segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Também já fui brasileiro (Carlos Drummond de Andradade - 1902-1987)

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

domingo, 30 de outubro de 2011

Rostos (Jules Supervielle - 1884-1960)

Baralho a contragosto
Como cartas os rostos,
E todos me são caros.
Às vezes algum tomba,
Inútil procurá-lo.
Desaparece a carta.
Nada sei a respeito.
Entretanto era um rosto
Que eu amava, e tão belo.
Baralho as outras cartas.
O inquieto do meu quarto,
Ou seja, o coração,
A arder continua,
Não já por essa carta,
Por outra em seu lugar.
É um novo semblante.
E o baralho, completo,
Mas sempre desfalcado.
Eis tudo quanto sei,
E ninguém sabe mais.

* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade e constante do livro "Poesia Traduzida", editado pela Cosac Naify

Livre arbítrio (Jairo Cézar - 1977)

Glória a Deus pelo mundo e suas mazelas,
Glória a Deus pelas desigualdades dos povos,
Glória a Deus pelo desfazer das quimeras,
Glória a Deus pela fartura dos porcos.

Glória a Deus pela fome que usurpa,
Glória a Deus pela escassez da esperança,
Glória a Deus pela doença sem cura,
Glória a Deus pelo mal que amansa.

Glória a Deus pelos amores infames,
Glória a Deus pelo sorriso da injustiça,
Glória a Deus pelos estupros infantes,
Glória a Deus pelo ódio que atiça.

Glória a Deus pelas misérias sem nome,
Glória a Deus pela ausência de Deus,
Que não habita a igreja dos homens.

sábado, 29 de outubro de 2011

Eu não escrevo versinhos para o papai (Maira Parula)

eu não escrevo versinhos para o papai
embora ele tenha me ensinado que a
boa poesia deve ser como as azeitonas de Taggia,
não pode ter caroço,
e que todo poeta só é bom se ficar assando

devo confessar que nisso eu concordo com papai
a poesia sempre teve um pé na cozinha
uma cadeira que range
uma couve-flor que se rompe
a xícara lascada de uma avó morta

o que papai não sabe ou nunca reparou
é que foi com mamãe que aprendi a cozinhar
no caminho entre a pia e a beira do fogão
eu aprendi tudo da vida
enquanto ele olhava melancólico para a janela
e a faca sobre a mesa
em vez de ajudar com as panelas

eu não escrevo versinhos para o papai
porque hoje sei o que devo queimar
o que devo congelar
o que devo servir frio

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Carta a meu filho (Erich Kästner - 1899 - 1974)

Afinal, eu quisera ter um filho
Forte e inteligente como essas crianças de hoje.
Só uma coisa me falta para esse menino.
Falta-lhe apenas a mãe.

Não é qualquer moça que serve para esse fim.
Há longos anos eu a estou procurando.
A felicidade é mais rara que os feriados,
E tua mãe nada sabe ainda de nós, meu filho.

Mas um belo dia começas a existir,
E já me alegro por isso.
Aprendes a correr, aprendes a viver,
E o que daí resulta chama-se: uma existência.

A princípio, apenas gritas e gesticulas,
Até passares a outros atos,
Até que teu corpo e teus olhos cresçam
E compreendas o que é preciso compreender.

Quem começa a compreender já não entende mais nada
E olha estarrecido para o teatro do mundo.
No começo, criança necessita muito de mãe.
Mas quando ficares maior, precisarás de teu pai.

Quero levar-te às minas de carvão.
Quero mostrar-te os parques com palácios de mármore.
Tu me fitarás, sem compreender.
Mas eu vou te esclarecer, criança, e me calarei.

Quero ir contigo a Vaux e Ypres
E lá olhar o mar de cruzes brancas.
Ficarei quieto, nada insinuando.
Mas quando chorares, meu filho, eu estarei de acordo.

Não quero te dizer como vão as coisas,
Quero te mostrar como a coisa é.
Pois a razão só pode vencer por si mesma.
Quero ser teu pai, e não um profeta.

