sábado, 31 de março de 2012

Fuso (Armando Freitas Filho - 1940)


Tento acertar meu relógio
pelo seu, parado, há tanto
com o suor do pulso, seco
a pulseira de couro partida
que ainda guarda algum sal.
Pai, a certeza de sua hora
me falta, e mesmo tendo
andado, não consegui chegar
a tempo, de pegar seu passo
emparelhar-me — servir
de companhia para sempre —
e passar à descendência
os firmes compromissos
pois me perdi pelo caminho.

sexta-feira, 30 de março de 2012

A estrela (Ana Maria Marques)

Na noite
do seu corpo
a estrela
enlaça
o dragão

sereias cantam mudas
em seus braços

na sua pele
meu coração dorme
tatuado

eu sei:
você riscou-se
para que em seu corpo
eu
mais facilmente
encontrasse meu
caminho

quinta-feira, 29 de março de 2012

Tirana (Castro Alves - 1847 - 1871)

"Minha Maria é bonita,
Tão bonita assim não há;
O beija-flor quando passa
Julga ver o manacá.

"Minha Maria é morena,
Como as tardes de verão;
Tem as tranças da palmeira
Quando sopra a viração.

"Companheiros! o meu peito
Era um ninho sem senhor;
Hoje tenho um passarinho
Pra cantar o seu amor.

"Trovadores da floresta!
Não digam a ninguém, não!...
Que Maria é a baunilha
Que me prende o coração.

"Quando eu morrer só me enterrem
Junto às palmeiras do val,
Para eu pensar que é Maria
Que geme no taquaral..."

quarta-feira, 28 de março de 2012

Soneto já antigo (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Olha Daisy: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não o saibas, que morri...
mesmo êle, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará... Depois vai dar

a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!


* Poema do heterônimo Álvaro de Campos

terça-feira, 27 de março de 2012

Reinvenção (Cecília Meireles - 1901 - 1964)

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Pelo silêncio (Jorge de Lima - 1895 - 1953)

Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:

pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;

pelos pequenos astros e satélites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,

vós que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que é a vida oculta dessa eterna infanta.
 

domingo, 25 de março de 2012

Livro de horas (Miguel Torga - 1907 - 1995)

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.

Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três, e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

fundamental (Geraldo Carneiro - 1952)

pra que serve o poeta? para nada
sendo o nada parte fundamental
dessa entidade de que é feito o tudo

pra que serve o poeta? para o espanto
o enterro das penúltimas quimeras
as especulações da primavera

pra que serve o poeta? para tudo:
cantar os feitos dos deuses e heróis
as guerras de extermínio e de conquista
enfeitando-as com a aura de aurora,
ou pra cantar o desconcerto do mundo
os desastres do amor perdido
as sobrancelhas da amada etc.

pra que serve o poeta? para o escárnio
pra ser apedrejado como Sousândrade
ou, como tantos outros, devorado
por essa sua criatura, a realidade

sábado, 24 de março de 2012

Atriz (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)


A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Piraçununga
Cleópatra e Antígona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um dos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.

sexta-feira, 23 de março de 2012

A roupa do rei - Drummondiana (Francisco Alvim - 1938)

Estamos gastos sim estamos 
gastos
O dia já foi pisado como devia 
e de longe nosso coração 
piscou na lanterna sangüínea dos automóveis 
Agora os corredores nos deságuam 
neste grande estuário 
em que os sapatos esperam
para humildemente conduzir-nos a nossas casas
 
Em silêncio conversemos

Que fazer deste ser 
sem prumo 
despencado do extremo de um dia e 
que o sono não recolheu?

Não não indaguemos
Para que indagar matéria de silêncio 
Procurar a nenhuma razão que nos explique 
e suavemente nos envolva 
em suas turvas paredes protetoras
 
Nada de perguntas
A campânula rompeu-se
O instante nos ofusca

A quem sobra olhos resta ver 
um ser nu a vida pouca 
Só dentes e sapatos 
de volta para casa

Nem um passo à frente 
ou atrás
De pés firmes
o corpo oscilante 
neste suave embalo da mágoa 
descansemos

quinta-feira, 22 de março de 2012

Minha grande ternura (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo. 

quarta-feira, 21 de março de 2012

Aventura na casa atarracada (Ana Cristina Cesar - 1952 - 1983)


Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora, 
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

terça-feira, 20 de março de 2012

Cantar (Sophia de Mello Breyner Andresen - 1919 - 2004)

Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto passo andado
País ocupado
Num quarto fechado

As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade

Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera

Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens

segunda-feira, 19 de março de 2012

Caso de família (Heitor Ferraz Mello - 1964)

Tudo se torna folclórico
o trágico familiar caindo no riso
na gargalhada
a morte numa escada de bar
depois de uma briga estúpida
perde o sentido
como os acontecimentos
a preocupação
a dor.

Essas coisas acontecem
os episódios não são reconstituídos
como os crimes nos jornais:
os órfãos não choram a morte trágica do pai
o sangue não penetra as escadarias de azulejo
- apaga-se, como o nome
numa conversa de cozinha.

domingo, 18 de março de 2012

Pronúncia (Fabrício Carpinejar - 1972)

A palavra é falível
posta em outra boca:
o horizonte deitou

o fuzil dos pássaros.
Volta, pai, que a fundura
não está nos passos,

a tapera dispersa
a caça e o paradeiro
das pegadas.

