domingo, 31 de março de 2013

Como se comprimisses a mão (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Como se comprimisses a mão
Sobre os teus olhos
E visses tua candura
Simplesmente igual a uma grande massa escura,
Como quem vê de dentro
A princípio não vendo
E aos poucos distinguindo
O sangue, o filamento, o sal da sua própria estrutura

Assim posso me ver agora.

Parte de mim
Estilhaça uma asa num círculo de ferro.
Parte de mim é um arcabouço raro.
E o que vem de ti (uma parte de mim)
São aqueles meninos
E as aves com seus corpos finos
Sobre um lago de ledas asperezas.

Sou descanso e rudeza.

sábado, 30 de março de 2013

O Deus de que vos falo (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

O Deus de que vos falo
Não é um Deus de afagos.
É mudo. Está só. E sabe
Da grandeza do homem
(De vileza também)
E no tempo contempla
O ser que assim se fez.

É difícil ser Deus.
As coisas O comovem.
Mas não da comoção
Que vos é familiar:
Essa que vos inunda os olhos
Quando o canto da infância
Se refaz.

A comoção divina
Não tem nome.
O nascimento, a morte
O martírio do herói
Vossas crianças claras
Sob a laje,
Vossas mães
No vazio das horas.

E podereis amá-Lo
Se eu vos disser serena
Sem cuidados,
Que a comoção divina
Contemplando se faz?

sexta-feira, 29 de março de 2013

Soneto do sonho (Ruy Espinheira Filho - 1942)

Amei-te, ontem, num sonho: clara e nua
como jamais te vi, mas te trazia
em mim há muito tempo assim. Sabia
que tu eras? e és? como no sonho a lua

te fez baixar em minha cama nua,
em meu corpo deserto de alegria
e eis que já cintilante de poesia
que vinha do teu corpo em luz de lua

e calor de ternura densa, e olor
de mar, e azul, e histórias de outra era,
quando se amava e se morria de amor.

E então te amei, agradecido à lua
por me fazer viver uma quimera
como sempre a sonhara: clara e nua.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Fábrica (Fabiano Calixto - 1973)

eco da canção
(de esguelha)
no protetor
de orelha

o pé inoxidável
retalhando odores
constantes
durante o turno

uma leve sensação
de chumbo cavalga
as vértebras - o
pássaro pousa

num único lembrar
de galho de árvore -
uma gota de suor
suspensa no óleo

reafirma uma
reação química

quarta-feira, 27 de março de 2013

As sereias (Orides Fontela - 1940 - 1998)

Atraídas e traídas
atraímos e traímos

Nossa tarefa: fecundar
atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
traindo
o acontecer puro
que nos vive.

Nosso crime: a palavra.
Nossa função: seduzir mundos.

Deixando a água original
cantamos
sufocando o apelo
do silêncio.

terça-feira, 26 de março de 2013

Frutos e flores (Marina Colassanti - 1937)

Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas.
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.

Vers de Circonstance (Carlito Azevedo - 1961)

Entre fraga e desabrigo
eu sou pobre, pobre, pobre,
onde está o corpo amigo
que me cobre, cobre, cobre?

Nada de arraia-miúda,
no serial da avenida,
por que fui dar nessa boca
que me fere intimativa?

Por que justo nesse beijo
sigla de ouro e veneno
que enigma meu desejo
com lacre azul metileno?

Entre desabrigo e fraga
nasce e morre o quem dá série
que se oculta sob chaga
que difere, fere, fere.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Ana C (Eudoro Augusto - 1943)

Outra vez nos braços do amor perdido.
Sempre o declive. Sempre a vertigem.
Às vezes o abismo.
Posso inflar
as velas de outra imagem
e assim navegar teus canais azulados,
minha lúcida amiga.
No céu-da-boca desta manhã
fica apenas um risco:
relâmpago longo como o olhar.
Luz. Outra luz. Louca luz.
O mesmo anjo que beija tua orelha fina
invade o cinema como um vento fictício
e rabisca cicatrizes bem legíveis
no coração deserto do meio-dia.

domingo, 24 de março de 2013

Em face do mistério (Salgado Maranhão - 1953)

minha sina é uma canção
de amor no temporal.
desliza sobre mares
rola sob viadutos
ruínas e paixões.

meu coração quasar rasante
(vale-transporte para a via láctea)
brota sob o carpete,
sobre os alagados
e as cinzas do não.

