sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Ainda vejo (Maíra Ramos)

Fechando os olhos agora, ainda vejo aquela cena que presenciei no Aeroporto Internacional Marechal Cunha Machado, na cidade de São Luís, no Maranhão. Como todos aeroportos, aquele também é um lugar de encontros e despedidas, de abraços e sonhos, de lágrimas e sorrisos. Não seria diferente dos demais aeroportos, naquela tarde calorenta e abafada de outubro. 
Poucas pessoas aguardavam a chegada das bagagens na pequena esteira rolante. Notei um senhor, com uns oitenta anos, vestido com sua calça de tergal esgarçada pelo uso, sandálias havaianas gastas e uma blusa xadrez de manga curta. Cego, era auxiliado por um funcionário da companhia aérea. O senhor, contido em seus gestos, descreveu para o atendente a bagagem que rolaria na esteira. No momento certo, o funcionário da empresa entregou a mala ao dono, que já estava pronto para o efetivo desembarque em terras maranhenses.
Rumamos juntos para a grande porta de metal e vidro que separava aquele ambiente em que estávamos do saguão do aeroporto. Saímos juntos, mas separados. Mal a porta se abriu, apareceram umas dez crianças, de todas as idades, gritando ao mesmo tempo: “Vô”, “Meu avô”, “Vozinho querido”, “Quanto tempo!”, “Tava com saudade...”. E as crianças, de todas as idades, pulavam no pescoço do avô, davam beijos, gargalhavam e o abraçavam como se não o vissem há décadas, o que era impossível dada a idade de todas elas.
O avô retribuiu aos gestos de carinho, dando um beijo afetuoso e demorado em cada um dos netos e deixando-se, após, guiar por eles aeroporto afora. Naquele curto instante, pude ver o sorriso de alegria e a emoção estampados no rosto do avô. Ele, contudo, não pôde observar as carinhas de felicidade das crianças quando o viram caminhando em direção à porta. Também não notou que todas elas estavam vestidas com suas melhores roupas para o encontro com o querido avô. Eu vi e posso dizer que gostaria, um dia, de ser querida assim, com tal intensidade e bem querer.
Nunca mais voltei ao Maranhão, mas carrego comigo essa imagem que o tempo não destrói e dela sempre me recordo carinhosamente, com uma lágrima e um sorriso.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Só a morte (Medeiros e Albuquerque - 1867-1934)

"Se me desdenhas, sinto que faleço,
de nada mais pode servir-me a vida;
de ti e só de ti me vem, querida,
todo o alento vital de que careço.

Só a morte é possível, se perdida
eu vir tua afeição. Nenhum apreço
darei a tudo mais, se o que mereço
é teu desprezo, em paga à minha lida."

Ela não respondeu... Por fim, notando
que contra a sorte é inútil que se teime,
resolvi não morrer. E tão tranquilos

foram os meus dias, que eu me rio quando
penso no que ontem vi: ontem pesei-me
e achei, num mês, que eu engordei três quilos!

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Olhos tristes (Luís Edmundo - 1878-1961)


Olhos tristes, vós sois como dois sóis num poente,
cansados de luzir, cansados de girar,
olhos de quem andou na vida alegremente
para depois sofrer, para depois chorar.

Andam neles agora a vagar lentamente,
como as velas das naus sobre as águas do mar,
todas as ilusões do vosso sonho ardente.
Olhos tristes, vós sois dois monges a rezar.

Ouço ao vos ver assim, tão cheios de humildade,
marinheiros cantando a canção da saudade
num coro de tristeza e de infinitos ais.

