Há o escritor que acredita
que, bem, só ele é que leu
e repete a toda hora:
"O grifo é meu."
Não resiste à tentação
de tornar um pouco seu
o pensamento dos outros:
"O grifo é meu".
Achando-se bem mais profundo
do que o autor e do que eu,
ele diz, sempre que pode:
"O grifo é meu".
Seguro da descoberta
qual um novo Galileu
não contém o seu eureka:
"O grifo é meu".
quarta-feira, 31 de julho de 2013
terça-feira, 30 de julho de 2013
Poeminha incomparável (Millôr Fernandes - 1923 - 2012)
Ele é rico
Tem um dinheiro infinito
Tem conforto e paparico
Mora bonito
Não tem pressa
Nem é aflito
Vive à beça
Come do bom e do melhor
Faz tudo que pensa e quer
Conhece o mundo de cor
E pode escolher mulher.
Eu sou pobre,
Triste e feio,
Empate na vida
Coluna do meio
Perdi a corrida
Vivo com receio
Pois ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama
De Baudelaire.
Mas se alguém acha
Que estou a fim
De trocar com ele:
Estou sim!
Tem um dinheiro infinito
Tem conforto e paparico
Mora bonito
Não tem pressa
Nem é aflito
Vive à beça
Come do bom e do melhor
Faz tudo que pensa e quer
Conhece o mundo de cor
E pode escolher mulher.
Eu sou pobre,
Triste e feio,
Empate na vida
Coluna do meio
Perdi a corrida
Vivo com receio
Pois ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama
De Baudelaire.
Mas se alguém acha
Que estou a fim
De trocar com ele:
Estou sim!
segunda-feira, 29 de julho de 2013
Meio assim (Chacal - 1951)
tava atrasado.
o metrô ia sair.
corri.
a porta se fechou.
metade de mim foi.
outra ficou.
uma que já era,
ficou mais ensimesmada.
olhando o relógio
falando no celular.
a outra, tagarela,
levantava leviana
a saia das moças,
uivando intempestiva.
se alguém
encontrar uma delas,
avise a outra.
eu vou ver
se estou na esquina.
o metrô ia sair.
corri.
a porta se fechou.
metade de mim foi.
outra ficou.
uma que já era,
ficou mais ensimesmada.
olhando o relógio
falando no celular.
a outra, tagarela,
levantava leviana
a saia das moças,
uivando intempestiva.
se alguém
encontrar uma delas,
avise a outra.
eu vou ver
se estou na esquina.
domingo, 28 de julho de 2013
O poema digital (Chacal - 1951)
primeiro o poema nasce
como esse está nascendo agora.
não.
primeiro o poeta nasce.
e com ele a linguagem.
então, o poema nasce.
aqui nessa tela agora.
o poeta o articula
sai um barulho
ele harmoniza
abre uma janela:
entra um colibri
aí o músico, ai,
refaz o barulho
enfia uns bemóis
então vem a musa
num clic faz um clip.
onde tudo se funde
o ritmo no barulho
a cor na imagem
primeiro nasce o poema.
como esse está nascendo agora.
não.
primeiro o poeta nasce.
e com ele a linguagem.
então, o poema nasce.
aqui nessa tela agora.
o poeta o articula
sai um barulho
ele harmoniza
abre uma janela:
entra um colibri
aí o músico, ai,
refaz o barulho
enfia uns bemóis
então vem a musa
num clic faz um clip.
onde tudo se funde
o ritmo no barulho
a cor na imagem
primeiro nasce o poema.
sábado, 27 de julho de 2013
Hoje (Solano Trindade - 1908 - 1974)
Hoje estou exuberante
estou poroso de poesia
como o liberto
recém saído da cadeia
eu canto
valorizo o sol
valorizo a chuva
valorizo o homem que passa
há uma graça em tudo
em tudo há uma graça
no colorido dos vestidos das mulheres
no andar das crianças
nas frutas das barracas
em tudo há uma graça
no jardim da praça
nas flores do jardim
Hoje estou exuberante
estou poroso de poesia...
estou poroso de poesia
como o liberto
recém saído da cadeia
eu canto
valorizo o sol
valorizo a chuva
valorizo o homem que passa
há uma graça em tudo
em tudo há uma graça
no colorido dos vestidos das mulheres
no andar das crianças
nas frutas das barracas
em tudo há uma graça
no jardim da praça
nas flores do jardim
Hoje estou exuberante
estou poroso de poesia...
