sábado, 30 de abril de 2011

Acrobata da dor (Cruz e Sousa - 1861-1898)

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta...

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Pátio secreto (Jorge Wanderley - 1938-1999)

Vejo-o talvez em sonho, quando nada
Parece mal: o mesmo pátio, as sombras,
O chafariz envelhecido, a pátina
Que a algum lugar de mármore responde.

O muro, o musgo, a vinha, o abandono
Da pedra e a quase fria madrugada
Passada em névoa ao cinzento do outono,
O sono que flutua em tudo, em nada.

Tudo está morto e vivo pela imagem,
Recanto, quadro, música, memória
Que visito dormindo e sem matéria.

Outros o viram, também. De passagem
Deixaram algo oculto a sua história,
Marca secreta, assinatura etérea.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Enquanto quis Fortuna que tivesse (Camões 1524-1580)

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que avisso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho com tormento,
para que seus enganos não disesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entedimento de meus versos.

Pois meus olhos não cansam de chorar (Camões 1524-1580)

Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas, que não cansam de cansar-me;
pois não abranda o fogo em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar
a parte donde não saiba tornar-me;
nem deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto me a voz fraca não deixar.

E se nos montes, rios ou em vales,
piedade mora, ou dentro mora Amor
em feras, aves, plantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males,
e curem sua dor com minha dor;
que grandes mágoas podem curar mágoas.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Cantiga para não morrer (Ferreira Gullar - 1930)

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Beijos mortos (Martins Fontes - 1884-1937)

Amemos a mulher que não ilude,
e que, ao saber que a temos enganado,
perdoa por amor e por virtude,
pelo respeito ao menos do passado.

Muitas vezes, na minha juventude,
evocando o romance de um noivado,
sinto que amei outrora quanto pude,
porém mais deveria ter amado.

Choro. O remorso os nervos me sacode.
E, ao relembrar o mal que então fazia,
meu desespero inconsolado explode.

E a causa dessa horrível agonia,
é ter amado, quanto amar se pode,
sem ter amado quanto amar devia.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O poema (Ivan Junqueira - 1934)

Que será o poema,
essa estranha trama
de penumbra e flama
que a boca blasfema?

Que será, se há lama
no que escreve a pena
ou lhe aflora à cena
o excesso de um drama?

Que será o poema:
uma voz que clama?
Uma luz que emana?
Ou a dor que o algema?

Flor amarela (Ivan Junqueira - 1934)

Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela,
o menino que você era.

Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.

domingo, 24 de abril de 2011

Pregão turístico do Recife (João Cabral de Melo Neto - 1920-1999)

Aqui o mar é uma montanha
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.

Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.

Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.

E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua macha quase nula,

e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de aprodecer
vidas inteiras a fio,

podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.

sábado, 23 de abril de 2011

Psicologia de um vencido (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Eterna mágoa (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se tranforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Soneto (Álvares de Azevedo - 1831-1852)

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre as nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Pequei, Senhor... (Gregório de Matos - 1623-1696)

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
da vossa alta clemência me despido;
porque quanto mais tenho delinquido,
vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vós irar tanto um pecado,
a abrandar-vos sobeja um só gemido:
que a mesma culpa, que vos há ofendido,
vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha, e já cobrada,
glória tal e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na sacra história,

eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
cobrai-a; e não queiras, pastro divino,
perder na vossa ovelha a vossa glória.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Esta é a casa, o mar e a bandeira (Pablo Neruda - 1904-1973)

Esta é a casa, o mar e a bandeira.
Errávamos por outros longos muros.
Não encontrávamos a porta nem o som
depois que partimos, como alguém que morreu.

E por fim a casa abre o seu silêncio,
ao entrar pisamos o abandono,
os ratos mortos, o adeus vazio,
a água que chorou nos canos.

Chorou, chorou a casa noite e dia,
gemeu com as aranhas, entreaberta,
debulhou-se do alto dos seus olhos negros,

e agora de repente devolvemo-lhes a vida,
povoamo-la e não nos reconhece:
precisa florir e não se lembra.