Olhos tristes, eu sei vossa história sombria
e sei quanto chorais cheios de nostalgia
o sonho que passou e que não torna mais!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Um homem ri (Ferreira Gullar - 1930)

Ele ria da cintura para cima. Abaixo
da cintura, atrás, sua mão
furtiva
inspecionava na roupa

Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,
expelia um clarão, um sumo
servil
feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola
na doçura do mel
Atrás dessa auréola, saindo
dela feito um galho, descia o braço
como a mão e os dedos
e à altura das nádegas trabalhavam
no brim azul das calças
             (como um animal no campo na primavera
             visto de longe, mas
             visto de perto, o focinho, sinistro,
             de calor e osso, come o capim do chão)
O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge
Mas a mão buscava o cós da cueca
talvez desabotoada
um calombo que coçava
uma pulga sob a roupa
qualquer coisa que fazia a vida pior

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

através da primavera (Severino Antônio - 1951)

na tarde através da primavera
ainda respiramos como teus filhos.

camadas de azul e de terra
cobrem teu corpo, tuas histórias.

cessada está a dor do ventre,
mas falta o ar para o teu riso.

os dias já não têm teus olhos.
as noites estão sem nome.

aos poucos retornamos aos filhos
e aos passos por cima do solo.

tua matéria, outra vez,
engravida-se de estrelas.

domingo, 25 de setembro de 2011

Quando vejo que meu destino ordena (Camões - 1524-1580)

Quando vejo que meu destino ordena
que, por me experimentar, de vós me aparte,
deixando de meu bem tão grande parte,
que a mesma culpa fica grave pena,
 

o duro desfavor, que me condena,
quando pela memória se reparte,
endurece os sentidos de tal arte
que a dor da ausência fica mais pequena.

Mas como pode ser que na mudança
daquilo que mais quero, este tão fora
de me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança,
porque mais sentirei partir, Senhora,
sem sentir muito a pena da partida.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O baú (Mario Quintana - 1906-1994)


Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,

uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino

te traz de súbito uma idéia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Anúncio (Elisa Lucinda - 1958)

Quem será que há de me acariciar
os cabelos
e cuidar de mim
pagar as minhas contas
enquanto escrevo?
Quem encerará a casa
enquanto eu publico.
Quem lavará a roupa
enquanto eu medito
e faço exercícios de voz?
Quem dentre vós quer trabalhar pra mim
que eu pago!
Quem tarefará a vida
enquanto eu exerço o ofício de ser poeta
e cozinheira e só.
Depois nos sentaremos à mesma mesa
e trocaremos nossas poeiras,
Você me fará afagos
e eu te beijarei com meus versos
Você me contará da purificação
que pode promover um Pinho sol
E eu te falarei do sol
que nasce desse pinho poeta
sobre a máquina de escrever
Jantaremos a comida que eu vou fazer.
Entre feijão e poemas
seremos felizes, apenas.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O dia se esvai (Marcos Freitas - 1963)


o dia se esvai
como a tarde cai
como os anos se vão
quer queira, quer não,
não há então

as cores do tempo
descoloram-se
não importa quantas demãos
importa sim a estação
não importa sequer o meu sim
não importa sequer o teu não

o amor se esvai
como a tarde cai

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Sonhos somos (Marcos Freitas - 1963)

uns dizem que os sonhos devem ser vividos
outros que eles devem ser divididos
já outro que sonhos sonhos são

e eu o que digo?
e eu o que sonho?

às vezes o tempo passado
me é futuro
do presente ou do pretérito
eu já nem sei?

o que esperar dos sonhos?
o que esperar do que somos?

som e sonho:
partituras atemporais.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Para Leminski (Josely Vianna Baptista - 1957)

penso e surpreendo dentro
esse peso suspenso
entre fuga e allegro

entre risos e abismos
resgato fragmentos
e vestígios do vértigo

(espreito, rima leonina,
as naus, bits e ítacas
de tuas russas cismas,
as lengua-lengas feras
dos teus trobares raros)

entre sóis e êsseoésses
miro estrelas-desastres
e desorientes ferozes
rumo ao ouro quase-Órion
de um perhappiness

entre o novo e o velho
só vejo o vero fogo
que te tornou eterno

só vestígios do vétigo
desde que o caos
deixou de ser acaso

sábado, 17 de setembro de 2011

As gaivotas (Aquiles Porto Alegre - 1848-1926)


Voejam as gaivotas erradias
na vasta solidão do negro mar;
como a espuma nas noites de luar
brilham ao sol as penas alvadias.