Se entretanto fores um homem como a maioria,
Apesar de tudo que te fiz ver,
Um homem como qualquer outro, fabricado em série,
Então jamais serás o que deve ser: meu filho.

* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade, cuja tradução consta da obra "Poesia Traduzida", editada em 2011 pela Cosac Naify

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Oração do gato (Carmen Bernos de Gasztold - 1919)


Senhor,
eu sou o Gato.
Não, precisamente,
que tenha alguma coisa a lhe pedir.
Não peço nada a ninguém.
Mas se por acaso o Senhor tivesse
aí nos celeiros do Paraíso
um ratinho branco
ou um pires de leite...
Sei de alguém que aprecia essas coisas.
O senhor vai amaldiçoar, um dia,
a raça canina?
Ah, nesse caso, eu diria:
                          Amém.

* Poema traduzido por Carlos Drummond de Andrade, cuja tradução consta da obra "Poesia Traduzida", editada em 2011 pela Cosac Naify

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O gato e o passarinho (Jacques Prévert - 1900-1977)

A aldeia escuta desolada
o canto da ave maltratada.
É o único pássaro da aldeia
e foi o único gato da aldeia
que o devorou pela metade.
A ave deixa de cantar,
o gato deixa de roncar
e de lamber o próprio focinho.
A aldeia faz ao passarinho
maravilhosos funerais,
e o gato, que foi convidado,
segue o caixãozinho de palha
onde o pássaro se amortalha,
conduzido por uma menina
que não para nunca de chorar.
- Se soubesse que isso te faria sofrer tanto,
diz-lhe o bichano,
eu o teria comido todo
e te contaria, depois,
que ele havia batido asas,
batido asas para o fim do mundo,
para um mundo tão longe
que ninguém nunca voltou de lá.
Tu sofrerias muito menos,
só um pouquinho de tristeza
e outro pouquinho de saudade.
Nunca devemos fazer
as coisas pela metade.

* Tradução do poema por Carlos Drummond de Andrade, constante do livro "Poesia Traduzida", editora Cosac Naify, ano de publicação 2011

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mulher ao espelho (Cecília Meireles - 1901-1964)

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram-se sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cada cidade pode ser outra (Mario Benedetti - 1920-2009)

Cada cidade pode ser outra
quando o amor a transfigura
cada cidade pode ser tantas
quantos amorosos a recorram

o amor passa pelos parques
quase sem vê-los mas amando-os
entre a festa dos pássaros
e a homilia dos pinheiros

cada cidade pode ser outra
quando o amor pinta os muros
e dos rostos que entardecem
a gente é o rosto do amor

o amor vem e vai e regressa
e a cidade é a testemunha
de seus abraços e crepúsculos
de suas bonanças e aguaceiros

e se o amor vai e não volta
a cidade cuida do seu outro
já que lhe sobram só o luto
e as estátuas do amor.

domingo, 23 de outubro de 2011

A menina, a avó e o pote de maionese... (Maíra Ramos)

     Nunca me dei bem com a morte. Em verdade, até acho que me dou um pouco pior que a média das pessoas. Nunca digo: "Fulano morreu ontem...". O verbo "morrer" é pouco (ou quase nunca) conjugado por mim. Prefiro o verbo "falecer". Aí digo: "Sicrano faleceu ontem". Mais suave, dá uma idéia de eternidade, como as coisas ligadas à morte devem ser.
     Uma das primeiras recordações da minha infância é a da minha avó paterna e um presente para mim: um lindo tapete com desenho de um trenzinho. Pois eu, do alto dos meus três anos de idade, gostava tanto do presente que passei a chamar a avó de "vó do tapete". E ela devia gostar da alcunha...
     Eis que um dia, já mais crescida, dei pela falta da "vó do tapete". Perguntei ao meu pai onde ela estava: "Virou poeira, minha filha!". E eu retruquei: "Pai, a gente vira poeira quando falece?" e ele respondeu: "Sim, todos nós viramos poeira quando morremos."
     Como eu gostava muito da minha avó e queria tê-la por perto, ao menos para a última despedida, pedi à minha mãe um vidro usado de maionese (daqueles aproveitáveis para as mais diversas coisas, após o uso original). Então, recolhia todas as poeiras da casa e as colocava dentro daquele pote de maionese, com tampa amarela ou laranja, já não me recordo mais. E ali estava minha avó, poeira do mundo, fazendo companhia e dando mais sentido aos meus dias.
     Durante muito tempo eu acreditei que a gente virava poeira quando morria. Hoje, sei que isso não ocorre, contudo, não sei o que nos acontecerá quando chegada a hora da partida. Só sei que o mundo era mais simples quando minha avó do tapete habitava meu quarto dentro de um vidro usado de maionese. Talvez tenha virado estrela...

