quinta-feira, 30 de junho de 2011

Adesão (Aloísio de Carvalho - 1866-1942)

Eu adiro, tu aderes, ele adere.
Todos nós aderimos prontamente,
a questão é ficar comodamente,
sem perder os proventos que aufere.

O que se fez, está feito. Derramar
sangue, por causa disto, é insensatez,
desde que, para mostrarmos altivez,
basta a prosa da sala de jantar.

Quem tem mulher e filhos, meu amigo,
não ser prejudicado ao mais prefere.
Vir pra rua brigar - não é consigo;

em conflitos assim não interfere;
por isso, nos momentos de perigo,
eu adiro, tu aderes, ele adere.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Quando olho para mim... (Fernando Pessoa - 1888-1935)

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
que me extravio às vezes ao sair
das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
pertencem ao meu modo de existir,
e eu nunca sei como hei de concluir
as sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? Serei

tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Ausente, pensativo, solitário (Estêvão Rodrigues de Castro - 1559-1637)

Ausente, pensativo, solitário,
como se vos tivera ali presente,
dou e tomo as razões ousadamente
firme em amor, em pensamentos vário.

Quando venho ante vós com temerário
fervor renovo n'alma juntamente
quantos cuidados tive estando ausente,
que tudo em tal aperto é necessário.

Uns aos outros se impedem na saída
e querem cometer e não se abalam,
e vou para falar e fico mudo.

Porém, meus olhos, minha cor perdida,
meu pasmo, meu silêncio, por mim falam,
e não dizendo nada, digo tudo.

O pássaro incubado (Cacaso - 1944-1987)

O pássaro preso na gaiola
é um geógrafo quase alheio:
Prefere, do mundo que o cerca,
não as arestas: o meio.

É isso que o diferencia
dos outros pássaros: ser duro.
Habita cada momento
que existe dentro do cubo.

Ao pássaro preso se nega
a condição acabado.
Não é um pássaro que voa:
É um pássaro incubado.

Falta a ele: não espaços
nem horizontes nem casas:
Sobra-lhe uma roupa enjeitada
que lhe decepa as asas.

O pássaro preso é um pássaro
recortado em seu domínio:
Não é dono de onde mora,
nem mora onde é inquilino.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Algazarra (Ana Cristina Cesar - 1952-1983)

a fala dos bichos
é comprida e fácil:
miados soltos
na campina;
águias
hidráulicas
nas pontes;
na cozinha
a hidra espia
medrosas as cabeças;
enguias engolem
sete redes
saturam de lombrigas
o pomar;
no ostracismo
desorganizo
a zooteca
me faço de engolida
na arena molhada do sal
da criação;
o coração só constrói
decapitado
e mesmo então
os urubus
não comparecem;
no picadeiro seco agora
só patos e cardápios
falam ao público

Samba-canção (Ana Cristina Cesar - 1952-1983)

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone - taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

sábado, 25 de junho de 2011

Pó (Pedro Mexia - 1972)


Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Post-card (Inês Lourenço - 1942)

Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos com a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Detestam coleiras, gaiolas, amparos
de casota, ausência de jardins
e adornos de penas alheias. E por este divino
despojamento recebem, às vezes,
algum milho displicente dádiva
de crianças para a fotografia, ou de benígnos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam
a socorrer os antiquíssimos (e terrestres) gatos
vadios. Gatos da minha infância. Dos muros,
das traseiras, dos quintais - o Sindbad, o Pardoca - com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços de pedra onde levavam asas
e entre todos assoma, por instantes,
a decaída aliança entre o Céu e a Terra.

Aviso aos náufragos (Paulo Leminski - 1944-1989)

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símblo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se dia ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Oca do mundo (Waly Salomão - 1944-2003)

dia sim dia não
noite não noite sim
o mesmo pesadelo
e o marasmo do seu padrão

a floresta cantante nos provocava calafrios
todos os sentenciados eram pendurados nos ganchos
uivos e guinchos e gritos e homens pensos como jacas maduras
verrugas dos sentidos dedurados nos quatro pontos cardeais
caimãs simulavam pirogas
tucanos morcegavam rasantes
corujas e bacuraus invocavam arrepios
abraços de tamanduá-açu
bigornas de aço de arapongas
cataratas desfocavam o cruzeiro do sul
painéis de capoeiras
e blocos de matas desciam cipós de circuitos fechados
olheiros do comando de macaco-prego
manipulavam as glandes das suas pirocas
como se fossem câmaras de video-vigilância
floresta cantante inenarrável
cuja nesga narrável não figura nunca nada de verossímil