De encontro às alterosas penedias
o vasto mar se agita a soluçar;
e eu vejo, sobre as águas, a esvoaçar,
o bando de gaivotas fugidias.

Adejam entre o mar e o firmamento;
não repousam na terra um só momento,
cruzando doidamente sobre as águas!

Nos ares se equilibram tão serenas!
E entre penas estão sem terem penas,
e vivem sem sentirem nossas mágoas!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Poema esquisito (Adélia Prado - 1935)

Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa.
Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôô fia.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A costureira (Eucanaã Ferraz - 1961)

Ela ouve o tecido, ela pousa
o ouvido, ela ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga

sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta

para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato

anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho

flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;

indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,

a coisa, a casa que ele quer ser;
e costura como quem à mão
e à máquina descosturasse

o dicionário, rasgando em moles
móbiles seus hábitos, o vinco
de sua farda.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O poeta (Ivan Junqueira - 1934)

O poeta está morto.
Cerrem-lhe as pálpebras,
o olhar absorto,
a boca cheia de tropos
e metáforas barrocas.
Sepultem aquele broto
que em sua garganta rouca
endureceu com o caroço
e a voz outrora doce
lhe afogou em fundo poço.
Deixem-lhe o corpo exposto
para que vejam o que pôde
fazer a morte e sua foice
com aquele que fora
corola, diamente, voo.
O poeta está morto.
Pouco importa agora o sopro
que lhe deu vida e alvoroço,
como tampouco o áspero corvo
que a alma lhe pôs em fogo.
Restam-lhe os versos, poucos,
e as sílabas já sem fôlego
às quais se agarrou com força
porque as ouvia como agouro
de um fugaz e último coro.
O poeta está morto.
Que nos sangrem, garras de osso,
as suas marcas do zorro.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O meu tempo (Arnaldo Antunes - 1960)

O meu tempo não é o seu tempo.
O meu tempo é só meu.

O seu tempo é seu e de qualquer pessoa,
até eu.

O seu tempo é o tempo que voa.
O meu tempo só vai onde eu vou.

O seu tempo está fora, regendo.
O meu dentro, sem lua e sem sol.

O seu tempo comanda os eventos.
O seu tempo é o tempo, o meu sou.

O seu tempo é só um para todos,
O meu tempo é mais um entre muitos.

O seu tempo se mede em minutos,
O meu muda e se perde entre outros.

O meu tempo faz parte de mim,
não do que eu sigo.

O meu tempo acabará comigo
no meu fim.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Travesseiros (Mario Benedetti - 1920-2009)

Nunca foi fácil
encontrar o travesseiro
adequado a meus sonhos
à sua medida exata

na cabeça noite
se cruzam fadigas
se afundam as rugas
da pobre vigília

na cabeça noite
fogem apavorados
as árvores e os muros
os corpos de alumínio

eu não escolho meus sonhos
é o travesseiro / é ele
que os incorpora
em desordem de feira

muito menos escolho
os pesadelos loucos
esses livros de vento
sem letras e sem folhas

mas depois de tantos
travesseiros sem conto
sem história e sem asas
como sempre prefiro

o do teu ventre cálido
perto perto pertinho
do refúgio imantado
dos teus peitos da vida.

domingo, 11 de setembro de 2011

A duração (Gilberto Mendonça Teles - 1931)

Durar é madurar uma forma
de vida inconclusa no ventre
da fruta: é a fruta roída
por si mesma, constante.

O duro somente dura
seu minério e ferrugem:
no êxito de ser se esteriliza
todo sinal de permanência.

Todo corpo se limita
no seu círculo de lendas
e toda sombra apenas resiste
à travessia da memória.