Lembrarás aquela encosta caprichosa (Pablo Neruda - 1904-1973)

Lembrarás aquela encosta caprichosa
a que os aromas palpitantes treparam,
de quando em quando um pássaro vestido
com água e lentidão: traje de inverno.

Lembrarás os dons da terra:
irrascível fragância, lama de ouro,
ervas do matagal, loucas raízes,
sortílegos espinhos como espadas.

Lembrarás o ramo que trouxeste,
ramos de sombra, de água e de silêncio,
ramo como uma pedra com espuma.

E aquela vez foi como nunca e sempre:
vamos ao sítio onde nada se espera
e achamos tudo o que nos está esperando.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vendo a noite (Ferreira Gullar - 1930)

Júpiter, Saturno.
De dentro de meu corpo
estou vendo
o universo noturno.

Velhas explosões de gás
que meu corpo não ouve:
vejo a noite que houve
e não existe mais -

a mesma, veloz, em Tróia,
ao rosto de Heitor
- hoje na pele de meu rosto
no Arpoador.

Não há vagas (Ferreira Gullar - 1930)

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
 está fechado:
"não há vagas"
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

terça-feira, 19 de abril de 2011

Ir (Jorge Wanderley - 1938-1999)

Já quase me convocam e retorno
sem saber bem do que me trouxe aqui.
Não aprendi as árvores que vejo
e nem às que imagino me resigno.

Talvez o sofrimento esteja nisso,
nessas distâncias entre o verde e o sonho.
Do que disponho, o compromisso foge,
foge a linguagem, vai negada a rosa.

Vou sem ter dito, vou sem ter ouvido
e nada em minha nave me compensa.
Fui nesta fala ardente e silencioso,

no entendimento fui ânsia e fracasso:
ah, quem tanto pudesse que fartasse
de voz e de palavra essa partida.

Como se (Jorge Wanderley - 1938-1999)

Como se ficassem menos reais
as coisas, quando te incluem:
o amor; as fotografias;
esta parte do planeta
em que teus fantasmas te atravessam
sem ver que estás ali.

Como se tudo o que não vives, sonhas
e o sonho se sabe sonho:
- cadáver, não - metáfora
adiada.

Como é do sonho, nele
és autor e personagem,
pele de herói e as formas laterais:
dentro, o vazio.

O fruto ausente, essência negada.
Não cabem mais a sátira, a ironia
e nem o pânico.

Midas avesso, o que tocas degenera.
Deves te esgueirar entre as coisas para
poupá-las.
Mas será que tudo isto
ainda tem importância, agora que és um velho?

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Talvez o vento saiba (Ivan Junqueira - 1934)

Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

Poema nascido entre as cinzas (Ivan Junqueira - 1934)

Não, não chamemos ninguém.
Tampouco façamos barulho.
Essa algazarra, esse zunzum
de nada valerão agora:
o que há pouco era vertigem
em pó se desmanchou.
Fiquemos, pois, imóveis.
E observemos ali, na penumbra,
onde meigamente um todo se dissipa,
as dádivas esquecidas pelo tempo.
São poucas: um fragmento
cloroformizado de aurora, um trecho
agonizante de magia, um afago
de suor evaporado.
Guardemos as dádivas
e, no abismo que desabrocha
- rosa da madrugada -
em nossa carne deserta, sepultemos
a espessa, subterrânea nostalgia
deste pálido carnaval feito de ver.

domingo, 17 de abril de 2011

Belo belo (Manuel Bandeira - 1886-1968)

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Mentem os que disseram que perdi a lua (Pablo Neruda - 1904-1973)

Mentem os que disseram que perdi a lua,
os que profetizaram meu futuro de areia,
asseveraram tantas coisas com línguas frias:
quiseram proibir a flor do universo.

"Nunca mais cantará o âmbar rebelde
da sereia, tem apenas o povo."
E mastigavam seus contínuos papéis
patrocinando o olvido para a minha guitarra.