dia sim dia não
noite não noite sim
o mesmo pesadelo
e o marasmo do seu padrão

Olho de lince (Waly Salomão - 1944-2003)

quem fala que sou esquisito hermético
é porque não dou sopa estou sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é estranho
                                    fulano sicrano beltrano
seja pedra seja planta seja bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre à minha volta
ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
experimento invento tudo nunca jamais me iludo
quero crer no que vem por aí beco escuro
me iludo passado presente futuro
                                     urro arre i urro
viro balanço reviro na palma da mão o dado
                                     futuro presente passado
tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo
é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão
e na sequência de diferentes naipes
                                      quem fala de mim tem paixão

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Ditoso seja aquele que somente (Camões 1524-1580)


Ditoso seja aquele que somente
se queixa de amorosas esquivanças;
pois por elas não perde as esperanças;
de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,
não sente mais que a pena das lembranças;
porque, ainda que se tema de mudanças,
menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado
onde enganos, desprezos e isenção
trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
de erros em que não pode haver perdão,
sem ficar n'alma a mágoa do pecado.

terça-feira, 21 de junho de 2011

As pessoas sensíveis (Sophia de Mello Breyner Andersen - 1919-2004)

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

Aquele que partiu (Sophia de Mello Breyner Andersen - 1919-2004)

Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.

Ele não ficou para conosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto
Intacta é a sua ausência
Como a estátua dum deus
Poupada pelos invasores duma cidade em ruínas

Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo

Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento

E que ninguém repita o seu nome proibido.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O cofre (Ivan Junqueira - 1934)

Um cofre apenas sobre a terra
e o rosto antigo, em véus imerso,
de uma donzela que o trouxera
em suas mãos de névoa e sépia.

Um cofre (o fel de seu mistério)
sepulto sob o musgo e as messes,
e essa donzela que viera
desde os confins, canção submersa,

tocata e fuga sobre teclas
de um cravo já sem pétalas,
mas cujo espinho ainda te fere
por entre as frestas do pretérito.

Um cofre é tudo quanto resta
a quem o leva, como um féretro,
por pátios, becos e vielas,
rumo ao secreto cemitério;

é tudo (nada) o que apetece
a quem dentro de si o enterra,
sem flores ou piedosa prece
que o encomende à vida eterna,

sem nenhum verso que o celebre
ou lhe abra as pálpebras de ferro
para que ali um sonho medre
dentro do sono que o encarcera.

Um cofre apenas, os ciprestes
de um adro arcaico onde estiveste,
quando fremia essa donzela
à tua espera. E não vieste. 

domingo, 19 de junho de 2011

Ah, um soneto... (Fernando Pessoa - 1888-1935)

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...

sábado, 18 de junho de 2011

Oração a Nossa Senhora da Boa Morte (Manuel Bandeira - 1886-1968)

Fiz tantos versos a Teresinha...
Versos tão tristes, nunca se viu!
Pedi-lhe coisas. O que eu pedia
Era tão pouco! Não era glória...
Nem eram amores... Nem foi dinheiro...
Pedi apenas mais alegria:
Santa Teresa nunca me ouviu!

Para outras santas voltei os olhos.
Porém as santas são impassíveis
Como as mulheres que me enganaram.
Desenganei-me das outras santas
(Pedi a muitas, rezei a tantas)
Até que um dia me apresentaram
A Santa Rita dos Impossíveis.

Fui despachado de mãos vazias!
Dei volta ao mundo, tentei a sorte.
Nem alegrias mais peço agora,
Que eu sei o avesso das alegrias.
Tudo que viesse, viria tarde!
O que na vida procurei sempre,
- Meus impossíveis de Santa Rita, -
Dar-me-eis um dia, não é verdade?
Nossa Senhora da Boa Morte.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Poema desprezível (Nicolas Behr - 1958)

eu gosto de você porque você deixa
que eu te use que eu te exiba
como um troféu com um trunfo

eu gosto de você porque você finge
que gosta de mim que me aceita
quando no fundo sei que me odeia

eu gosto de você porque você sabe
que sou machista
egoísta e você nem liga masoquista

eu gosto de você
porque você acha meus
poemas incríveis quando
sabemos são sofríveis

eu gosto de você
porque não consigo pensar em você

se pensasse talvez te desprezasse

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Pseudo-poeta ecumênico (Jairo Cézar - 1977)

Ah! Se soubesse eu poetar.
Poetaria não as belas coisas,
Mas as mazelas, as pestes, as doenças.
Musicaria dissabores, tristezas e as crenças
Mais esdrúxulas e as dores mais intensas.

