sábado, 31 de maio de 2014

Casablanca (Ana Cristina Cesar - 1952-1983)

Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este sonho de serra de afiar facas
não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...

Estas molas a gemer no quarto ao lado
Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia
O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos
Os tamancos e os sinos me acordam depressa na
madrugada feita de binóculos de gávea
e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Chove (Ana Cristina Cesar - 1952-1983)

A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo.
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventado,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim,
Com os olhos que me seguiam,
Enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Mesmo que morra (Alice Ruiz - 1946)

mesmo que eu morra
dessa morte disforme
o esquecimento
não lamento

viver ou morrer
é o de menos
a vida inteira
pode ser
qualquer momento
ser feliz ou não
questão de talento

quanto ao resto
este poema
que não fiz
fica ao vento
mãos mais hábeis
inventem

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Ninguém me canta como você (Alice Ruiz - 1946)

ninguém me canta
como você
ninguém me encanta
como você
nem me vê
do jeito
que só você
de que adianta
ter olhos
e não saber ver
ter voz
mas não não ter o que dizer
digam o que disserem
façam o que quiserem
ninguém diz
ninguém vê
ninguém faz
como você
ninguém me canta
ninguém me encanta
como você

terça-feira, 27 de maio de 2014

Sinto que o mês presente me assassina (Mário Faustino - 1930 - 1962)

Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus ao sul das luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espiritual que me ilumina.
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blásfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, sangue e chaga.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Soneto antigo (Mário Faustino - 1930-1962)

Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.

domingo, 25 de maio de 2014

O mundo que venci deu-me um amor (Mário Faustino - 1930 - 1962)

O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em campos de vitória...

sábado, 24 de maio de 2014

Como a noite descesse (Emílio Moura - 1902-1971)

Como a noite descesse e eu me sentisse só,
só e desesperado diante dos horizontes que se fechavam,
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora!
e vi logo que só as estrelas é que me entenderiam.
Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
- É por aqui!

Onde, entretanto, quem me disesse
ao espírito cego:
- Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
- Ó doce e incorruptível Aurora...
se só as estrelas é que me entenderiam?

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Toada dos que não podem amar (Emílio Moura - 1902-1971)

Os que não podem amar
estão cantando.
A luz é tão pouca, o ar é tão raro
que ninguém sabe como ainda vivem.
Os que não podem amar
estão cantando,
estão cantando
e morrendo.
Ninguém ouve o canto que soluça
por detrás das grades.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

O vestido (Adélia Prado - 1935)

No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.

Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Dolores (Adélia Prado - 1935)

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrecido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentaram os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Estação de maio (Adélia Prado - 1935)

A salvação opera nos abismos.
Na estação indescritível,
o gênio mau da noite me forçava
com saudade e desgosto pelo mundo.
A relva estremecia
mas não era pra mim,
nem os pássaros da tarde.
Cães, crianças, ladridos,
despossuíam-me.
Então rezei: salva-me, Mãe de Deus,
antes do tentador com seus enganos.
A senhora está perdida?
Disse o menino,
é por aqui.
Voltei-me
e reconheci as pedras da manhã.

domingo, 18 de maio de 2014

Acima de qualquer suspeita (José Paulo Paes - 1926-1998)

a poesia está morta
mas juro que não fui eu
eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la

imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car
los drummond de andrade manuel bandeira murilo
mendes vladimir maiakóvski joão cabral de melo neto
paul éluard oswald de andrade guillaume apollinaire
sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos

não adiantou nada

em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou
incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada
de ferro araraquense

porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro
araraquense foi extinta e josé paulo paes parece
munca ter existido

nem eu

sábado, 17 de maio de 2014

Lápide (Ariano Suassuna - 1927)

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.

Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.

Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido

que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Aqui morava um rei (Ariano Suassuna - 1927)

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Noturno (Ariano Suassuna - 1927)

Tem para mim
Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha.
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, em mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos...

Mas não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Àguas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Tempo e eternidade (Paulo Mendes Campos - 1922-1991)

O instante é tudo para mim que ausente
Do segredo que os dias encadeia
Me abismo na canção que pastoreia
As infinitas nuvens do presente.

Pobre do tempo, fico transparente
À luz desta canção que me rodeia
Como se a carne se fizesse alheia
À nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
E a minha eternidade uma bandeira
Aberta em céu azul de solidões.

Sem margens, sem destino, sem história
O tempo que se esvai é minha glória
E o susto de minh'alma sem razões.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Josette (Paulo Mendes Campos - 1922 - 1991)

Colunas do teu corpo. O real
Das coxas longas onde se implanta o ventre
Leve. O branco do seio
Dando o leite do sonho ao animal
Da noite acostumado a sofrer sede.
Teu perfil tem a linha imaginária
Das mais felizes frases literárias.
És quem tu és, és a rosa e o rosicler.
Quando caminhas vais frisando a rua
De uma eloquência clara de escultura.
És sol agora, ontem na praia foste a lua.
És tudo o que quiser o meu poema,
Mas não és o orvalho que roreja nem és pura.
Possuis a elegância de uma ave
De pés espapaçados (as mais belas)
E tens do mar o frescor suave e a voz tão grave.
Como a vaga empinada que se espraia
Abres equestres movimentos no vento. Teus cabelos
São as últimas lembranças lúcidas que me restam.
Calmaria de ilhas verdes, teus olhos,
Ah,
São teus olhos.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O mergulhador (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)

Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.

És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.

Depois teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.

Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno...
Mas não sei... o ímpeto deste é doído e espanta
O outro me dava vida, este me mete medo.

Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.

E ponho-me a cismar… - mulher, como te expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!

Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço.

E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.

Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.

Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque exato e frêmito.

Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.

Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
E me afogar de amor e chorar e chorar.

Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.

Por isso - isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!

domingo, 11 de maio de 2014

Volta em aberto (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem volta?

sábado, 10 de maio de 2014

A relativa eternidade (Ferreira Gullar - 1930)

Cruzo a rua e vejo
sobre a montanha
que se ergue no horizonte
para além da Lagoa
nuvens matinais
iluminadas
contra um céu muito azul

como na primeira manhã do mundo

(ainda que
em todos os dias do ano
quando faz sol
essa festa matinal se tenha repetido
por séculos)

mas pouco importa:
é hoje manhã pela primeira vez

ainda que
antes de terem aqui chegado os portugueses
já ali estivessem a montanha
o céu azul
e as nuvens a se esgarçarem

quer houvesse
ou não
(como agora)
alguém para vê-los

e então me digo:
se o mundo dura tanto
e eu tão pouco
importa pouco
se ele não for eterno

sexta-feira, 9 de maio de 2014

De amor (Augusto Frederico Schmidt - 1906-1965)

Chegaria tímido e olharia tua casa,
A tua casa iluminada.
Teria vindo por caminhos longos
Atravessando noites e mais noites.

Olharia de longe o teu jardim.
Um ar fresco de quietação e repouso
Acalmaria a minha febre
E amansaria o meu coração aflito.

Ninguém saberia do meu amor:
Seria manso como as lágrimas,
Como as lágrimas de despedida.

Meu amor seria leve como as sombras.

Tanto receio de te amar, tanto receio...
A sombra do meu amor
Poderia agitar teu sono, pertubar o teu sossego...

Eu nem quero te amar, porque te amo demais.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Boneca de pano (Jorge de Lima - 1893-1953)

Boneca de pano dos olhos de conta,
vestido de chita,
cabelo de fita,
cheinha de lã.
De dia, de noite, os olhos abertos,
olhando os bonecos que sabem marchar,
calungas de mola que sabem pular.
Boneca de pano que cai:
não se quebra, que custa um tostão.
Boneca de pano das meninas infelizes que
são guias de aleijados, que apanham pontas
de cigarro, que mendigam nas esquinas, coitadas!
Boneca de pano de rosto parado como essas meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã. -
Os olhos de conta caíram. Ceguinha
rolou na sarjeta. O homem do lixo a levou,
coberta de lama, nuinha,
como quis Nosso Senhor.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Distorço-me na massa de uma argila sem cor (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Distorço-me na massa
De uma argila sem cor.
Mil vezes me refaço
E me recrio em dor.

E pouso lentamente
Sob a testa fria
Os girassóis da mente.

Antes as órbitas vazias!
Será eterno o júbilo de ter
Espátulas e nume
Nas mãos e no ser?


Bastasse o confessar-me a assim punir-me
De toda intemperança dos humanos.
Bastasse o que não sou e o refluir-me
Longínqua na maré desordenada.

domingo, 4 de maio de 2014

Um todo me angustia (Hilda Hilst - 1930-2004)

Um todo me angustia.

Se era de amor a ilha
E o mar à minha volta,
Não será menos certo
Que a sextilha de agora
Das formas que pensei
É a mais remota.
Temos jeitos de ser.
(Às vezes obscuros
Como convém ao ser)
Se em nada me detém
Água de muitos rios
Passando por canais
De grande amor e mágoa,
Em tudo me detenho
E sei que sou raiz.

E se às vezes abrigo
Num caminhar rasteiro
As solidões alheias,
Às vezes vertical
Encontro aquele mundo
Que é também o da terra
Feérico e abismal.

Tão grande ambivalência
Concedida aos homens
Terá sido dos deuses
Complacência?

sábado, 3 de maio de 2014

Morremos sempre (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Morremos sempre.
O que nos mata
São as coisas nascendo:
Hastes e raízes inventadas
E sem querer e por tudo se estendendo
Rondando a minha
Subindo vossa escada.
Presenças penetrando
Na sacada.

Invasões urdindo
Tramas lentas.

Insetos invisíveis
Nas muradas.

Eis o meu quarto agora:
Cinza e lava.
Eis-me nos quatro cantos
(Morte inglória)
Morrendo pelos olhos da memória.
Aproximam-se.
E libertos da presença da carne
Se entreolham.

O teu nascer constante
Traz castigo.
Os teus ressuscitares
Serão prantos.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Toada pra se ir a Brasília (Cassiano Ricardo - 1895 - 1974)

Excertos

Vou-me embora pra Brasília,
sol nascido em chão agreste.
Como quem vai para uma ilha.
A esperança mora a oeste.

Vou-me embora pra Brasília,
por determinação celeste.
Pouco me importa a distância,
lá encontrarei minha infância.

(Não foi lá que meu avô,
pra encantar crianças grandes,
num misto de magia e mágoa,
um dia pôs fogo na água?)

Vou-me embora pra Brasília.
Porque neste azul marítimo
a paisagem me faz mal.
Por excesso de azul e sal.

Vou-me embora pra Brasília
que já nos meus olhos brilha,
porque é a única cidade
onde não haverá saudade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

À Brasília de Oscar Niemeyer (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)

Eis casas-grandes de engenho,
horizontais, escancaradas,
onde se existe em extensão
e a alma todoaberta se espraia.

Não se sabe é se o arquiteto
as quis símbolos ou ginástica:
símbolos do que chamou Vinícius
"imensos limites da pátria"

Ou ginástica, para ensinar
quem for viver naquelas salas
um deixar-se, um deixar viver
de alma arejada, não fanática.