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Para que vim (Solano Trindade - 1908 - 1974)
Eu vim para cuidar de jardins
plantar coloridas flores
regá-las ao sair do sol
fazer lindos buquês
e ofertá-los
aos deuses
e às mulheres
Mas há ameaça de guerra
e os jardins não sobreviverão
ao fogo
então não cuidarei de jardins
não levarei flores aos deuses
nem às mulheres
pregarei a paz.
plantar coloridas flores
regá-las ao sair do sol
fazer lindos buquês
e ofertá-los
aos deuses
e às mulheres
Mas há ameaça de guerra
e os jardins não sobreviverão
ao fogo
então não cuidarei de jardins
não levarei flores aos deuses
nem às mulheres
pregarei a paz.
quinta-feira, 25 de julho de 2013
A primeira vez (Saulo Ramos - 1929)
Afinal deu-se comigo:
nasceu a orquídea no velho tronco,
floriu a hera no muro antigo.
Nem o pavor de ser ridículo
impede-me de amar,
pois é a primeira vez que amo
porque sinto o mesmo desassossegado susto
da primeira vez que amei.
Amar pela primeira vez agora
é igual a qualquer primeira vez antiga,
mas esta primeira vez, no fim da vida,
é a primeira vez mais querida,
parece mais do que as outras
e, pela primeira vez,
tenho a certeza, que me faltou antes,
a de ser esta a última primeira vez.
nasceu a orquídea no velho tronco,
floriu a hera no muro antigo.
Nem o pavor de ser ridículo
impede-me de amar,
pois é a primeira vez que amo
porque sinto o mesmo desassossegado susto
da primeira vez que amei.
Amar pela primeira vez agora
é igual a qualquer primeira vez antiga,
mas esta primeira vez, no fim da vida,
é a primeira vez mais querida,
parece mais do que as outras
e, pela primeira vez,
tenho a certeza, que me faltou antes,
a de ser esta a última primeira vez.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
Quanto possas (Konstantinos Kaváfis - 1863 - 1933)
E se não podes fazer tua vida como a queres,
esforça-te pelo menos nisto,
quanto possas; não a degrades
na convivência demasiada com as pessoas,
nos demasiados movimentos e colóquios.
Não a degrades levando-a,
trazendo-a freqüentemente e expondo-a
à estupidez cotidiana
das relações e das companhias,
até que se torne pesada como uma estranha.
esforça-te pelo menos nisto,
quanto possas; não a degrades
na convivência demasiada com as pessoas,
nos demasiados movimentos e colóquios.
Não a degrades levando-a,
trazendo-a freqüentemente e expondo-a
à estupidez cotidiana
das relações e das companhias,
até que se torne pesada como uma estranha.
terça-feira, 23 de julho de 2013
Soneto de velhice e almas (Ruy Espinheira Filho - 1942)
Também no corpo, sim. Mas sobretudo
é na alma que me sinto envelhecer.
Ouço-a cantar canções de adormecer
e me parece que, por fim, já tudo
está cumprido. Em breve serei mudo,
e surdo, e cego... Todo amanhecer
se foi. Não há futuros. Vai descer
logo a noite absoluta sobre tudo.
Mas, felizmente, a alma que me fala
não é a única do meu enredo.
Visto-me de outra, e a anterior se cala.
E, de alma nova, sou diverso, ledo,
ouvindo a voz serena que me fala
que para adormecer ainda é cedo.
é na alma que me sinto envelhecer.
