terça-feira, 21 de outubro de 2014

Antes de nascer, eu ouvia (Antônio Miranda - 1940)

Antes de nascer, ouvia e gravava,
sem entender: gritos, buzinas, canções.
Sem consciência do mundo, eu gravava.

Sons em movimento, eu inteligia?
era o alimento que vinha, ou tardava,
anunciado pelos passos, predizia?

Eu me saciava e não sabia, mas
havia, sim, havia, o esperar, e
uma certeza de que algo viria.

E eu me alimentava, sem comer;
sem saber, eu me satisfazia.
E ouvia, sim, eu ouvia e entendia.

Faço a regressão, vou em busca
do entendimento que não tinha,
mas sabia, sem saber, eu sabia.

Tento decifrar o que ficou gravado.
Não sei o que é, Mas o que não sei
molda tudo o que sei, e o que serei.

Minha mãe triste, — eu sentia!—,
minha mãe aflita estampada
em minhas entranhas, mãe-filho.

Ainda estamos juntos, depois da ida
num eco sem som, decifrando sons
extintos, indeléveis, tatuados na memória.

Memória física, em códigos que
eu não domino, que me domina.
Como Champolion, tento entender-me.

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