sábado, 22 de outubro de 2011

Opinião (Valmir Viana - 1963)

Arte de sonhar tua boca faz cantar
o segredo do universo
te dou opinião ao segredo
desvendar pra se guardar
um sonhar.

A natureza deste mundo
eu corro e abro a janela
dos olhos bem te vi.

Na escola escolhi a ferida
cicatrizada pra melhor
te olhar.

Corpo belo doce mel mulher
olhos serenos do sucesso
dos olhos bem te vi...

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O rio (Manuel Bandeira - 1886-1968)


Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Poética (Vinícius de Moraes - 1913-1980)


De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Calendário (Eucanaã Ferraz - 1961)


Maio, de hábito, demora-se à porta,
como o vizinho, o carteiro, o cachorro.
Das três imagens, porém, nenhuma diz

do que houve, para meu susto, àquele ano.
O quinto mês pulou o muro alto do dia
como só fazem os rapazes, mas logo

pelos quartos e sala convertia o ar em águas
definitivamente femininas. Eu
tentava decifrar. Mas

deitou-se comigo e, então, já não era isso
nem seu avesso: a camisa azul despia
azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

de si mesmas, eu diria, e não sei ter
em conta senão que eram o que eram. Partiu
do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

Maio, maravilha sem entendimento,
demora-se à porta, como o vizinho,
o carteiro, o cachorro. Porém,

nenhuma das três imagens, tampouco
este poema, diz do que houve, para meu susto,
àquele ano.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

É tão pouco... (Ivan Junqueira - 1934)

É tão pouco o que podes, quase tanto
quanto um menino na erma imensidão,
o corpo sem valia, a alma em abandono,
os pés suspensos no infinito, o rosto
em lágrimas, o opresso e frágil coração.
É tão pouco o que podes, muito menos
do que uma pálida e fugaz recordação
ou os músculos crispados e ofegantes
às bordas do penhasco que galgaste
no esforço de uma inútil ascensão.
É tão pouco o que podes, é sequer
o que outros, menos hábeis, poderão.
Ou nem isso, essa raiz que se atrofia,
essa migalha que esfarinha em tua mão,
essa flor que não floresce nem sucumbe,
esse pássaro implume, essa insepulta
e agônica semente que plantaste em vão.

domingo, 16 de outubro de 2011

O outro (Gilberto Mendonça Teles - 1931)

Já não serei eu mesmo, serei outro
quando me virem segurando as horas
e desenhando pássaros barrocos
nas pétalas das conchas e das rosas.
Se, deslumbrado pela luz da aurora,
eu caminhar sem rumo, como um louco,
sabei que levo estrelas na memória
e me contemplo velho, sendo moço.
Diante dos homens gritarei comícios
e arrastarei por onde for o bando
que me seguir os passos indecisos.
E quando a noite vier rolando o medo,
eu dormirei nas pedras como um santo
e sonharei nas ruas como um bêbado.

sábado, 15 de outubro de 2011

O vidente (Manoel de Barros - 1916)