Ouço-a cantar canções de adormecer
e me parece que, por fim, já tudo
está cumprido. Em breve serei mudo,
e surdo, e cego... Todo amanhecer
se foi. Não há futuros. Vai descer
logo a noite absoluta sobre tudo.
Mas, felizmente, a alma que me fala
não é a única do meu enredo.
Visto-me de outra, e a anterior se cala.
E, de alma nova, sou diverso, ledo,
ouvindo a voz serena que me fala
que para adormecer ainda é cedo.
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Canção do inverno (Ruy Espinheira Filho - 1942)
Faz tempo que cai
a chuva cinzenta
no longo vazio
da rua onde, lenta,
minha alma vai
como nevoenta
brisa em que se embala
a chuva cinzenta.
E faz-se a canção
do inverno assim:
com as cinzas da chuva
e o frio de mim.
a chuva cinzenta
no longo vazio
da rua onde, lenta,
minha alma vai
como nevoenta
brisa em que se embala
a chuva cinzenta.
E faz-se a canção
do inverno assim:
com as cinzas da chuva
e o frio de mim.
domingo, 21 de julho de 2013
Mansidão (Manoel de Barros - 1916)
As casas dormiam na hora surda do meio-dia.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida da rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida da rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.
sábado, 20 de julho de 2013
Experimentando a manhã nos galos (Manoel de Barros - 1916)
... poesias, a poesia é
- é como a boca
dos ventos
na harpa
nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha noite
raiz entrando
em orvalhos...
os silêncios sem poro
floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca
cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém
o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros
- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...
- é como a boca
dos ventos
na harpa
nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha noite
raiz entrando
em orvalhos...
os silêncios sem poro
floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca
cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém
o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros
- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...
sexta-feira, 19 de julho de 2013
Advento (Orides Fontela - 1940 - 1998)
Deste templo múltiplo
o que nascerá?
Da onda
rítmica
amplitude
da intensidade
amorfa
ritmicamente esfacelada
do múltiplo que um
mais que tempo virá
e que luz haverá além
do tempo?
o que nascerá?
Da onda
rítmica
amplitude
da intensidade
amorfa
ritmicamente esfacelada
do múltiplo que um
mais que tempo virá
e que luz haverá além
do tempo?
Forma (Orides Fontela - 1940 - 1998)
Forma
como envolver-te
se dispões os seres
em decomposição plena?
Forma
como abraçar-te
se abraças o ser
em estrutura e plenitude?
Forma
densamente forma
como revelar-te
se me revelas?
como envolver-te
se dispões os seres
em decomposição plena?
Forma
como abraçar-te
se abraças o ser
em estrutura e plenitude?
Forma
densamente forma
como revelar-te
se me revelas?
quinta-feira, 18 de julho de 2013
O doente do século (Murilo Mendes - 1901 - 1975)
Meu coração vai sangrando,
Se desfazendo aos pedaços,
Mas assim mesmo inda tem
Uns pedacinhos de pedra
Que resistem duramente:
A pedra resiste ao vento
Da aridez, que vai passando,
Vem rolando, traiçoeiro,
Dos desertos da cabeça.
O vento insinua então:
"Siga firme para a frente,
Deixe a luz à sua direita,
Tome o rumo de Moscou,
Se inebrie com este coro
Que sai vibrante das máquinas,
Fuzile a palavra amém."
Mas quem sou eu neste mundo
Pra anular a tradição?
Venha, filhas da esperança,
Me levem na padiola
Para o chalé da ternura,
Acendam-me a luz do amor,
Desenrolem seus cabelos
Sobre o meu corpo, senão
Não terei culpa nenhuma
Se me matar amanhã.
Se desfazendo aos pedaços,
Mas assim mesmo inda tem
Uns pedacinhos de pedra
Que resistem duramente:
A pedra resiste ao vento
Da aridez, que vai passando,
Vem rolando, traiçoeiro,
Dos desertos da cabeça.
