sábado, 31 de dezembro de 2011

Idílio (Antero de Quental)

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um homem com uma dor (Paulo Leminski)

um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

bazar de espantos (Geraldo Carneiro - 1952)

eu não tenho palavras, exceto duas
ou três que me acompanham desde sempre
desde que me desentendo por gente,
nas priscas eras em que era eu mesmo.
agora sou uma espécie de arremedo
despido das minhas divinaturas.
já não me atrevo ao ego sum qui sum.
guardo no entanto em meu bazar de espantos
a palavra esplendor, a palavra fúria,
às vezes até me arrisco à palavra amor,
mesmo sabendo por trás das suas plumas
a improvável semântica das brumas
o rastro irremediável de outro verso
ou quem sabe a sintaxe do universo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Canção para uma valsa lenta (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance,
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance...
Pobre vida... passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Modinha do empregado de banco (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.

Também se o diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Poema de natal (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade !
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

sábado, 24 de dezembro de 2011

Soneto de natal (Machado de Assis)

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Canção da ruazinha desconhecida (Mario Quintana - 1906 - 1994)

Ruazinha que eu conheço apenas
Da esquina onde ela principia...

Ruazinha perdida, perdida...
Ruazinha onde Marta fia...

Ruazinha em que eu penso às vezes
Como quem pensa numa outra vida...

E para onde hei de mudar-me, um dia,
Quando tudo estiver perdido...

Ruazinha da quieta vida...
Tristonha... tristonha...

Ruazinha onde Marta fia
e onde Maria, na janela, sonha...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Amor sangrado e profano (Maria Joseph Soares)

Nosso quarto é minha igreja
Nossa cama é meu altar
Onde me entrego a você
E não preciso rezar;

Quando bebo do seu corpo
Me consagro e me batizo
Minha alma santifica
E minha vida renasce;

Se soluço em teus ouvidos
Eu estou me confessando
Se a morte eterniza
Quero morrer te amando

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O ninho (Alberto de Oliveira - 1859 - 1937)

O musgo mais sedoso, a úsnea mais leve
trouxe de longe o alegre passarinho,
e um dia inteiro ao sol paciente esteve
com o destro bico a arquitetar o ninho.

Da paina os vagos flocos cor de neve
colhe, e por dentro o alfombra com carinho;
e armado, pronto, enfim, suspenso, em breve,
ei-lo balouça à beira do caminho.

E a ave sobre ele as asas multicores
estende, e sonha. Sonha que o áureo pólen
e o néctar suga às mais brilhantes flores;

sonha... Porém de súbito a violento
abalo acorda. Em torno as folhas bolem...
É o vento! E o ninho lhe arrebata o vento.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Oração do rato (Carmen Bernos de Gasztold - 1919)


Sou tão cinzento, meu Deus.
Lembra-se de mim?
Sempre vigiado,
sempre caçado,
vou roendo mediocremente minha vida.
Nunca ninguém me deu nada.
Por que me acusam de ser rato?
Não foi o senhor quem me criou?
Só peço uma coisa: ficar escondido.
Me dê só com que matar a fome
longe das garras
daquele demônio de olhos verdes.
                                                      Amém.

* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade e constante do livro "Poesia Traduzida", editado pela Cosac Naify

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O avô (Olavo Bilac - 1865-1918)

Este, que, desde a sua mocidade,
Penou, suou, sofreu, cavando a terra,
Foi robusto e valente, e, em outra idade,
Servindo a Pátria, conheceu a guerra.

Combateu, viu a morte, e foi ferido;
E, abandonando a carabina e a espada,
Veio, depois do seu dever cumprido,
Tratar das terras e empunhar a enxada.

Hoje, a custo somente move os passos...
Tem os cabelos brancos; não tem dentes...
Porém remoça, quando tem nos braços
Os dois netos queridos e inocentes.

Conta-lhes os seus anos de alegria,
Os dias de perigos e de glórias,
As bandeiras voando, a artilheria
Retumbando, e as batalhas, e as vitórias...

E fica alegre quando vê que os netos,
Ouvindo-o, e vendo-o, e lhe invejando a sorte,
Batem palmas, extáticos, e inquietos,
Amando a Pátria sem temer a morte!

domingo, 18 de dezembro de 2011

Os pombos (Magalhães Braga - 1886 - 1944)


Meu coração é um berço. Se o rasgasse,
nele veriam três pombos que falam.
Falam, mas um soluça, e os três embalam
o berço e os sonhos que no berço nascem.

