domingo, 30 de setembro de 2012

Instruções Para Desativar (Ronald Polito - 1961)

cada vez mais distante
de si próprio
e suprimir-se até
a idéia da distância
de que se deduz

sim

detalhes ciclópicos
obstruem
a figuração
das imagens e
a saída para o silêncio

assim

esta disposição
dos extremos
conforma-se
com o empenho
do seu desenredo

sábado, 29 de setembro de 2012

Ausência (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)


Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Happy-hour (Heitor Ferraz Mello - 1964)

É daqui que eu falo
de nenhum outro lugar

- da luz de mercúrio,
do vidro fumê, do abajur
aceso no prédio em frente
e que se torna tão nítido
que quase se isola
dentro da janela

É daqui
apesar de eu mesmo
sentir que me falto
e me falto tanto
que nem sei se sou eu
ou a saudade que não consola

É daqui,
onde pertenço,
entre um bloqueio e outro
de fora e de dentro

É deste lugar,
quando a tarde baixa
entre as coisas
replicadas

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Resignação (Alberto Bresciani - 1961)

Aqui te vejo passar
e te chamo

Daqui (apesar do ridículo)
te jogo esses ramos

e por vezes aceito
algum que devolva

É o país onde espero
as palavras

a remissão do tempo
(já tentei sair)

Se eu rio
durante o naufrágio?

Era só por dizer

Desculpe

Hoje não ia chorar.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Cantiga de embalo (Thiago de Mello - 1926)

Estás vendo aquela estrela
como está te olhando tanto?
Ela quer falar contigo,
Estrela sabe o que diz,
só fala quando é preciso
dar um recado, um aviso.

Te lembras? Foi uma estrela
que aos reis magos ensinou
o lugar onde o Menino
dormia na manjedoura.

Olha o jeito da luz dela.
Talvez queira te chamar
para a graça da ternura,
desperdiçada fundura
perdida da tua vida.

Acreditariam se eu dissesse (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Acreditariam
se eu dissesse aos homens
que nascemos

tristemente humanos
e morremos flor?

Acreditariam
que a presença é ausente
quando o olhar se perde
nas alturas?

Acreditariam
ser a nossa vida
vontade consciente
de não ser?

E ser luz e estrela
água, flor

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O prego (Adriano Espínola - 1952)


O que mais dói não
é o retrato na parede,

mas o prego ali
cravado, persistente,

no centro da mancha
do quadro ausente.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Hora azul (Onestaldo de Pennafort - 1902 - 1987)

Hora azul. No parque, o ocaso
tem sugestões de pintura.
Crescem as sombras e a alvura
dos cisnes, no tanque raso.

O velho jardim de luxo
parece um vaso de aromas.
Harmonias policromas
sobem dágua do repuxo.

A tarde cai dos espaços
como uma flor, a um arranco
do vento, cai aos pedaços.

E a noite vem... No jardim,
o luar, como um pavão branco,
abre a cauda de marfim.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O espelho (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)


Ardo em Desejo na tarde que arde!
Oh, como é belo dentro de mim
Teu corpo de ouro no fim da tarde:
Teu corpo que arde dentro de mim
Que ardo contigo no fim da tarde!

Num espelho sobrenatural,
No infinito (e esse espelho é o infinito?...)
Vejo-te nua, como num rito,
À luz também sobrenatural,
Dentro de mim, nua no infinito!

De novo em posse da virgindade,
- virgem, mas sabendo toda a vida -
No ambiente da minha soledade,
De pé, toda nua, na virgindade
Da revelação primeira da vida!

A chave (Alice Spíndola - 1940)

No meio da noite, configura
a fragrância das palavras mágicas
Na chave da noite, a ternura,
pluma que verte enigmas

Nas mãos do tempo,
o arado que rasga os mistérios
do sentimento que define
O homem da meia noite,

em seu caminho de volta
que faz

ao adentrar a meia lua
das unhas dos enigmas.
A mão da noite destrava a chave
da fragrância das palavras mágicas

domingo, 23 de setembro de 2012

Soneto à minha irmã (Orides Fontela - 1940 - 1998)

No opaco silêncio estátuas virgens
de sal e luz tombaram, desmembradas,
no abismo das lúcidas origens
dormem nomes e formas olvidadas.

Dormem - não se levantam - primitivas
idéias puras no limbo fenecidas
pulcras estátuas virgens, mas cativas,
à luz total do não ser prometidas.

