quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Sítio (Cláudia Roquette-Pinto - 1963)

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopéia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
- mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: - Pai!
acho que um bicho me mordeu! assim
que a bala varou sua cabeça?

Um comentário:

  1. “Mas como tratar a violência e não apenas incluí-la no poema? Claudia Roquette-Pinto não se furta à dureza dos fatos, interessada que está no estudo do medo como matéria de uma poesia que tenha pertinência para o seu tempo. Está interessada em figurar o império de uma violência indeterminada e disseminada, que molda o ritmo do cotidiano, colonizando a cidade, deturpando o sistema emocional de seus habitantes.” O que a crítica Iumna Simon afirma serve a uma leitura do poema de Claudia Roquette Pinto? Por quê? Quais versos do poema ilustrariam melhor as palavras da crítica?

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