(ó sina que me arremessa
na canção do temporal!)

do acervo do não ser
a essência das coisas range
pedindo para nascer.

sábado, 23 de março de 2013

Da série problemas pessoais (Salgado Maranhão - 1953)

meto a cara na manhã
empoeirada da metrópole,
arrasto comigo um poema
em busca de palavras exatas
para ser tecido.

jogo o corpo na manhã
cinzenta da cidade
com a cara lavada de perspectivas
e o coração que é um largo lençol
de cicatrizes.

navego longamente na manhã
urbanotrópole
com o saco cheio de sair pela traseira
da vida.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Os dentes afiados da vida (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

os dentes afiados da vida
preferem a carne
na mais tenra infância
quando
as mordidas doem mais
e deixam cicatrizes indeléveis
quando
o sabor da carne
ainda não foi estragado
pela salmoura do dia a dia

é quando
ainda se chora
é quando
ainda se revolta
é quando
ainda

quinta-feira, 21 de março de 2013

Não sou o silêncio (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

não sou o silêncio
que quer dizer palavras
ou bater palmas
pras performances do acaso

sou um rio de palavras
peço um minuto de silêncios
pausas valsas calmas penadas
e um pouco de esquecimento

apenas um e eu posso deixar o espaço
e estrelar este teatro
que se chama tempo

quarta-feira, 20 de março de 2013

Minhas 7 quedas (Paulo Leminski - 1944 - 1989)

minha primeira queda
não abriu o paraquedas

daí passei feito uma pedra
pra minha segunda queda

da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda

nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda

na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo

terça-feira, 19 de março de 2013

São Paulo (Nelson Ascher -1958)

Por que, se não há neste
subarremedo de urbe re-
fugado, ou melhor, púbere-
caduco clone agreste

do urbano, algo que preste,
e embora, como em úbere
dum rato, aqui se incumbe re-
petidamente a peste

chamo ainda, feito abutre
doentio que, sem cessar,
vomita mas se nutre do

seu vômito, apesar
de ser (ou porque é) pútrido,
São Paulo de meu lar?

segunda-feira, 18 de março de 2013

Espólio (Alexei Bueno - 1963)

No fim de tudo, quando os adorados
Membros forem torrões no pó incrustados,
Quando os móveis tiverem, muito antigos,
Dado ceia aos cupins, fogo aos mendigos,
Quando os papéis rolarem já nas poças
E o chão pisarem nem nascidas moças,
Quando outras gerações, sem nome nosso,
Olharem para o céu sempre em esboço,
E os restos nossos, sem que a vida atine,
Dormirem num promíscuo de vitrine,
Sem um vínculo mais, um gesto, um preço,
Sem mesmo as cascas, sem seu endereço
Também mudado já, sem um resquício
Do nosso rude amor, nosso suplício,
Então só sobrarão, no tempo emersos,
Uns versos, como agora, uns rijos versos.

domingo, 17 de março de 2013

Obstáculos (Carlos Ávila - 1955)

obstáculos
à beleza
de todo tipo
em toda parte

não há país
nem paisagem
a voz não soa
a vida à-toa

obstáculos
à beleza
de todo lado
em todo estado

assassinato
sem assinatura
palavra calada
mera rasura

obstáculos
à beleza
pouco ar
em todo lugar

apenas tédio
gosto médio
ofício sem ossos
oficina do ócio

obstáculos
à beleza
obstáculos
obstáculos

sábado, 16 de março de 2013

Busca (Mariana Ianelli - 1979)

Não se sabe de Clara.
Se me procuram para revelações,
Esvazio o meu rosto e quedo,
Ocultando a sua ida.
Eu aceito, se me acusam.
Sua figura longa vertendo,
Tardando, com a retina em veludo
- Clara, cedendo, num gesto de flor.
Se me encerram, eu não rogo ou protesto.
Sua forma contrária andando na terra,
Invertendo as linhas que seguiam retas,
Sua passagem lenta pelas trilhadas
Se firmou algures...
Mas se aumentam as pesquisas,
Esquadrinham suspeitas,
Eu vou tomar seus olhos convincentes
E com eles direi :
- "Não há mais Clara".

sexta-feira, 15 de março de 2013

Canto de regresso à pátria (Oswald de Andrade - 1890 - 1954)

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Entre um jogo e outro (Marina Colassanti - 1937)

Ter você nu na cama
que deleite.
E como a gente brinca
e rola e ri
para depois sentar
nos lençóis descompostos
o corpo ainda suado
e continuando sempre
o mesmo jogo
falar a sério
de literatura.

Te beijo no cangote
e quieta penso:
um outro amante assim
Senhor
que trabalho terias
pra me arrumar
se me tomasses este.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Lundu do escritor difícil (Mário de Andrade - 1893 - 1945)

Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
— Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.