É pela duração das coisas
que o tempo mais se desvia
para dentro do nome:
só o nome se transmite
e se enlaça,
                  durante.

sábado, 10 de setembro de 2011

O pavão que queria ser cachorro (Maíra Ramos)


 
Rubem Alves, famoso pedagogo e escritor brasileiro, já dizia que para educar bem-te-vi é preciso gostar de bem-te-vi e não tratá-lo como urubu. Se houvesse uma escola de urubus, um bem-te-vi verdadeiramente inteligente não poderia ser aprovado com louvor nas provas porque o que é bom para os urubus não serve para os bem-te-vis.
Cresci ouvindo essa história que trata do respeito às diferenças, fala tão em moda nos dias atuais.
Pois, dia desses, vi uma cena um tanto curiosa (para mim e para todos aqueles que a assistiram). Estava eu num restaurante chamado La Mina, localizado na Plaza de Armas, em Havana, capital de Cuba. Enquanto aguardava o almoço, eis que surge assim do nada um belo pavão. Ao menos parecia, em tudo, um legítimo pavão: grande, cauda muito comprida, penas coloridíssimas, pescoço de cor oscilando entre o azul e o verde, corpo cintilante e com pelos fininhos na crista. Todos os olhares se voltaram, de imediato, para o pavão, já que não seria uma figura muito comum de se encontrar dentro de um restaurante, no centro da cidade. Passado o susto inicial dos clientes do estabelecimento, voltamos a agir com naturalidade, quase a esquecer da presença daquela ilustre ave.
Até que chegou o prato pedido por um dos fregueses: um apetitoso bife de carne bovina (chamada de “res” pelos cubanos), acompanhado de arroz e feijão. O senhor a quem a comida estava destinada não teve mais sossego: o pavão rodeava a mesa, ia e vinha à espera de um tiquinho de comida. E todos em volta pararam, espantados, para assistir à cena: era um pavão ou um cachorro vira-latas?
E não parou por aí. A comida também chegou em outra mesa. De novo a cena: o bicho, enlouquecido, caminhava em círculos ao redor da mesa onde o almoço acabara de chegar. E ele olha, olha, olha. Aproxima-se dos fregueses, vira o pescoço para olhar melhor, até que a pessoa, compadecida, deixa um pouco da comida cair no chão. É a alegria do pavão! Ele já não sai mais dali até que mais comida lhe seja dada. Então, os fregueses se distraem e o bicho, louco de alegria, sobe na ponta dos pés, estica o pescoço e rouba a comida do prato do cliente. De minha parte, posso dizer que nunca vi nada igual...
Sempre achei o pavão um animal majestoso, que nos remete a uma imagem de luxo e riqueza. E aquele animal, definitivamente, não remetia a nada disso. Ao revés, acabava por desqualificar sua classe. E, reparando bem, depois pude ver que ele já não tinha o andar majestoso que os pavões costumam ter e que as penas de sua cauda estavam falhadas, claro, pois não se comporta como um dos seus! Esse pavão pode ser tudo, mas pavão, pavão de verdade é que ele não é! A mim pareceu estar diante de um autêntico vira-latas canino que, por força do destino, nasceu no corpo errado. Talvez para nos mostrar que nem tudo é cem por cento certo. É possível que ele fosse reprovado na escola dos pavões, mas não tenho dúvidas de que lograria êxito, e com louvor, na escola dos vira-latas...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

ser, vir-a-ser (Severino Antônio - 1951)

para ler dentro das linhas
e escutar as vozes grávidas,
existir uma vez não basta.
a abertura para a graça
costuma levar mais tempo.
a iluminação tem história
e o trabalho dos dias.

para acolher o sagrado
na carne e nas palavras,
respirar o amor do amor
desde as pequenas coisas,
precisamos de mais vidas.

entre os corpos e as vozes,
nascer, morrer, renascer:
cada vez com a pele nua
e a sede do infinito.

aos poucos, reaprendemos
o que a matéria sonha.
a irmandade das coisas,
a luz que ama sem medida.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Número 5 (Pedro Mexia - 1972)