Primeiro o menino viu uma estrela pousada nas
pétalas da noite
E foi contar para a turma.
A turma falou que o menino zoroava.
Logo o menino contou que viu o dia parado em cima
de uma lata
Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra.
Ele disse: dava a impressão que a lata amparava o dia.
A turma caçoou.
Mas o menino começou a apertar parafuso no vento.
A turma falou: mas como você pode apertar
parafuso no vento
Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo
E continuou a apertar parafuso no vento.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

balada do impostor (Geraldo Carneiro - 1952)


sou um impostor, um dia saberão
que simulei tudo o que sempre fui.
sou uma ficção, meu sangue é só linguagem
meu sopro é uma explosão que vem de dentro
em forma de palavra.
quando já não for mais, serei eu mesmo.
enquanto tardo, trapaceio contra o tempo,
a máquina que vai me devorando,
e vou passando como tudo passa
em busca de uma graça que ultrapasse
o círculo da minha circunstância
o espelho que não seja senão o outro
esse que me habita e que me espreita
e, não sendo eu, me acata os meus espantos

criação e recreação (Geraldo Carneiro - 1952)

nos meus piores dias sou eu mesmo
nos melhores brinco de ser Deus
recrio o mundo à minha semelhança
faço castelos onde a vida nunca
                                          a vida sempre
                                          a vida

sou imperador devorador do espaço
nas aventuras em que me desvendo
eu   ave   nave   navegador

sonho que o mundo começou em mim
depois foi se inventando
o sol se desorbita ao meu redor

quando a bruma-sonho se dissipa
sobra o desejo da aurora
o ar da arquitetura já desfeita
o amor que se dilata feito o mar

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Modesto ofício (Luiz Martins da Silva - 1950)

Ah! Este meu pequeno ofício,
Que de longe nem se emparelha
Às mais variadas virações de meu pai...
Pois, são só suspiros e saudades, ai...

Ainda nem registrado em cartório,
Embora seja mais que nascimento,
Casamento, crescimento de filhos,
Um leão por dia, com direito às suas crias.

Ah! Meus doces caseiros,
Como diria Coralina, à beira do rio.
Pelo menos ela, de cor os tinha.

Eu os divago, depois os disperso,
Logo, em versos, deles me despeço.
São seus, agora, aqui e em Pirapora.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Adoção (Elisa Lucinda - 1958)

Não sei se te contei
mas há algum tempo sou minha
me adquiri num mercado
onde o escambo era da posse pela liberdade
me obtive numa dessas voltas da morte
me acolhi num desses retornos do inferno.
Dei banho, abrigo, roupas, amor enfim.
Adotei o meu mim
como quem se demarca e crava em si o mastro da terra à vista
a cheiro, a tato, a trato, a paladar e ouvido.
Não sei se te contei
me recebi à porta da minha casa
abracei, mandei sentar
Abracei eu mesma, destranquei a porta
que é preu sempre poder voltar.
Dei apenas o céu à sua legítima gaivota
Somos a sociedade
e ao mesmo tempo a cota
Visita e anfitriã
moram agora num mesmo elemento
juntas se ancoram
na viagem das eras
No novelo do umbigo
No embrião do centro
No colo do tempo.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Vocação do poeta (Murilo Mendes - 1901-1975)

Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

domingo, 9 de outubro de 2011

Nas ondas de uns cabelos... (Batista Cepelos - 1872-1915)


Soltos, ombros abaixo, os revoltos cabelos,
que te envolvem num longo e veludoso abraço;
e, como um rio negro, os seus negros novelos
rolam no vale em flor do teu brando regaço.

E, na louca embriaguez dos meus sentidos, pelos
cinco oceanos do sonho o meu roteiro faço,
a senti-los na mão, beijá-los e mordê-los,
até morrer de amor, sucumbir de cansaço!

E, pousando a cabeça em teu seio, que estua,
sinto um sono ligeiro, um sussurro de brisa,
que me suspende ao céu e pelo céu flutua...

E, num sonho feliz, como num mar profundo,
a minh'alma desliza, a minh'alma desliza,
como as naus de Colombo, à procura de um Mundo...