A queda atalha a subida,
o homem permanece
uma pronúncia inacabada.

Tantas vezes caí
em teu lugar,
que descobri o inferno

ao repetir a salvação.
Tantas vezes caíste
em meu lugar,

que descobriste a salvação
ao repetir o inferno.

sábado, 17 de março de 2012

20 (Armando Freitas Filho - 1940)

"Numerando até a morte"
principalmente o inominado.
Mergulho para dentro
para onde só há expectativa.
Motor de ideia fixa, movido
pelo suor do corpo no sonho
suspenso no cavalete, a pleno
em prova, concentrado
sem ter ainda a dispersão
da partida, quase no ponto.
Veículo que não se saiu do plano
já possui todo o pontilhado
para suportar qualquer fuselagem
carroceria, aerodinâmica
Mas se deixa perceber, breve
perdido, entre os aros da peneira
que o sol abriu e furou, pré-explosão
e de repente - nem sombra.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Soneto 234 Confessional (Glauco Mattoso - 1951)

Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.

ainda odeio quem me tem odiado:
devolva agora aquilo que declara.
mas quem amei não volta, e a dor não sara.
não sobra nem a crença no passado.

palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
escrito é que nem ódio, só envelhece.

se serve de consolo, seja assim:
amor nunca se esquece, é que nem prece. Tomara,
     pois, que alguém reze por mim...

quinta-feira, 15 de março de 2012

O Centro (Alexei Bueno - 1963)

Deus não nos sonha, mas sua ausência, sim.
Aquilo que não é Ele está sonhando
Até estas ruas que vamos pisando
Atrás de algum desconhecido.

E o Vácuo ama o seu sono. E é tudo assim,
Um onírico acaso, um curso brando
Com saltos cruéis que não avisam quando,
E em cada esquina um túmulo, um festim.

E por trás desse sonho outros pregressos,
De nós, de outros que nós, e de outros nós,
E a névoa e a noite, e as fugas e os ingressos,

E o sonho em tudo, no antes, no ora e o após.
Enquanto além do Seu nosso oco incerto
Deus é o que é, intrínseco e desperto!

quarta-feira, 14 de março de 2012

Soneto do cafuné (Alberto da Costa e Silva - 1931)

As mãos são como a chuva. Desenrolam
a rede do armador e a estendem, barco
no remanso do quarto. As mãos convocam
o que há, no verão, de sonolência.

As mãos repartem, leves, os cabelos.
O alado cafuné azula a serra,
afugenta os morcegos, põe nas sombras
o cantar do correr de pés na areia.

O remar da carícia afina as formas
deste mundo barroco e o faz conciso,
uma linha de luz na noite. Corre

pelo urdume do sonho outra beleza
(só tive Deus em mim alguns momentos)
que o tempo não corrói, nem o sol cobre.

terça-feira, 13 de março de 2012

O que Alécio vê (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

A voz lhe disse (uma secreta voz):
- Vai, Alécio, ver.
Vê e reflete o visto, e todos captem
por seu olhar o sentimento das formas
que é o sentimento primeiro - e último - da vida.

E Alécio vai e vê
o natural das coisas e das gentes,
o dia, em sua novidade não sabida,
a inaugurar-se todas as manhãs,
o cão, o parque, o traço da passagem
das pessoas na rua, o idílio
jamais extinto sob as ideologias,
a graça umbilical do nu feminino,
conversas de café, imagens
de que a vida flui como o Sena ou o São Francisco
para depositar-se numa folha
sobre a pedra do cais
ou para sorrir nas telas clássicas de museu
que se sabem contempladas
pela tímida (ou arrogante) desinformação das visitas,
ou ainda
para dispersar-se e concentrar-se
no jogo eterno das crianças.

Ai, as crianças... Para elas,
há um mirante iluminado no olhar de Alécio
e sua objetiva.
(Mas a melhor objetiva não serão os olhos líricos de Alécio?)
Tudo se resume numa fonte
e nas três menininhas peladas que a contemplam,
soberba, risonha, puríssima foto-escultura de Alécio de Andrade,
hino matinal à criação
e a continuação do mundo em esperança.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Oração do galo (Carmen Bernos de Gasztold - 1919)

Convém lembrar, Senhor,
que eu faço nascer o Sol.
Sou seu servidor,
mas a importância de minha função
me compele a uns tantos brilharetes e mundaniquices.
Noblesse oblige...
Apesar de tudo,
sou seu servidor.
Mas convém não se esquecer, Senhor,
de que eu faço nascer o Sol.
                                                                                      Amém.


* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade e constante do livro "Poesia traduzida", editado pela Cosac Naify.

domingo, 11 de março de 2012

O apanhador de desperdícios (Manoel de Barros - 1916)

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar,
dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
     de canto.
Porque eu não sou da informática:
Eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

sábado, 10 de março de 2012

Esses livros dentro da gente... (Stela Maris de Rezende)

Tem que saber ler as mãos. Qual alma cigana, ter
     disposição para viajar a qualquer instante. Escrever
     é uma viagem. Uma busca de não sei o quê. Uma
     doida aventura.
          Exige-se também a leitura atenta das árvores,
          das pedras, dos rios, das estrelas, dos mares, dos
          ventos, dos prédios, dos ônibus, dos medos, dos
          sustos, dos gritos, das festas, das manchas de
          óleo e das xicrinhas de café.

     Tem que ouvir histórias, muitas histórias, de
          preferência histórias de assombração contadas por
          uma avó bem misteriosa e ladina. Na falta da avó,
          trate de ouvir a professora, a vizinha, o motorista
          de táxi, o vendedor de quebra-queixo. Qualquer
          história pode ser envolvente.
                                      O que seduz é o modo de contar.


* Excertos da obra "Esses livros dentro da gente: uma conversa com o jovem escritor", editado pela Casa da Palavra, edição de 2007, sobre o ofício de escrever. Linda obra! 

sexta-feira, 9 de março de 2012

Mãos (Ana Martins Marques)


Uma trabalha mais que a outra.
Dividem o peso dos anéis.
Uma nunca aprendeu a escrever.
Com isso a outra tornou-se mais silenciosa,
mais firme, mais acostumada ao adeus.
Em alguns gestos entram as duas
numa mesma coreografia
como quando é necessário contar algo
mais que cinco.
Aceitam as manchas dos anos
como solteironas
que envelhecem juntas.

Reparos (Ana Martins Marques)

Algumas coisas
quando se quebram
são fáceis de consertar:
uma xícara lascada
uma estatueta de gesso
um sapato velho
uma receita que desanda
ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem
as marcas do remendo,
é possível que essas marcas
tenham um certo charme
como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar
um poema que estragou.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Desexistir (Frederico Barbosa - 1961)

quando eu desisti
de me matar
já era tarde.

desexistir
já era um hábito.

já disparara
a auto-bala:
cobra cega se comendo
como quem cava
a própria vala.

já me queimara.

pontes, estradas,
memórias, cartas,
toda saída dinamitada.

quando eu desisti
não tinha volta.

passara do ponto,
já não era mais a hora exata.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Há anos vende o seu peixe (Rodrigo Garcia Lopes - 1965)

Há anos vende o seu peixe

podre
seu suflê de vísceras
para vegetarianos sem o menor senso de humor.

Há tempos leciona
o dialeto do caos
dá conselhos ao sol
vende orquídeas escritas com
seu sangue
para vampiros que têm medo do vermelho.

Há séculos ele pratica
a extinta arte da pluviometria
fabrica idéias inúteis
conta os carros da esquina
compondo um poema longo e atroz.

Há minutos ele liga
Para uma secretária eletrônica
Que repete, estranho, exatamente
A gravação de sua própria voz.

terça-feira, 6 de março de 2012

Carapicuíba (Duda Machado - 1944)


sentados
as cabeças caindo
uma a uma
o sono
resistindo aos freios
aos solavancos
do ônibus

em pé
compactados num híbrido
de cabeças e braços
que não permite
distinguir seus donos
se equilibram

vacilam
e obstinados
se agarram
ao silêncio
último recurso
de espaço

segunda-feira, 5 de março de 2012

A um ausente (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

domingo, 4 de março de 2012

Carta (Mario Quintana - 1906 - 1994)


Eu queria trazer-te uma imagem qualquer
para os teus anos...
Oh! mas apenas este vazio doloroso
de uma sala de espera onde não está ninguém...
E que,
longe de ti, de tuas mãos milagrosas
de onde os meus versos voavam - pássaros de luz
a que deste vida com teu calor -
é que longe de ti em me sinto perdido
- sabes? -
desertamente perdido de mim!
Em vão procuro...
mas só vejo de bom, mas só vejo de puro
este céu que eu avisto da minha janela.
E assim, querida,
eu te mando este céu, todo este céu de Porto Alegre
e aquela
nuvenzinha
que está sonhando, agora, em pleno azul!

sábado, 3 de março de 2012

As coisas (Mario Quintana - 1906 - 1994)

O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
No entanto, amiga,
se nelas algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
e, acaso, singular...
E deixa-me dizer-te em segredo
um dos grandes segredos do mundo:
- Essas coisas que parece
não terem beleza
nenhuma
- é simplesmente porque
não houve nunca quem lhes desse ao menos
um segundo
olhar!

Definição de poesia (Boris Pasternak - 1890 - 1960)

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, a folha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim uma estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

* Poema traduzido por Haroldo de Campos

sexta-feira, 2 de março de 2012

Convite (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?

quinta-feira, 1 de março de 2012

Devenir, devir (Waly Salomão - 1944 - 2003)

Término de leitura
de um livro de poemas
não pode ser o ponto final.

Também não pode ser
a pacatez burguesa do
ponto seguimento.

Meta desejável:
alcançar o
ponto de ebulição.

Morro e transformo-me.

Leitor, eu te reproponho
a legenda de Goethe:
Morre e devém

Morre e transforma-te.