O vento insinua então:
"Siga firme para a frente,
Deixe a luz à sua direita,
Tome o rumo de Moscou,
Se inebrie com este coro
Que sai vibrante das máquinas,
Fuzile a palavra amém."
Mas quem sou eu neste mundo
Pra anular a tradição?
Venha, filhas da esperança,
Me levem na padiola
Para o chalé da ternura,
Acendam-me a luz do amor,
Desenrolem seus cabelos
Sobre o meu corpo, senão
Não terei culpa nenhuma
Se me matar amanhã.
quarta-feira, 17 de julho de 2013
Anonimato (Murilo Mendes - 1901 - 1975)
Uma mulher na varanda
Se debruça sobre o mar
Contempla as gaivotas gêmeas
Espera uma carta de amor
Brilha o cemitério aéreo
As nuvens jogam boxe
Passam meninas cantando
Não sabem que sou poeta
E o amor que existe em mim.
Se debruça sobre o mar
Contempla as gaivotas gêmeas
Espera uma carta de amor
Brilha o cemitério aéreo
As nuvens jogam boxe
Passam meninas cantando
Não sabem que sou poeta
E o amor que existe em mim.
terça-feira, 16 de julho de 2013
ode à ode (José Carlos Peliano - 1948)
ode, ode, onde você ode se esconde
no cume do monte ou à beira mar?
esquece, não importa como e onde
onde, como e portanto eu vou lhe achar
ode ao luar, à noite, ao menestrel
ode a Fernando Mendes Vianna ou
Waldimir Diniz, amigos no céu
onde a poesia um dia ficou
ode a mim que quero e mereço a ode
pelo que fiz, não fiz e vou fazer
ode àquele que pode e ao que não pode
simplesmente ode ao fato de viver
ode à mulher bonita e à mulher feia
e a quem a elas quis classificar
ode ao fogo que de pronto incendeia
ode às chamas levadas pelo ar
uma ode também por fim a você
razão de ser de a ode perdurar
existe a ode só para quem lê
ao sair do papel até o olhar
ah! ia eu aqui já me esquecendo
de você menestrel, cuja canção
leva a ode aos ouvidos num adendo
à vida em ode em todo coração
no cume do monte ou à beira mar?
esquece, não importa como e onde
onde, como e portanto eu vou lhe achar
ode ao luar, à noite, ao menestrel
ode a Fernando Mendes Vianna ou
Waldimir Diniz, amigos no céu
onde a poesia um dia ficou
ode a mim que quero e mereço a ode
pelo que fiz, não fiz e vou fazer
ode àquele que pode e ao que não pode
simplesmente ode ao fato de viver
ode à mulher bonita e à mulher feia
e a quem a elas quis classificar
ode ao fogo que de pronto incendeia
ode às chamas levadas pelo ar
uma ode também por fim a você
razão de ser de a ode perdurar
existe a ode só para quem lê
ao sair do papel até o olhar
ah! ia eu aqui já me esquecendo
de você menestrel, cuja canção
leva a ode aos ouvidos num adendo
à vida em ode em todo coração
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Canção de barco e de olvido (Mario Quintana - 1906 - 1994)
Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
domingo, 14 de julho de 2013
Canção de domingo (Mario Quintana - 1906 - 1994)
Que dança que não se dança?
Que trança não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi um grito de criança.
Que canto que não se canta?
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo Aprendiz.
O céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!
Que trança não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi um grito de criança.
Que canto que não se canta?
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo Aprendiz.
O céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!
sábado, 13 de julho de 2013
Quase uma sonata (Ivan Junqueira - 1934)
É música o rigor com que te moves
à fluida superfície do mistério,
os pés quase suspensos, a área
partitura do corpo, seus acordes.
Espaço e tempo são teu solo. E colhem,
não tanto a luz que entornas, mas o pólen
com que ela cinge e arroja as coisas mortas
além da espessa morte que as enrola.
É música o silêncio que te cobre
quando lampeja à noite tua nudez,
em franjas derramada sobre o leito
das águas, onde as algas te incendeiam
porque semelhas, mais que o mar profundo,
o intemporal princípio e fim de tudo.