Os amigos (Luís Pimentel - 1953)

Nenga era tímido, não tinha sonhos.
Tadeu era sério, não tinha dentes.
Zé do Severo, coitado, comia terra.

Queriam crescer e ter aventuras,
correr pelos campos driblando perigos,
vestidos de Zorro, dragões da bondade.

Tadeu só queria casar com Marina.
Zé do Severo sonhava jogar na Bahia.
Nenga pensava em fazer concursos.

As horas dormiam na cidade morna.

Zé do Severo morreu de barriga inchada.
Tadeu não teve Marina, mas comprou dentadura.
Nega é bancário lá no fim do mundo.

Os amigos também perderam o meu bonde.

sábado, 8 de outubro de 2011

Os amantes sem dinheiro (Eugénio de Andrade - 1923-2005)

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Receita para arrancar poemas presos (Viviane Mosé - 1964)

A maioria das doenças que as pessoas têm
São poemas presos.
Abscessos, tumores, nódulos, pedras são palavras
calcificadas,
Poemas sem vazão.
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado.
Prisão de ventre poderia um dia ter sido poema.
Mas não.
Pessoas às vezes adoecem da razão
De gostar de palavra presa.
Palavra boa é palavra líquida
Escorrendo em estado de lágrima
Lágrima é dor derretida.
Dor endurecida é tumor.
Lágrima é alegria derretida.
Alegria endurecida é tumor.
Lágrima é raiva derretida.
Raiva endurecida é tumor.
Lágrima é pessoa derretida.
Pessoa endurecida é tumor.
Tempo endurecido é tumor.
Tempo derretido é poema
Você pode arrancar poemas com pinças,
Buchas vegetais, óleos medicinais.
Com as pontas dos dedos, com as unhas.
Você pode arrancar poemas com banhos
De imersão, com o pente, com uma agulha.
Com pomada basilicão.
Alicate de cutículas.
Com massagens e hidratação.
Mas não use bisturi quase nunca.
Em caso de poemas difíceis use a dança.
A dança é uma forma de amolecer os poemas,
Endurecidos do corpo.
Uma forma de soltá-los,
Das dobras dos dedos dos pés, das vértebras.
Dos punhos, das axilas, do quadril.
São os poema cóccix, os poemas virilha.
Os poema olho, os poema peito.
Os poema sexo, os poema cílio.
Atualmente ando gostando de pensamento chão.
Pensamento chão é poema que nasce do pé.
É poema de pé no chão.
Poema de pé no chão é poema de gente normal,
Gente simples,
Gente de espírito santo.
Eu venho do espírito santo
Eu sou do espírito santo
Trago a Vitória do espírito santo
Santo é um espírito capaz de operar milagres
Sobre si mesmo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Feitiçaria (Cecília Meireles - 1901-1964)


Não tinha havido pássaro nem flores
o ano inteiro.
Nem guerras, nem aulas, nem missas, nem viagens
e nem barca e nem marinheiro.

Nem indústria ou comércio, nem jornal nem rádio,
o ano inteiro!
Nem cartas nem modas. Tudo quanto havia
era o feitiço de um feiticeiro
que toldava o mundo e melancolia.

Chegaram agora pássaros e flores,
e de novo guerras, aulas, missas, viagens,
e marinheiros com remos e barcas
vêm saindo lá do horizonte.

Brotam de novo antigas imagens
das coleções de fotografias...
- moços com roupas de Caronte
e meninas iguais às Parcas.

Por isso é que se tem saudade
do tempo da feitiçaria.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

De pena em pena o amor atravessa as suas ilhas (Pablo Neruda - 1904-1973)

De pena em pena o amor atravessa as suas ilhas
e cria raízes que o pranto logo rega,
e ninguém pode, ninguém pode evitar os movimentos
do coração que passa silencioso e cruel.