Em minha lira caberiam só feiúras.
Ódio, rancor, traição e sem candura
Versificaria os filhos do horror, dos estupros
E da'margura.

Poria em rima todo corpo putrefato
Que se encontra no universo.
E uma vez meu livro aberto,
Libertar-se-ia toda podridão que já é fato.

Metrificaria o imetrificado.
Toda bruxaria, transgressão e o pecado.
Por fim, cuspiria no amor, na beleza, no leitor
E no sagrado.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Primeiros anos (Ferreira Gullar - 1930)

Para uma vida de merda
nasci em 1930
na Rua dos Prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas formigas carregando espadas
caranguejeiras
                     que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
gritava asfixiado
           longe longe do mar
           (longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam claras sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
                            E do meu quarto
eu ouvia o século XX
farfalhando nas árvores da quinta.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Família (Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)

Três meninos e duas meninas
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.

Epigrama para Emilio Moura (Carlos Drummond de Andrade - 1902-1987)

Tristeza ver a tarde cair
como cai uma folha.
(No Brasil não há outono
mas as folhas caem).

Tristeza comprar um beijo
como quem compra um jornal.
Os que amam sem amor
não terão o reino dos céus.

Tristeza de guardar um segredo
que todos sabem
e não contar a ninguém
(que esta vida não presta).

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Deus (Felipe Fortuna - 1963)

Vamos imaginá-lo na amplitude do tempo:
traremos até aqui
a sua rotação.

Vamos imaginá-lo
lógico e indevassável,
distante, indeterminado:
sua cor, a cor de um pulo.

Vamos imaginá-lo
doença, catástrofe, bomba:
sua presença terrível
ao crepitar num velório.

Vamos imaginá-lo
nas esquecidas gravuras,
em longínquas aquarelas:
não o corpo, o gesto.

Vamos imaginá-lo um ímã
cuja atração é nosso choro
e nos passos que deixam marcas
na pedra de sua história.

Vamos imaginá-lo
            de repente
sobre um cavalo
            de repente.

domingo, 12 de junho de 2011

Soneto de contrição (Vinícius de Moraes - 1913-1980)

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.

Soneto de véspera (Vinícius de Moraes - 1913-1980)

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrima terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer porque chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou - fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

sábado, 11 de junho de 2011

Versos a um coveiro (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
- Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!

Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!

Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Renúncia (Manuel Bandeira - 1886-1968)

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Meu amor, meu Amado, vê... (Florbela Espanca - 1894-1930)

Meu amor, meu Amado, vê... repara:
Pousa os teus lindos olhos de oiro em mim,
- Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara
Para nunca os contares até ao fim.

Meus olhos têm tons de pedra rara
- É só para teu bem que os tenho assim -
E as minhas mãos são fontes de água clara
A cantar sobre a sede dum jardim.

Sou triste como a folha ao abandono
Num parque solitário, pelo Outono,
Sobre um lago onde vogam nenúfares...

Deus fez-me atravessar o teu caminho...
- Que contas dás a Deus indo sozinho,
Passando junto a mim, sem me encontrares?

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Soneto do querer (Filemon Félix de Moraes - 1959)

Se queres, não me omito;
Se ganhas, não me lamento;
Se choras de sofrimento,
Eu só perco, choro e sinto!

Se vives um sonho errante,
Se andas na madrugada,
Se falas, sem dizer nada,
Eu me calo mais que antes.

Perdoa, se me tens medo.
Procura os teus caminhos,
Oculta os teus segredos.