Azuis (José Carlos Peliano - 1948)

as asas que não tenho estendo e alcanço
o pássaro sem asas e horizonte
perdido ao chão dos ventos em balanço
achado aos ares das águas das fontes

profano o vôo que me leva manso
ao sopro eterno para além dos montes
onde paira alta a nau onde descanso
e sigo em rios sem beiras, nem pontes

desmesurado o espaço dentro e fora
do tempo, dos espelhos, do marfim
do desejo desperto à qualquer hora

rompo os limites da matéria, assim
e de asas infinitas vou-me embora
com as asas que voam dentro em mim

terça-feira, 12 de março de 2013

Flor de asfalto (Guilherme de Almeida - 1890 - 1969)

Trazes nos olhos a melancolia
das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua
essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe
qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,
teu vulto, penetrante como um cume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Com fúria e raiva (Sophia de Mello Breyner - 1919 - 2004)

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

domingo, 10 de março de 2013

Três (Antonio Cícero - 1945)

Um
Foi grande o meu amor
não sei o que deu
quem inventou fui eu
fiz de você o sol
da noite primordial
e o mundo fora nós
se resumia a tédio e pó
quando em você tudo se complicou

Dois
Se você quer amar
não basta um só amor
não sei como explicar
um só é sempre demais
pra seres como nós
sujeitos a jogar
as fichas todas de uma vez
sem temer naufragar
não há lugar para lamúrias
essas não caem bem
não há lugar para calúnias
mas por que não
nos reinventar

Três
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com o seu sexo
Junto ao mar

sábado, 9 de março de 2013

O amor antigo (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige, nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Se eu morrer de novo (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão -
Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraido.

* Poema do heterônimo Alberto Caeiro

quinta-feira, 7 de março de 2013

Telha de vidro (Raquel de Queiroz - 1910 - 2003)

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz do dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você não experimenta?
A moça foi tão bem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!

quarta-feira, 6 de março de 2013

O doido (Eucanaã Ferraz - 1961)

Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra

acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável, a cabeça

reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua

em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.

Absorvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação

de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos

encardidos a água das praias,
como se província sua,

como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,

até que desceu a noite
e uma pedra veio buscá-lo.

Mosaico (Ronaldo Cagiano - 1961)

Não me importa o que sou.
De nada vale a pena
deslumbrar-se
na vã tentativa de admirar
o que fez, o que foi, o que tem.
Orgulho-me, sim,
daquilo que não fui.

Só assim consigo estar mais leve
e ver além do sol,
porque das decepções que não sofri
e das frustrações que não tive
a mim e aos demais poupei.

Entre tantas despedidas,
amizades desfeitas ou amores inconclusos,
ficou-me a estrada
e a estranha, iniludível sensação
de estar inacabado.

terça-feira, 5 de março de 2013

O tempo (Ronaldo Costa Fernandes - 1952)

O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá for
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.

O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.

O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.

O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.

O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiro,
o que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.

O tempo — animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Lições (Ronaldo Costa Fernandes - 1952)

Existir é a prova dos nove.
Um dia me cansarei de ser
a nota dissonante
e abandonarei a lição de casa,
a lição da rua, a lição da vida,
oh, Deus,
todas as lições que nunca aprendi.
Lição se aprende com o corpo.
O corpo tem sua matéria,
sua disciplina, seu passar de ano.
A natureza ensina com galhos,
cada folha que cai é um ponto.
Por toda parte há as esquinas das vírgulas.
Tenho medo do abc das torrentes,
da aritmética das montanhas,
da História das minhas dores.
Minha dor é um fruto
que, amadurecido, não cai
e vai apodrecendo o galho,
o caule e a raiz tormentosa.

domingo, 3 de março de 2013

Jogos florais (Cacaso - 1944 - 1987)

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre
a água já não vira vinha
vira direto vinagre

Minha terra tem palmares
memória cala-te já
Peço licença poética
Belém capital Pará

Bem, meus prezados senhores
dado o avanço da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com esses dois esses
que se escreve paçarinho?)

sábado, 2 de março de 2013

Cometa poesia (Nicolas Behr - 1958)

era noite de julho de 1967

mamãe nos acordou de madrugada
para vermos o cometa ikeia-seki
(ela sabia que nós
nunca o esqueceríamos)

o cometa seguiu seu curso
nós voltamos para a cama

caixeiro-viajante do céu,
o cometa aparece e desaparece

o cometa volta
a infância não

sexta-feira, 1 de março de 2013

Brasília enigmática (Nicolas Behr - 1958)

brasília, faltam exatos 3.232 dias
para o nosso acerto de contas

me deves um poema
te dou um olhar terno

na beira do paranoá
pego um pedaço de pau
entre um pneu velho
e um peixe morto
(uma garça
por testemunha)

não me reconheces
não te reconheço