Atirei-lhes aos olhos as lanças deslumbrantes
do nosso amor cravando teu coração ao meu,
reclamei o jasmim que as tuas pegadas deixavam,

perdi-me de noite, sem luz, sob as tuas pálpebras
e, quando a claridade me envolveu,
nasci de novo, dono das minhas próprias trevas.

Quantas vezes, amor, te amei sem te ver e talvez... (Pablo Neruda - 1904-1973)

Quantas vezes, amor, te amei sem te ver e talvez sem me lembrar,
sem reconhecer teu olhar, sem olhar-te, centáurea,
em regiões hostis, num meio-dia ardente:
tu eras só o aroma dos cereais que amo.

Vi-te talvez, imaginei-te ao passar erguendo uma taça
em Angol, à luz da lua de Junho,
ou eras tu a cintura daquela guitarra
que toquei nas trevas e soou como o mar desmedido.

Amei-te sem o saber, e procurei a tua memória.
Nas casas vazias entrei com a lanterna para roubar o teu retrato.
Mas eu já sabia como eras. De repente

enquanto ias comigo toquei-te e a minha vida parou:
estavas diante de mim, reinando sobre mim, e ainda reinas,
Como fogueira nos bosques, o fogo é o teu reino.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Transit (Artur Azevedo - 1855-1908)

Tu és dona de mim, tu me pertences,
e, neste delicioso cativeiro,
não queres crer que, ingrato e bandoleiro,
possa eu noutra pensar, ou noutro penses.

Doce cuidado meu, não te convences
de que tudo na terra é passageiro,
frívolo, fútil, rápido, ligeiro,
e a pertinácia do erro teu não vences!

Num belo dia - hás de tu ver - desaba
esta velha afeição, funda e comprida,
que tanta gente nos inveja e gaba...

Choras? Para que lágrimas, querida?
Naturalmente o amor também se acaba,
como tudo se acaba nesta vida.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Enganei-me, enganei-me - paciência! (Tomás Antônio Gonzaga - 1744-1807)

Enganei-me, enganei-me - paciência!
Acreditei as vozes, cri, Ormia,
que a tua singeleza igualaria
à tua mais que angélica aparência.

Enganei-me, enganei-me - paciência!
Ao menos conheci que não devia
pôr nas mãos de uma externa galhardia
o prazer, o sossego e a inocência.

Enganei-me, cruel, com teu semblante,
e nada me admiro de faltares,
que esse teu sexo nunca foi constante.

Mas tu perdeste mais em me enganares:
que tu não acaharás um firme amante,
e eu posso de traidoras ter milhares.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Dois e dois: quatro (Ferreira Gullar - 1930)

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

Traduzir-se (Ferreira Gullar - 1930)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A reconstrução (Mário Faustino - 1930-1962)

(...)
E nos irados olhos das bacantes
Finalmente descubro quem procuro.
Não eras tu, Poesia, meras aramas,
Pura consolação de minha luta.
Nem eras tu, Amor, meu camarada,
Às costas me levando, após a luta.
Procurava-me a mim, e ora me encontro
Em meu reflexo, nos olhares duros
De ébrios que me fuzilam contra o muro
E o perdão de meu canto. Sobre as nuvens
Defronte mãos escrevem numa estranha,
Antiquíssima língua estas palavras
Que afinal compreendo: toda vida
É perfeita. E pungente, e raro, e breve
É o tempo que me dão para viver-me,
Achado e precioso. Mas saúdo
Em mim a minha paz final. Metade
Infame de homem beija os pés da outra
Diva metade, enquanto esta se curva
E retribui, humilde, a reverência.
A serpente tritura a própria cauda,
O círculo de fogo se devora,
Arrasta-se o cadáver bem ferido
Para fora do palco:
este cevado
Bezerro justifica minha vida.

A uma senhora natural do Rio de Janeiro (Basílio da Gama - 1740-1795)

Já, Marfiza cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Qu'inda te espero ver, por causa delas,
Arrependida de ter sido ingrata.

Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrêlas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d'oiro converter-se em prata.

Pois se sabes que a tua formosura
Por fôrça há de sofrer da idade os danos.
Por que me negas hoje esta ventura?

Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco, a flor dos anos.

domingo, 10 de abril de 2011

Soneto XX (Sá de Miranda - 1481-1558)

O sol é grande, caem com calma as aves
Em tal sazão que soía de ser fria.
Esta água que cai do alto acordar-me-ia
De sono não, mas de cuidados graves.

Oh cousas tôdas vãs, tôdas mutáveis,
Qual é o coração que em vós confia?
E passa um dia assi, passa outro dia,
Incertos muito mais que o vento as naves?

Eu já vira aqui sombras, vira flôres,
Eu vira fruita já, verde e madura;
Ensordecia o cantar dos ruiseñores!

Agora tudo é sêco e de mistura;
Também mudando-me eu, fiz outas côres.
E tudo o mais renova: isto é sem cura.

Quem vê, Senhora, claro e manifesto (Camões 1524-1580)

Quem vê, Senhora, claro e manifesto
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já não me fica mais de resto.

Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha a bem-aventurança
o dar-vos quanto tenho e quanto posso
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

sábado, 9 de abril de 2011

As belas meninas pardas (Alda Lara - 1930-1962)

As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.

Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são
todos os dias.

E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, trás desenganos...

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

Nos passeios de domingo,
andam sempre bem trabajadas.
Direitinhas. Aprumadas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada
(Parecem mal rir na rua!...)

E nunca viram a lua,
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

E desejam, sobretudo, um casamento decente...

O mais, são histórias perdidas...
Pois que importam outras vidas?...
outras raças?..., outros mundos?...
que importam outras meninas,
felizes, ou desgraçadas?!...

As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (Camões 1524-1580)

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já foi coberto de neve fria,
e, em mim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se a cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.

Busque Amor novas artes, novo engenho (Camões 1524-1580)

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo constrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e doi não sei porquê.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

In extremis (Olavo Bilac - 1865-1918)

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! de um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
A arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...

Eu, com o frio a crescer no coração, - tão cheio

De ti até no horror do derradeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se  amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! a delícia da vida!

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Quando eu morrer quero as tuas mãos... (Pablo Neruda - 1904-1973)

Quando eu morrer quero as tuas mãos nos meus olhos:
quero que a luz e o trigo das tuas mãos amadas
passem uma vez mais sobre mim a sua frescura:
que sintam a suavidade que mudou o meu destino.

Quero que vivas enquanto eu, dormindo, te espero,
quero que os teus ouvidos continuem a ouvir o vento,
que sintas o perfume do mar que ambos amamos
e continues a pisar a areia que pisamos.

Quero que tudo o que amo continue vivo
e a ti amei-te e cantei-te sobre todas as coisas,
por isso, ó florida, continua a florir,

para que alcances tudo o que o meu amor te ordena,
para que a minha sombra passeie pelos teus cabelos,
para que assim conheçam a razão do meu canto.

Peles (Felipe Fortuna - 1963)

É sempre assim tua carícia:
dedos de abertas superfícies;
corpo de pele que respira;
a palavra suor: a vida.

Carícia de metal-pelúcia,
duas placas plangentes que
patinam sobre as asperezas
quando as asperezas se deitam.

Carícia que arranha a loucura
Com as unhas; com saudade; arde.
Só nasci para morrer nisso;
palavra alguma chega perto.

Feita de carne e de silêncio,
de ritmo lento e de segredo,
sinto em ferro em brasa o braço a
perna o cabelo desfazendo

O que a carícia vai fazendo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Guardar (Antonio Cicero - 1945)

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

É preciso voar neste tempo, para onde (Pablo Neruda - 1904-1973)

É preciso voar neste tempo, para onde?
Sem asas, sem avião, voar sem dúvida:
já os passos passaram sem remédio,
não levantaram os pés do viajante.

É preciso voar a cada instante como
as águias, as moscas e os dias,
é preciso vencer os olhos de Saturno
e implantar ali novos sinos.

Já não bastam sapatos nem caminhos,
já não serve a terra aos errantes,
as raízes já atravessaram a noite,

e tu aparecerás em outra estrela
decididamente transitória,
em papoila enfim convertida.