Mas vive a flor da idade
Que mora em teu destino,
Pois breve... vem a saudade!

terça-feira, 7 de junho de 2011

Homem que olha um rosto em um álbum (Mario Benedetti - 1920-2009)

Há muito que não encontrava esta mulher
de quem conheço detalhadamente o corpo
e achava conhecer aproximadamente a alma

passado não é presente
isso está claro
mas de qualquer maneira há lembranças
que são boas de reviver

onde houve fogo
carícias sobram

de repente ela emerge do sussurro evocador
e em voz alta sustenta
que os trabalhadores entendem muito pouco
que o povo é no fundo talvez covarde
que os jovens não vão mudar o mundo
que a violência isso
que a violência aquilo
que o conforto só alcança quem o procura
só então me dou conta
não me importa que fale em voz alta
melhor dizendo não quero que regresse ao sussurro

é apenas um rosto num álbum
e agora é fácil
                        virar a folha.

Troca (Mario Benedetti - 1920-2009)

É importante fazê-lo

quero que me contes
teu último otimismo
eu te ofereço minha última
confidência

mesmo que seja um truque
mínimo

fiquemos cara a cara
estás só
estou só
por algo somos próximos

a solidão também
pode ser
                uma chama.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Nua, és tão simples como uma de tuas mãos (Pablo Neruda - 1904-1973)

Nua, és tão simples como uma de tuas mãos,
lisa, terrestre, minúscula, redonda, transparente,
tens linhas de lua, caminhos de maçã,
nua, és delgada como o trigo nu.

Nua, és azul como a noite em Cuba,
tens trepadeiras e estrelas no cabelo,
nua, és enorme e amarela
como o verão numa igreja de ouro.

Nua, és pequena como uma das tuas unhas,
curva, subtil, rosada até que o dia nasce
e entras no subterrâneo do mundo

como num longo túnel de roupas e trabalhos:
a tua claridade apaga-se, veste-se, desfolha-se
e volta a ser outra vez uma mão nua.

Amor, quantos caminhos para chegar a um beijo (Pablo Neruda - 1904-1973)

Amor, quantos caminhos para chegar a um beijo,
que solidão errante até chegar a ti!
Os comboios continuam vazios rolando com a chuva.
Em Taltal a primavera não amanheceu ainda.

Mas tu e eu, meu amor, estamos juntos,
juntos da roupa às raízes,
juntos pelo outono, pela água, pelas ancas,
até sermos apenas tu e eu juntos.

Pensar que custou tantas pedras que o rio arrasta,
a emborcadura da água do Boroa,
pensar que separados por comboios e nações

tu e eu devíamos simplesmente amar-nos,
com todos confundidos, com homens e mulheres,
com a terra que implanta e educa os cravos.

domingo, 5 de junho de 2011

Pequeno poema didático (Mario Quintana - 1906-1994)

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconsequente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

O autorretrato (Mario Quintana - 1906-1994)

No retrato que me faço
- traço a traço -
Às vezes me pinto nuvem,
Às vezes me pinto árvore...

Às vezes me pinto coisas
De quem nem há mais lembrança....
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão...

E, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Lisbon revisited (Fernando Pessoa - 1888-1935)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas complexos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos Deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso eu sou doido, com todo direito a sê-lo.
Com todo direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim como sou, tenham paciência.
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Por que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Canção do caminho (Cecília Meireles - 1901-1964)


Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
- Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah, mas logo ali adiante
- tão perto! -
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Canção (Olavo Bilac - 1865-1918)

Dá-me as pétalas de rosa
Dessa boca pequenina:
Vem com teu riso, formosa!
Vem com teu beijo, divina!

Transforma num paraíso
O inferno do meu desejo...
Formosa, vem com teu riso!
Divina, vem teu beijo!

Oh! tu, que tornas radiosa
Minh'alma, que a dor domina,
Só com teu riso, formosa,
Só com teu beijo, divina!

Tenho frio, e não diviso
Luz na treva em que me vejo:
Dá-me o clarão do teu riso!
Dá-me o fogo do teu beijo!

Lendo a Ilíada (Olavo Bilac - 1865-1918)

Ei-lo, o poema dos assombros, céu cortado
De relâmpagos, onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternizado
O espantoso poder da argiva gente.

Arde Tróia... De rastos passa atado
O herói ao carro do rival, e, ardente,
Bate o sol sobre um mar ilimitado
De capacetes e de sangue quente.

Mais que as armas, porém, mais que a batalha,
Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha:

- Esse amor que ora ativa, ora asserena
A guerra, e o heróico Páris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.