Na memórias elas pesam como puro
tormento, arremessadas neste escuro
poço das coisas frustradas, não nascidas:

assim vives em mim, irmã, singela
pulsas em mim como a visão mais bela
entre rosas sepultadas e queridas.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Partilha (Orides Fontela - 1940 - 1998)


Partilhemos somente
o que em nós se
continua:
a singeleza
a luta
a esperança.

Partilhemos somente
esta maior intensidade:
absoluta palavra
que nos pertence integralmente.

Partilhemos somente
o pão unificado
e a água sem face.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Bilhete de suicida (Emílio Moura - 1902 - 1971)

Já nada importa.
Nada de nada.
Quero é silêncio
puro, ah, tão puro
que me redima
de cada sonho
e seu reverso,
de tanto amor
e seu vazio,
de toda a vida
e seu remorso.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Anjo (Sônia Ferreira - 1941)

Não sei se você
é periquito, sabiá,
bem-te-vi.
Não sei se você
é pai, padre,
pastor.
Sei que você
tem cajado,
tem relva,
tem prado.
Não sei se você
é contemplativo,
inquieto,
operário, administrador.
Só sei que você
tem asas de anjo,
soprando versos,
sobre a incerteza
do mundo.

Contrastes (Sônia Ferreira - 1941)

Num simples
aperto de mão,
o diálogo,
a comunicação.
Muitos pares de passos
pelas trilhas silvestres
e pelas ruas das cidades.
Cada pessoa
é um marco diferente
na paisagem.
As diferenças são
o encanto do arco-íris.
A criação é
o mais doce matiz,
com a assinatura de Deus.

- Extasia-me
a harmonia
dos contrastes.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Súplica (Adelino Fontoura - 1859 - 1884)


Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amando ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!

Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.

Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,

Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.

Una semana (Carlos Pardo - 1975)

En la primera ecografia no
tenía corazón.

Una semana amando
tres centímetros sin corazón.

Y lo más parecido
a la pequeña mancha
negra era um pequeño

ataúd. Un nudo del tamaño
de um huesito de pollo
en la garganta.

Y lo más parecido a amanecer
velando tu respiración:
el jadeo del mar bajo un cielo de estaño.

Recordé a un poeta
cantor de la familia
tardocapitalista
y te hizo gracia.

Una semana después
la libertad.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Uma moça (Walquíria Raizer - 1980)

Uma moça Marília perdeu seu amor
Morreu só, à espera dele
(e acharam bonita essa história)

Dirceu, seu porco!
Que idiota és tu?

Merecias uma surra de cinto
Amarrado ao sol!

O amor romântico é uma doença que não acaba
E nem procuram a cura, a ciência
O amor romântico tem mercado
Poetas, letras, o dono do alambique, terapeutas
Todos lucram com a desgraça

Dirceu amarrado
Mil chibatadas
E Marília vingada

domingo, 16 de setembro de 2012

molduras da esperança (Geraldo Carneiro - 1952)


mesmo sem receber prenúncios, urubus
e outros espectros cá nos meus umbrais,
espero que, entre as galas da galáxia,
chegue a mim a armadura de um amor.
por quê? não sei viver assim tão vasto,
privado das molduras da esperança.
sem isso eu Odisseu não saberia
fazer-me ao mar, alçar-me ao firmamento
voar até que o sol me estraçalhasse
por aspirar a alturas sobre-humanas.
por isso eu vos declaro, ó criaturas
que comandais o circo desse cosmo,
mesmo eu, que tantas vezes me insurgi
contra vossas vontades e poderes:
eu ardo de desejo e quero mais

sábado, 15 de setembro de 2012

sobre o amor (Geraldo Carneiro - 1952)


amor é coisa que se faz a dois,
segredo consagrado por um Deus
à sua escolha, a árvore ou a folha
que se despede do país dos ventos
e que acomete esses seus pensamentos
só seus, só meus, só vossos, sempre nossos.
parece papo de carola, cara?
eu sei, e tenho lá meu pedigree
católico apostólico carioca,
que fui lá nos confins da minha infância
e continuo em meu apostolado
ao lado da galera mais surtada,
que ainda crê na arte sendo vida
e vida convertida em vice-versa.
pois eu, se não existisse o tal do amor,
viveria exilado de mim mesmo.

Soneto XXXVII (Claudio Manuel da Costa - 1729 - 1789)

Continuamente estou imaginando
Se esta vida, que logro, tão pesada
Há de ser sempre aflita, e magoada,
Se com o tempo enfim se há de ir mudando.