à fluida superfície do mistério,
os pés quase suspensos, a área
partitura do corpo, seus acordes.
Espaço e tempo são teu solo. E colhem,
não tanto a luz que entornas, mas o pólen
com que ela cinge e arroja as coisas mortas
além da espessa morte que as enrola.
É música o silêncio que te cobre
quando lampeja à noite tua nudez,
em franjas derramada sobre o leito
das águas, onde as algas te incendeiam
porque semelhas, mais que o mar profundo,
o intemporal princípio e fim de tudo.
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Canção estatuária (Ivan Junqueira - 1934)
Severa e pura
pedra escultura
o tempo dura
em tuas curvas
Sulco após sulco
ângulo cunha
toda te aguças
seca nervura
Te acuam musgo
farpa de chuva
branco de bruma
penumbra inútil
Mas nada suja
nem subjuga
na pedra abrupta
tu mesma nua
E que tumulto
em tua postura
tão tumba nunca
mas dentro júbilo
Mais dentro tu
tua gula surda
do que é transcurso
e se transmuda
Assim perduras
infanta fúnebre
pois é defunta
que vens a lume
pedra escultura
o tempo dura
em tuas curvas
Sulco após sulco
ângulo cunha
toda te aguças
seca nervura
Te acuam musgo
farpa de chuva
branco de bruma
penumbra inútil
Mas nada suja
nem subjuga
na pedra abrupta
tu mesma nua
E que tumulto
em tua postura
tão tumba nunca
mas dentro júbilo
Mais dentro tu
tua gula surda
do que é transcurso
e se transmuda
Assim perduras
infanta fúnebre
pois é defunta
que vens a lume
quinta-feira, 11 de julho de 2013
Poema para Dora Berndt (Humbero Haydt de Souza Mello)
Não diremos que dormes
porque teu sono é mais profundo que o necessário,
e tuas vestes se desfarão como folhas
ao longo das noites solitárias.
Mas diremos que vives,
que de algum modo vives entre os que te amaram
e não te conheceram, apesar do amor,
e não te tocaram, apesar dos tatos,
e não te viram, apesar dos olhos.
Mas diremos que revives
dentro do enigma da tua ausência
e, principalmente, dentro do mistério que sem querer compunhas
com tuas flores, e tuas pedras, e teus cristais
lavrados com a finura da tua existência.
Mas diremos que renasces,
não apenas em cada pássaro, em cada violeta, ou mesmo em cada neto,
mas principalmente em cada moça que se dá ao amor
como quem canta um hino,
e é capaz de seguir um beijo como a um som de violino:
em cada velho que, chocado com o existido,
se faz surdo para ouvir no dentro
o resto do amor que o resto amou sem ser ouvido.
porque teu sono é mais profundo que o necessário,
e tuas vestes se desfarão como folhas
ao longo das noites solitárias.
Mas diremos que vives,
que de algum modo vives entre os que te amaram
e não te conheceram, apesar do amor,
e não te tocaram, apesar dos tatos,
e não te viram, apesar dos olhos.
Mas diremos que revives
dentro do enigma da tua ausência
e, principalmente, dentro do mistério que sem querer compunhas
com tuas flores, e tuas pedras, e teus cristais
lavrados com a finura da tua existência.
Mas diremos que renasces,
não apenas em cada pássaro, em cada violeta, ou mesmo em cada neto,
mas principalmente em cada moça que se dá ao amor
como quem canta um hino,
e é capaz de seguir um beijo como a um som de violino:
em cada velho que, chocado com o existido,
se faz surdo para ouvir no dentro
o resto do amor que o resto amou sem ser ouvido.
