanto acendem ao crepúsculo
o seu mais claro enigma, esse resto
de sol em movimento
quando por um instante vês brilhar
ainda a sua luz, o seu incerto
espectro

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Império dos segundos (Rodrigo Garcia Lopes)

Se eu fosse parar pra saber
o sabor deste instante
não iria jamais perceber
do que é feito o durante,

a carne de cada segundo,
minuto de cada poente
de que é feito este mundo,
sangue, esperma, poeira,

não ia jamais me lembrar
da trama da tarde, museu
onde moram as velhas horas,
nem o duro rosto deste outro

outono, matéria, mistério,
nem a memória, esse mármore
em fluxo, rugido em estéreo
de uma incessante cachoeira.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O macaco que queria voar (Duda Machado - 1944)

Quinho era um macaco diferente.
Não gostava de comer banana
Nem de ficar imitando gente.

Mas não podia ver passarinho
Que tinha vontade de voar.
Parecia até um maluquinho,

Se deitava, rolava no chão,
Saltava entre os galhos e guinchava.
Voar que é bom, não voava não.

Desistia, ficava calado,
A mão no queixo, um jeito sério
E o ar de quem está concentrado.

Aí é que parecia gente.
Nem se coçava, cruzava os braços,
Querendo pensar logicamente.