Dei um passo atrás
e vi pela primeira vez
o número da minha porta.
No passeio, olhando
o metal gasto do algarismo
que há vinte e seis anos
sei que existe,
pensei em recuar um pouco mais
para ver todas as coisas que habito
e não compreendo.
Mas três passos depois
do passeio
o trânsito automóvel
impedia a perspectiva
e a sabedoria.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Por vezes, não raro... (Eucanaã Ferraz - 1961)

Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A poesia (Francisco Alvim - 1938)

Houve um tempo
em que Schmidt e Vinícius
dividiam as preferências
como maior poeta do Brasil.
Quando, por unanimidade ou quase,
nesse jogo tolo
de se querer medir tudo,
Drummond foi o escolhido,
ele comentou:
alguém já me mediu
com fita métrica
para saber se de fato
sou o maior poeta?

Estava certo.
Pois a poesia
quando ocorre
tem mesmo a perfeição
do metro -
nem o mais
nem o menos
- só que de um metro nenhum
um metro de nadas

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Rotas (Mariano Marovatto - 1982)

A Fonte
     água sem praia
plana no eterno
     indivisível

a sabedoria suprema

     Hóstia das almas
     contempla e sublima

Per
     ante
a exaustão de rotas asas
à deriva
     no vórtice
     redemoníaco

domingo, 4 de setembro de 2011

porta-joias (Alice Sant'Anna - 1988)


nessa noite, digo, em quase todas
tenho um sonho horrível
como se acordasse
fosse até a pia do banheiro
lavasse o rosto
e ao enfrentar-me ali
de cabelos revoltos
os dentes cairiam um por um
dominós em série
tentaria em vão segurar as pequenas
peças com as mãos
malabaristas, desastradas
que não conseguiriam deter
a porcelana
sugada com força total pelo ralo
meus dentes pelo ralo, os brincos
de marfim que vovó separou
pra mim

sábado, 3 de setembro de 2011

Caminhada (Manoel de Barros - 1916)


Eu vinha aquela tarde pela terra
fria de sapos...
O azul das pedras tinha cauda e canto.

De um sarã espreitava meu rosto um passarinho.
Caracóis passeavam com róseos casacos ao sol.
As mãos cresciam crespas para a água da ilha.

Começaram de mim a abrir roseiras bravas.
Com as crinas a fugir rodavam cavalos
investindo os orvalhos ainda em carne.

De meu rosto viam ribeiros...

Limpando da casa-do-vento os limos
no ar minha voz pisava...

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Abismos (Suzana Vargas - 1955)

Tudo o que já dissemos
sobre o amor,
não supre a expectativa
da paixão.

A paixão é adaga afiada
que se crava fundo, fundo
Nela o amor dança
e dorme, sonha tudo.

Não tem meias medidas
a paixão.

Ou voamos, viramos pelo
avesso
Ou o que nos espera é o
precipício

E isso - é apenas o início.

Sortilégio (Ferreira Gullar - 1930)

Eu estava ali
no escuro e
     de repente
     o silêncio se move

     enruga-se, melhor
     dizendo, e me
     roça as virilhas
     (onde dormiam fúrias)

É quando uma
quase voz me toca
o lado esquerdo
do corpo para onde
me volto
e estás ali
nua

     emergias da treva
as coxas o ventre
os seios
          eram luas encantadas
          e do centro
          do teu corpo
          a macia estrela negra
me chamava
para dentro de si
enquanto o teu rosto menino
espantosamente familiar
sorria a me dizer: jamais
          jamais jamais
          escaparás

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Infância (Wilson Pereira - 1949)

Eu fui meu
como o espaço
era do pássaro.

Eu me soltava
em cantos e plumas
pelos campos da manhã.

Eu brincava comigo:
eu era eu
e o meu amigo.

Eu me falava baixo
para não espantar
o meu silêncio.

Eu era pequeno
e imenso.