terça-feira, 9 de julho de 2013
jardim das delícias (Geraldo Carneiro - 1952)
nesta madrugada de 7 de outubro
não farei previsões de estranhos
no parque
enquanto caminho nas mesmas aleias
que guardam traços do seu gesto claro
e a alameda das acácias exala
odores de memória e medo
"I sit and watch the children playin"
você descobre o alarido das crianças
e parece se assustar a cada grito
reverberado nas paredes de granito das
estátuas e você se encanta quando recai
o silêncio sobre as paredes ainda marcadas
de luz e estrelas
não farei previsões de estranhos
no parque
enquanto caminho nas mesmas aleias
que guardam traços do seu gesto claro
e a alameda das acácias exala
odores de memória e medo
"I sit and watch the children playin"
você descobre o alarido das crianças
e parece se assustar a cada grito
reverberado nas paredes de granito das
estátuas e você se encanta quando recai
o silêncio sobre as paredes ainda marcadas
de luz e estrelas
segunda-feira, 8 de julho de 2013
fogos de artifício (Geraldo Carneiro - 1952)
a primeira vez que vi Julia
minha espada tremeu à porta do seu castelo
e eu sonhei com gritos e serenas tempestades
e as torres despencaram em ruínas
e as noites fabricaram fogos de artifício
e os cegos decifraram luas
e a segunda vez que vi Julia
não havia mais rumor de animais no parque
e as fontes despejaram lodo e raios
e os navios naufragaram no espelho das águas
e os mares abortaram peixes
a terceira vez que vi Julia
o seu carro parou na frente do edifício
e os mendigos se abriram sob as marquises
e os insetos silenciaram a chuva mais prosaica
do mundo
minha espada tremeu à porta do seu castelo
e eu sonhei com gritos e serenas tempestades
e as torres despencaram em ruínas
e as noites fabricaram fogos de artifício
e os cegos decifraram luas
e a segunda vez que vi Julia
não havia mais rumor de animais no parque
e as fontes despejaram lodo e raios
e os navios naufragaram no espelho das águas
e os mares abortaram peixes
a terceira vez que vi Julia
o seu carro parou na frente do edifício
e os mendigos se abriram sob as marquises
e os insetos silenciaram a chuva mais prosaica
do mundo
domingo, 7 de julho de 2013
Tenho andado fraco (Paulo Leminski - 1944 - 1989)
tenho andado fraco
levanto a mão
é uma mão de macaco
tenho andado só
lembrando que sou pó
tenho andado tanto
diabo querendo ser santo
tenho andado cheio
o copo pelo meio
tenho andado sem pai
yo no creo en caminos
pero que los hay
hay
levanto a mão
é uma mão de macaco
tenho andado só
lembrando que sou pó
tenho andado tanto
diabo querendo ser santo
tenho andado cheio
o copo pelo meio
tenho andado sem pai
yo no creo en caminos
pero que los hay
hay
sábado, 6 de julho de 2013
Um deus também é o vento (Paulo Leminski - 1944 - 1989)
um deus também é o vento
só se vê nos seus efeitos
árvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zarpar
me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar
a este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro
nele cresça
até virar vendaval
só se vê nos seus efeitos
árvores em pânico
bandeiras
água trêmula
navios a zarpar
me ensina
a sofrer sem ser visto
a gozar em silêncio
o meu próprio passar
nunca duas vezes
no mesmo lugar
a este deus
que levanta a poeira dos caminhos
os levando a voar
consagro este suspiro
nele cresça
até virar vendaval
sexta-feira, 5 de julho de 2013
Revoada (Salgado Maranhão - 1953)
os pássaros quando voam
não deixam sequer rastro ao vento
porque não voam com as asas
apenas com o sentimento.
os pássaros em revoada
não buscam tão simplesmente
o ninho de algum lugar
porque já estão pousados
no próprio ninho do ar.
quando pássaros em pleno voo
não há nem asas nem vento
tudo fica como o tempo
apenas paz e firmamento.
não deixam sequer rastro ao vento
porque não voam com as asas
apenas com o sentimento.
os pássaros em revoada
não buscam tão simplesmente
o ninho de algum lugar
porque já estão pousados
no próprio ninho do ar.