O meu condado (Antonio Nobre - 1867-1900)

No campo azul da alada fantasia
Edifiquei outr'ora, por meu mal,
Castelos de oiro, esmalte e pedraria,
Torres de lápis-lazúli e coral.

N'uma extensão de léguas, não havia
Quem possuísse outro domínio igual:
Tão belo, assim tão belo, parecia,
O território de um senhor feudal...

Um dia (não sei quando, nem sei d'onde),
Um vento agreste de indiferença e spleen
Lançou por terra, ao pó que tudo esconde,

O meu condado - o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso conde,
N'aquela idade em que é conde assim...

domingo, 3 de abril de 2011

Um exemplo de invisibilidade social: mea culpa (Maíra Ramos)

Há muito tempo venho pensando sobre o tema e em como essa invisibilidade se faz presente em nossas vidas, principalmente nos grandes centros urbanos, onde o ritmo apressado nos leva, invariavelmente, a esquecer de olhar o outro.

Venho aqui contar uma história real, de um trabalhador da minha super quadra, em Brasília. Faço mea culpa, pois, embora o admire de longe, não tive a coragem, ainda, de conversar com ele, saber seu nome ou mesmo sua história.

O senhor aparenta ter, já, uns sessenta anos. Talvez não tenha toda essa idade. No entanto, para quem vive de sol a sol, o tempo deixa marcas mais profundas na pele, o que acaba por lhe dar mais anos do que efetivamente venha a ter. Ele varre a quadra: isso inclui retirar as folhas que as muitas árvores teimam em jogar no chão, limpar o parquinho infantil e varrer o piso acimentado. Chega bem cedo para fazer o seu trabalho. Está sempre de bom humor, ao menos é o que deixa transparecer para quem procura ver.

Sou uma das poucas pessoas que lhe deseja bom dia. Queria fazer mais, talvez conversar um pouco, ouvir o que esse senhor tem a dizer ou mesmo partilhar do seu silêncio, se as palavras não puderem ou não quiserem sair.

Esse senhor não deve ter grande formação acadêmica, pessoa de poucos estudos, a quem, quiçá, esse seja o mais importante emprego que poderia almejar. Talvez não... Como saber?

Bom, o fato é que mesmo sem nada conhecer a respeito da vida desse trabalhador, admiro-o em silêncio, do conforto do meu amplo apartamento. Às vezes me pego a olhá-lo e me vejo repleta de um sentimento bom que não sei explicar, pois me é diferente de tudo que já senti anteriormente. Percebo, à distância, a serenidade do seu trabalho, em como, com graça, ele recolhe as flores e folhas caídas, em como o lixo é juntado, quase que religiosamente, nos sacos pretos...

É certo que as folhas caem todos os dias e ele, sabedor de tal fato, vem, diariamente, exercer com zelo o seu ofício. De manhãzinha chega e só se retira quando o céu dá sinal de que a noite se avizinha. A maioria de nós passa por esse trabalhador sem o enxergar; alguns têm pressa, mas a maior parte simplesmente não enxerga a pessoa que mantém limpo o chão onde nossos pés pisam.

Já faz umas semanas que não vejo, de minha janela, o senhor. Foi substituído por um rapaz jovem, que não desenvolve, com a mesma graça, o trabalho. Tenho sentido falta dele. Quero acreditar que essa ausência seja só por um período de férias. Frequentemente me ponho a olhar pela janela, saudosa de uma pessoa que nem conheço e que, mesmo sem saber, faz parte dos meus dias. Invisível para muitos e exemplo de perseverança para mim...

sábado, 2 de abril de 2011

Casamento (Adélia Prado - 1935)

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Ao longe os barcos de flores (Camilo Pessanha - 1867-1926)

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, de carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há de remi-la?
Quem sabe a dor que em razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Saberás que não te amo e que te amo (Pablo Neruda - 1904-1973)

Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

O morcego (Augusto dos Anjos - 1884-1914)


Meia-noite. Ao me quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.


"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!


Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!


A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!