Em golfos de esperança flutuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez não esperada
Ao pélago infeliz me vai levando.

Tenho já o meu mal tão descoberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura,
Pois não pode ser mais seu desconcerto.

Que me pode fazer a sorte dura,
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

El hayedo (Raúl Alonso)

Estoy en el hayedo. Es outoño.
Se parece a un anciano que cimbrea
un saber muy antiguo.

Está brillando. Brilla
porque quiere brillar.

Y canta con sus múltiples sonidos
porque quiere cantar.

Y se desnuda de sus hojas
porque se quiere desnudar.

Su sonido está abierto.
Su hondura se vislumbra.
Su color está vivo.

Se ríe de las cosas
que quieren apagarlo.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Para o meu perdão (Adelmar Tavares - 1888 - 1963)


Eu que proclamo odiar-te, eu que proclamo
querer-te mal, com fúria e rancor,
mal sabes tu, em segredo, te amo
o vulto pensativo e sofredor.

Quem vê o fel que em cólera derramo,
no ódio que punge, desesperador,
mal sabe que, se a sós me encontro, chamo
por teu amor, com o mais profundo amor...

Mal sabes que, se acaso, novamente,
buscasses o calor do velho ninho
de onde um capricho te fizera ausente,
eu, esquecendo a tua ingratidão,
juncaria de rosas o caminho
em que voltasses para o meu perdão...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Bastaria (Adriana Lisboa - 1970)


Bastaria
um tempo sem vencimento
aberto como asas
sem sorrisos úteis ou
papéis a endossar. Um vão
entre duas felicitações
contemporizações - por exemplo
(pensar em) margear
Buenos Aires: poetas
Bornéu: primatas
adentrar a ideia dessas coisas.
Bastaria um templo
o céu cobalto que me ignora
raízes varando paredes
menos do que residuais.
Bastaria subtrair eventos
motivos: como desde sempre soubemos,
bastaríamos nós.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Cruel (Vespasiano Ramos - 1884 - 1916)

Ah, se as dores que sinto ela sentisse,
se as lágrimas que eu choro ela chorasse;
talvez nunca um momento me negasse
tudo o que eu desejasse e lhe pedisse!

Talvez a todo instante consentisse
minha boca beijar a sua face,
se o caminho que eu tomo ela tomasse,
se o calvário que eu subo ela subisse!

Se o desejo que tenho ela tivesse,
se os meus sonhos de amor ela sonhasse,
aos meus rogos talvez não se opusesse!

Talvez nunca negasse o que eu pedisse,
se as lágrimas que eu choro ela chorasse
e se as dores que eu sinto ela sentisse!...

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Diverso amor (Alceu Wamosy - 1895 - 1923)

Não quero o teu amor! O teu amor parece
Que feito deve ser de magnólias e luares!
Amor espiritual, casto como uma prece,
De uma pureza ideal de alvas toalhas de altares!

E o meu amor, mulher, é um amor que estremece
De desejos fatais, vagos, crepusculares...
Amor, ânsia de posse! Amor que vibra e cresce,
Ardente como o fogo e fundo como os mares!

Tu virás para mim, deslumbrada e inocente,
Com teu beijo primeiro a fremir castamente!
Nos teus lábios de flor, virgens de todo o mal...

E há de fugir, ó luz, de ambas as nossas bocas
Palpitantes, febris, desvairadas e loucas,
Um arrulho de pomba e um uivo de chacal...

terraço (Alice Sant'Anna - 1988)

aqui te apresento
à vista mais bonita da cidade

os relógios da rua alternam
hora e temperatura
meus olhos flutuando
com a estranha certeza
de que você dobra a esquina

nunca se deve confiar
em quem nunca, nunca
se deve confiar em quem nunca
escreveu uma carta de amor

domingo, 9 de setembro de 2012

Senso sem direção (Goimar Dantas - 1972)

Eu me desdobro: origâmica.
E me azulejo: cerâmica.
Escorro em lava: vulcânica - sobre você.
E então me vejo: reflexo.
Um Rio Tejo em seu fluxo,
cujo desejo profundo é se misturar ao mar.
Um oceano nostálgico
de águas salgadas, febris.
E correntezas incertas.
Ondas gigantes e hostis.
E ainda assim eu me entrego.
Submergindo, me enredo:
sereia plena, feliz.
Espécie de néctar, fruta:
pra sorver absoluta
na boca da sua noite.
Sumo para suar em febre
e entranhar em sua pele:
esse horizonte, fronteira.
Penhasco, abismo, ladeira.
Avesso do meu direito,
onde espero me perder.

sábado, 8 de setembro de 2012

Relíquia (Salgado Maranhão - 1953)

Quem segura o telhado
desses mortos
fabricados entre a ceia
e a hora do esterco?
Esses que ardem
onde medra
o sangue?