quando pássaros em pleno voo
não há nem asas nem vento
tudo fica como o tempo
apenas paz e firmamento.
quinta-feira, 4 de julho de 2013
Estado de ânimo (Salgado Maranhão - 1953)
meu coração é uma grande cidade
com seus engarrafamentos de concreto.
não há portas de emergência
para o que poderia ter sido.
falharam todos os despachos
falharam todos os medicamentos.
como um soldado no front
morro de assombração
diante do perigo.
e estou grávido de palavras.
com seus engarrafamentos de concreto.
não há portas de emergência
para o que poderia ter sido.
falharam todos os despachos
falharam todos os medicamentos.
como um soldado no front
morro de assombração
diante do perigo.
e estou grávido de palavras.
quarta-feira, 3 de julho de 2013
Está o lascivo e doce passarinho (Camões - 1524 - 1580)
Está o lascivo e doce passarinho
com o biquinho as penas ordenando;
o verso, sem medida, alegre e brando,
espedindo no rústico raminho;
o cruel caçador (que do caminho
se vem calado e manso desviando)
na pronta vista a seta endireitando,
lhe dá no Estígio lago eterno ninho.
Destarte o coração, que livre andava,
(posto que já de longe destinado)
onde menos temia, foi ferido.
Porque o Frecheiro cego me esperava,
para que me tomasse descuidado,
em vossos claros olhos escondido.
com o biquinho as penas ordenando;
o verso, sem medida, alegre e brando,
espedindo no rústico raminho;
o cruel caçador (que do caminho
se vem calado e manso desviando)
na pronta vista a seta endireitando,
lhe dá no Estígio lago eterno ninho.
Destarte o coração, que livre andava,
(posto que já de longe destinado)
onde menos temia, foi ferido.
Porque o Frecheiro cego me esperava,
para que me tomasse descuidado,
em vossos claros olhos escondido.
terça-feira, 2 de julho de 2013
No mundo quis um tempo que se achasse (Camões - 1524 - 1580)
No mundo quis um tempo que se achasse
o bem que por acerto ou sorte vinha;
e, por experimentar que dita tinha,
quis que a Fortuna em mim se experimentasse.
Mas por que meu destino me mostrasse
que nem ter esperanças me convinha,
nunca nesta tão longa vida minha
cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra e estado,
por ver se se mudava a sorte dura;
a vida pus nas mãos de um leve lenho.
Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)
já sei que deste meu buscar ventura,
achado tenho já, que não a tenho.
o bem que por acerto ou sorte vinha;
e, por experimentar que dita tinha,
quis que a Fortuna em mim se experimentasse.
Mas por que meu destino me mostrasse
que nem ter esperanças me convinha,
nunca nesta tão longa vida minha
cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra e estado,
por ver se se mudava a sorte dura;
a vida pus nas mãos de um leve lenho.
Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)
já sei que deste meu buscar ventura,
achado tenho já, que não a tenho.
segunda-feira, 1 de julho de 2013
O ouro do mais fundo está em ti (Hilda Hilst - 1930 - 2004)
O ouro do mais fundo está em ti.
Em mim, as coisas breves tomam corpo
E uma saga de bronze no meu ombro
A cada dia se transforma em chaga.
Um sol que se contrai sobre o meu rosto.
Aves de que não sei a sombra, vi-as
Na manhã quando o amor era chama
Mas num sopro perdi-as
E é grande agonia o que era gozo.
Guia-me em complacência. Que o instante
Não se afaste de mim, antes padeça
Desse meu existir e eu não me perca.
Em mim, as coisas breves tomam corpo
E uma saga de bronze no meu ombro
A cada dia se transforma em chaga.
Um sol que se contrai sobre o meu rosto.
Aves de que não sei a sombra, vi-as
Na manhã quando o amor era chama
Mas num sopro perdi-as
E é grande agonia o que era gozo.
Guia-me em complacência. Que o instante
Não se afaste de mim, antes padeça
Desse meu existir e eu não me perca.
Assinar:
Postagens (Atom)