Assim tu e eu procuramos um espaço, outro planeta
onde o sal não tocasse a tua cabeleira,
onde por minha culpa não houvesse dores,
onde sem agonia viva o pão.

Um planeta enredado de distância e de folhas,
um deserto, uma pedra cruel e desabitada,
com nossas próprias mãos queríamos construir

um ninho duro, sem danos, sem feridas, sem palavras,
e o amor não foi assim, mas uma cidade louca
onde as pessoas empalidecem nas varandas.

Oh que todo o amor propague em mim a sua boca (Pablo Neruda - 1904-1973)

Oh que todo o amor propague em mim a sua boca,
que não sofra um instante mais sem primavera,
à dor eu só vendi as minhas mãos,
agora, bem-amada, deixa-me com teus beijos.

Cobre com teu perfume a luz do mês aberto,
fecha as portas com a tua cabeleira,
e em relação a mim não te esqueças que se acordo e choro
é porque em sonhos sou apenas uma criança perdida

que entre as folhas da noite procura as tuas mãos,
o contacto do trigo que tu me comunicas,
um arroubo cintilante de sombra e de energia.

Oh, bem-amada, e nada mais que sombra
por onde me acompanhes em teus sonhos
e me digas a hora da luz.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O teu olhar (Florbela Espanca - 1894-1930)

Quando fito o teu olhar,
duma tristeza fatal,
dum tão íntimo sonhar,
penso logo no luar
bendito de Portugal!

O mesmo tom de tristeza
o mesmo vago sonhar,
que me traz a alma presa
às festas da natureza
e à doce luz desse olhar!

Se algum dia, por meu mal,
a doce luz me faltar
desse teu olhar ideal,
não se esqueça Portugal
de dizer ao seu luar

que à noite, me vá depor
na campa em que eu dormitar,
essa tristeza, essa dor,
essa amargura, esse amor,
que eu lia no teu olhar!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Laura (Guilherme de Santa Rita - 1859-1905)

Que estranho rir no lábio nacarado!
Que pérolas de luz no olhar lascivo!
Ressoa um beijo no teu colo altivo
por ti vendido bem e bem comprado!

E idealizei-te um ser imaculado!
O pedaço do céu, azul, estivo,
onde eu outrora quis estar cativo,
neste sonho de vida, atribulado!

Mas por que foi que assim no devaneio
banhei a fantasia adormecida,
se eu sei que vendes, a quem compra, um seio?

Talvez... lembrei-me, que uma vez na vida,
quando hauriste da afronta o cálix cheio,
tu choraste uma lágrima sentida!

* Quarto soneto do quarteto intitulado Laura.

Meus olhos que por alguém (Antonio Boto - 1902-1959)

Meus olhos que por alguém
deram lágrimas sem fim
já não choram por ninguém
- basta que chorem por mim.
Arrependidos e olhando
a vida como ela é,
meus olhos vão conquistando
mais fadiga e menos fé.
Sempre cheios de amargura!
Mas se as coisas são assim,
chorar alguém - que loucura!
- Basta que eu chore por mim.

domingo, 2 de outubro de 2011

Formoso Tejo meu (Rodrigues Lobo - 1580-1622)

Formoso Tejo meu, quão diferente
te vejo e vi, me vês agora e viste:
turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
a quem teu largo campo não resiste;
a mim trocou-me a vista em que consiste
o meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,
sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera
que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca primavera:
tu tornarás a ser quem era de antes,
eu não sei se serei quem de antes era.

* Soneto que também se atribui a Camões

sábado, 1 de outubro de 2011

Fosse eu apenas... (Fernando Pessoa - 1888-1935)

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
uma coisa existente sem viver,
noite de vida sem amanhecer
entre as sirtes do meu dourado assomo...

Fada maliciosa ou incerto gnomo
fadado se houvesse de não pertencer
meu intuito gloríola com ter
a árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente
escrita nalgum livro insubsistente
de um poeta antigo, de alma em outras gamas,

mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
morrendo entre bandeiras desfraldadas
na última tarde de um império em chamas...