Acossadas
aos subúrbios da carne,
estão suas obras completas,
perfiladas no nada

e no medo que ceifou
nossas unhas.

No rastro dessa névoa-
nave (ainda) exorta
uma cigarra louca.

Estarão prontos os vivos
de amanhã,
para guardar nossa relíquia
de mortos?

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Terra minha (Salgado Maranhão - 1953)

Quando eu te reconheci,
havia um rio entre nós,
desde então sigo cantando
no leito da tua voz.

Quando eu te reencontrei,
já era marcado a ferro,
sem ao menos perceber
o poder do próprio berro.

Passa por mim esse slide
como um cinema secreto,
como se dessa paisagem,
fosse meu próprio alfabeto.

Me lanço por entre mares,
por caminhos que nem sei...
para no fim retornar
ao ponto que iniciei.

Mesmo listando ao presente
as memórias do futuro,
acabo por te encontrar,
cada vez que me procuro.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Lamento em voz baixa (Emílio Moura - 1902 - 1971)

A vida que não tive
morre em mim até hoje.
Chega, límpida, pura,
sorri, pálida, foge.

A vida que não tive
salta, viva, de tudo.
Se me sorri nos olhos,
com que ilusão me iludo.

A vida que não tive
é o que há de mim em mim,
chama, orvalho, segredo
do nunca de onde vim.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Nostalgia (Elizabeth Caldeira Brito)

Saudade,
já não cabe em si.
Evola nos poros.
No sombrio olhar
se deixa ficar.

No soluço da alma
plangia ausência.
Não disfarça a efígie:
fantasma de um
que o outro não tem.

Saudade,
camufla alegria,
contagia tristeza,
suprime euforia.

De quem outrora,
por não ser assim
era tão infeliz!

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Experiência (Elizabeth Caldeira Brito)

O canto de um ser plural,
guardará indelével,
os amanhãs que chegam,
à sombra daqueles
estagnados,
no avesso das horas.

Cravada na geografia dos rios
da correnteza do sangue,
nos fios de memória
que guardam o lume
das claras manhãs.
A vida celebra.

E ao inexistir
a cal desses dias,
haverá de estar
para além do fim,
a experiência.

Presente (Antonio Cícero - 1945)

Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mim mesmo este presente?

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A canção da felicidade (Onestaldo de Pennafort - 1902 - 1987)

Não foste para mim, Felicidade!
O sorriso que levas a outras bocas
e que as enche das ilusões mais loucas,
vem a mim sob a forma de saudade.

Saudade do que nunca tive, da ventura
que todos conseguiram, menos eu.
Saudade de uma estranha criatura
que devia ser minha e já morreu.

Nunca pensei que a vida fosse assim,
Tão vazia, tão áspera e tão triste!
Será verdade que o prazer existe?
Felicidade, não tens nada para mim?

Será possível que na tua taça
nem ao menos reste um pouco desse vinho
que dás aos outros a beber, pelo caminho
onde minh’alma, quase morta, passa?

Ai, vinho que embriagas mais que tudo!
Ai, lábios de mulher que eu não beije!
Mãos amorosas, mãos macias de veludo
que me espancaram quando desejei!

Felicidade! Sonho azul da mocidade!
Ânfora cheia do perfume de mil bocas,
perfume cheio de carícias loucas,
eu só conheço a tua irmã Saudade.

Não foste feita para mim, Felicidade!

domingo, 2 de setembro de 2012

cortejo noturno (Josely Vianna Baptista - 1957)

trouxe na lua crescente
uma canastra de peixes
(as guelras membranas baças
de romãs despedaçadas)

nos lampejos da minguante
um puçá de caranguejos:
tanino do mangue-bravo
fez o azul das carapaças

das fasquias de taquara
fisgou argolas de palha;
as plumas de maguari
transbordando das cabaças

no cesto da lua nova
frutos roxos de figueira,
gavelas, paveias, feixes
para o leito sobre a areia

sábado, 1 de setembro de 2012

Termo de responsabilidade (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

mais nada
a dizer: só o vício
de roer os ossos
do ofício

já nenhum estandarte
à mão
enfim a tripa feita
coração

silêncio
por dentro sol de graça
o resto literatura
às traças!