Dois são brancos. Se os três sempre cantassem,
que festa! Mas se horrores me apunhalam,
dois desses pombos para os céus abalam,
como se o berço pelos céus trocassem.

Esperança é o primeiro. Não resiste
como o segundo, Amor. O outro é puro,
Saudade, um pombo negro, um pombo triste.

Ai de mim quando a treva o berço junca!
Os pombos brancos fogem, fica o escuro,
o que soluça não me deixa nunca.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Versos a um cão (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Que força pôde, adstrita a embriões informes,
tua garganta estúpida arrancar
do segredo da célula ovular
para latir nas solidões enormes?!

Esta obnóxia inconsciência, em que tu dormes,
suficientíssima é para provar
a incógnita alma, avoenga e elementar
dos teus antepassados vermiformes.

Cão! Alma de inferior rapsodo errante!
Resigna-a, ampara-a, arrima-a, afaga-a, acode-a
a escala dos latidos ancestrais...

E irás assim, pelos séculos, adiante,
latindo a esquisitíssima prosódia
da angústia hereditária dos teus pais!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Beata Beatrix (Venceslau de Queirós - 1865 -1921)

Dizem que és casta, és santa, és pura...
E, na verdade, quem te veja
o rosto... os olhos... a figura
que lembra as santas de uma igreja,

por Deus! negar não pode, jura
que és pura, és santa, és casta, e beija
com untuosa compostura
tua mão branca e benfazeja.

Mas que o Senhor me fira em cheio
o coração, se em longo anseio
da mais brutal paixão espúria,

teu corpo em meus braços de ferro
não palpitou ouvindo o berro
do bode negro da luxúria!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Propaganda eleitoral (Belmiro Braga - 1872 - 1937)

Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extrachapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de ofício é de primeira.
Vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes... que ficar calado.

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal, representante,
agora aspiro a ser como escrivão;

e, eleito, espero, mas que maravilha!
ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsídio, quer trabalhe ou não...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Prisão (Elisa Lucinda - 1958)


Não consigo me soltar:
nem gases nem versos.
Hoje sou reverso de cantilena
antítese do poema
me espremo me alvoroço
me debulho me coço
me vasculho me provoco
e não sai nada.

Séculos se passaram
e o corpo ainda sente:
nasci na lei do ventre-livre
e hoje sofro de prisão de ventre.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Poema de finados (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)


Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero:
E em verdade estou morto ali.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Motivos para meu verso (Hildeberto Barbosa Filho - 1954)

o meu verso fala:
da fábula do perdido
dos que uivam de amor
do vento da nuvem do medo
dos rascunhos da mosca, da caligrafia,
de tudo que apenas se esboçou.

fala da ferrugem
que habita o lixo dos quintais
dos sapatos expostos ao tempo
do lodo que escorre da noite
da cárie, da calvície
de tudo que não existe mais


queria por no meu verso
em lugar da rima a ruga
o funeral das formigas
o pavor dos besouros sob o sol
restos de coisas, restos de nada, réstias,
nonadas

por um pouco:
do carteiro
do garçon
do alfaiate
do livreiro

pedaços de gilete
alfinetes lâmpadas queimadas
livros riscados pregos
pinças o fútil o inútil
o dúctil

e fazê-lo abrigo
para o pote
o pente a tesoura
o nariz de Adélia
os dentes de Fidélia

o meu verso guarda
um cariri na memória
de tanto que leu Proust
recorda:
o som do leite quente no tacho
o gosto assustado da goteira
o cheiro das tristezas da terra.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Salvas fúnebres (João de Deus - 1830-1896)

Ditosa de uma augusta personagem,
que em exalando o último suspiro,
de quarto em quarto de hora ouve-se um tiro,
o que é de uma grandíssima vantagem.

Nós cá temos no luto outra linguagem,
que é o pranto, o silêncio e o retiro;
eles, tiros de peça! Não me admiro;
são pessoas de altíssima linhagem!

São pessoas reais; os mais, abortos
em que os cavalos do seu coche encalham,
e eles vão indo estáticos, absortos...

Não se lhes dá das lástimas que espalham,
e muito menos que, depois de mortos,
quebrem o sono os pobres que trabalham.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Corvo (Hermes Fontes - 1888-1930)


Em cima, o azul da esfera interjeições arranca,
embaixo, o mar, nervoso e insone, se espreguiça;
e a praia, em curva, é toda uma ampla toalha branca,
manchada pela cor sanguínea da carniça.

Vede: um corvo! (Que mau agouro) Sobre uma anca
pousa: belisca e rasga, abre, revolve, erriça,
retalha o peito, o ventre... A mesa é lauta e franca
e a fome é um tribunal - que oficiais de justiça!

Desses que, da miséria alheia enriquecidos,
vivem do ouro pelo ouro, inda os há mais ferozes
- têm cinco dentes mais, ao invés dos sentidos...

E a civilização não queima esses atrozes
corvos que, a sangue humano e lágrimas nutridos,
querem do alto pompear com penas de albatrozes?...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Epigrama (Xavier de Novaes - 1820 - 1869)

Um rico velho avarento,
já bem perto d'expirar,
para fazer testamento
manda o tabelião chamar.

Com timbre de voz roufenho
diz o velho a suspirar:
"Deixo tudo quanto tenho..."
E não podia acabar.

O tabelião cansado
de seu tempo em vão gastar,
tendo escrito, diz, zangado:
"E o resto?... Queira ditar!"

"Deixo tudo quanto tenho..."
- o velho torna, a chorar -
pára um pouco e diz, roufenho:
"porque o não posso levar".

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Via láctea (Olavo Bilac - 1865-1918)

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso"! E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora! "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las:
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Reflexão nº 1 (Murilo Mendes - 1901-1975)


Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O que há em mim é sobretudo cansaço (Fernando Pessoa - 1888-1935)

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo.
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente -:
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Anjo caído (Bulhão Pato - 1829 - 1912)

Na flor da vida, formosa,
ingênua, casta, inocente,
eras tu no mundo, rosa!
Quem te arrojou de repente
para o abismo fatal?
Viste um dia o sol de abril;
o teu seio virginal
sorriu alegre e gentil.

Ergueu-se aos clarões suaves
d'aquela doce alvorada
a tua face encantada.
Amaste o doce gorjeio
que desprendiam as aves,
e no teu cândido seio
quanto amor, quanta ilusão
alegre pulava então.

Mal haja o fatal destino,
maldita a sinistra mão,
que em teu cálix purpurino
derramou fera e brutal
esse veneno fatal.

Hoje és bela; mas teu rosto
que outrora alegre sorria,
é todo melancolia!
Hoje nem sol, nem estrela,
para ti brilha no céu;
           mal haja quem te perdeu!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Tua boca (Maria Braga Horta - 1913 - 1980)

Tua boca é para mim carmínea taça
em cujas bordas sorvo, trago a trago,
o divino hidromel com que embriago
o meu sonho de amor feito em fumaça!

Tua boca é um rubro cálice sem jaça
em que meus lábios, trêmulos, afago
na incontida volúpia em que divago:
- Vivamos nosso amor... que a vida passa!

Tua boca é a minha síntese vital,
em que fica suspenso o meu ideal,
em que eu prendo minha alma semilouca!

Tua boca é um sol ardente, em chama e em brasas:
sol do equador, que queima minhas asas,
as asas de rubis da minha boca!

sábado, 3 de dezembro de 2011

A solha (Humberto de Campos - 1886 - 1934)

Quando Nossa Senhora andava pelo mundo,
trazendo ao colo um deus, foi bater, certo dia,
à hora da preamar, a um rio muito fundo,
de barreira muito alva, e água muito sombria.

Era um risco passar. Mas a Virgem Maria,
ante o equóreo lençol todo em peixes fecundo,
quis saber, vendo de perto uma solha vadia,
se o rio, na vazante, era feio e profundo.

E indagou: "Solha, dize, a maré enche ou vaza?"
Mas a solha, a zombar, por um hábito antigo,
torce a boca, e a arremeda, a pular na onda rasa.

E é daí, e em razão desse negro pecado,
que a solha começou, por severo castigo,
a rodar pelo mar, tendo a boca de um lado.


* Solha é o peixe "Linguado"

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Mapa (Orides Fontela - 1940 - 1998)

Eis a carta dos céus:
as distâncias vivas
indicam apenas
roteiros
os astros não se interligam
e a distância maior
é olhar apenas.

A estrela
vôo e luz somente
sempre nasce agora:
desconhece as irmãs
e é sem espelho.

Eis a carta dos céus: tudo
indeterminado e imprevisto
cria um amor fluente
e sempre vivo.

Eis a carta dos céus: tudo
                               se move.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Errância (Orides Fontela - 1940 - 1998)

Só porque
erro
encontro
o que não se
procura

só porque
erro
invento
o labirinto

a busca
a coisa
a causa da
procura

só porque
erro
acerto: me
construo.

Margem de
erro: margem
de liberdade.