quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O homem público n. 1 (Ana Cristina Cesar - 1952 - 1983)

Tarde aprendi
bom mesmo 
é dar a alma como lavada.
Não há razão 
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita 
que vai sendo cortada
deixando uma sombra 
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Ingratidão (Raul de Leoni - 1896 - 1926)


Nunca mais me esqueci! ... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...

Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,

Como aquela magnífica amendoeira,
E florescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio...

Legenda dos dias (Raul de Leoni - 1896 - 1926)

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Noturno (Augusto dos Anjos - 1884 - 1914)

Chove. Lá fora os lampiões escuros
Semelham monjas a morrer... Os ventos
Desencadeados vão bater, violentos,
De encontro às torres e de encontro aos muros.

Saio de casa. Os passos mal seguros
Trêmulo movo, mas meus movimentos
Susto, diante do vulto dos conventos,
Negro, ameaçando os séculos futuros!

De São Francisco no plagente bronze
Em badaladas compassadas onze
Horas soaram... Surge agora a Lua.

E eu sonho erguer-me aos páramos etéreos
Enquanto a chuva cai nos cemitérios
E o vento apaga os lampiões da rua!

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A casa (Suzana Vargas - 1955)


Não só digo adeus
aos teus dois quartos
à sala ampla
a uma rede sonhada na janela
Digo adeus aos teus cheiros
a essas baratas
que vez por outra te rondaram.
Campainhas, telefones,
brigas e remédios ficarão para trás
além dos sustos
E digo adeus aos fantasmas
que te cercam
Também aos teus arbustos.
E quando uma volta na chave
Digo adeus aos teus ruídos
peregrinos
ecos
Movimentos mais amenos do tempo.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Lugar (Cyro de Mattos - 1939)

Ainda que seja
um grão no deserto
o poema é meu lugar
onde tudo arrisco.
Irriga minhas veias
como a chuva à terra
em suas mil línguas.
Antigo, bem antigo,
me anuncia no vale,
me consuma real,
viajante cativo
da solidão solidária.
Sem esse jeito
de ser flor e vento,
sonho e música,
uma coisa só amor,
não há o espanto,
a lágrima, o beijo,
o riso, o epitáfio,
não há o sentido.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Retrospecto (Humberto de Campos - 1886 - 1934)

Vinte e seis anos, trinta amores: trinta
vezes a alma de sonhos fatigada,
e, ao fim de tudo, como ao fim de cada
amor, a alma de amor sempre faminta!
 
Ó mocidade que foges! brada
aos  meus ouvidos teu futuro, e pinta
aos meus olhos mortais, com toda a tinta,
os remorsos da vida dissipada!
 
Derramo os olhos por mim mesmo... E, nesta
muda consulta ao coração cansado,
que é que vejo? que sinto?  que me resta?
 
Nada: ao fim do caminho percorrido,
o ódio de trinta vezes ter jurado
e o horror de trinta vezes ter mentido!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ressoneto (Ildásio Tavares - 1940 - 2010)

Ninguém deve querer demais na vida;
os frutos nunca estão à beira-estrada,
carecem de procura, de jornadas
adentro uma floresta enrijecida.

Querer não é poder, sequer alcance
dos frutos que se embrenham na floresta,
adonde a solidão somente empresta
um tom de verde a mais a quem não canse.

O poder verdadeiro está no peito
de quem sabe o limite do seu braço,
de quem sabe a dureza do seu leito.

Por isso, nada quero e, passo a passo,
refaço todo o dia o já refeito,
ato, desato e ato o mesmo laço.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

No cárcere (Olavo Bilac - 1865 - 1918)

Por que hei-de, em tudo quanto vejo, vê-la?
Por que hei-de eterna assim reproduzida?
Vê-la na água do mar, na luz da estrela,
Na nuvem de ouro e na palmeira erguida?

Fosse possível ser a imagem dela,
Depois de tantas mágoas esquecida!...
Pois acaso será, para esquecê-la,
Mister e força que me deixe a vida?

Negra lembrança do passado! lento
Martírio, lento e atroz! Por que não há-de
Ser dado a toda mágoa o esquecimento?

Por que? Quem me encadeia sem piedade
No cárcere sem luz deste tormento,
Com os pesados grilhões desta saudade?

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Espelho (Francisco Alvim - 1938)

Meu deus como é triste
Olhar a noite nos olhos
O som da treva ecoa
no brejo mais fundo

Lembrar a montanha
a tarde cheia de sinos
a menina - névoa no azul
o menino

Uma luz
que afastasse esse breu
para além da estrela remota

Olho e vejo um furo
no escuro - um lago?
Aviões partem
Para que deserto?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Que Deus guarde meu pai (Antonio Brasileiro - 1944)

Não passar. Ficar para semente.

Não era isso que meu pai queria?
Sentava-se na rede e adormecia
julgando ter domado a dama ausente.

E sonhava talvez. Talvez menino
montando burros bravos, nu, ao vento;
um homem é a sua ação sobre o destino.

Meu pai então fazia um movimento
e a rede, a adormecer, estremecia:
pequenos sustos no tempo, era só isto.

E escancarava os olhos duramente,
para mostrar que se Ela o procurava
era de cara a cara que a encarava.

Que Deus guarde meu pai. Eternamente.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

A paixão segundo Camões (Carlos Felipe Moisés - 1942)

Transforma-se o amador em coisa alguma,
sem dolo, sem virtude, sem razão.
Por muito amar, dispersa o coração,
e rói daquilo que é a alma nenhuma.

As esperanças perde, uma a uma,
de decifrar o rosto da paixão.
Sem rumo, ilhado entre o sim e o não,
perde-se no amor de um mar sem espuma.

Transforma-se o amador em coisa errante,
atira ao vento um grito enrouquecido
e busca se encontrar na coisa amada.

A pele rota, o gesto vacilante,
transforma-se, de amar como um perdido,
em sombra de si mesmo, ausência, nada.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Liberdade (Myriam Fraga - 1937)

Tardo é o tempo da escolha
(Desespero de então saber-se exato)
Já edificada a mente
E o corpo
Coagulado em rígido horóscopo.

Prisioneiro de antigas trajetórias
Quando mediu-se rumo
E permanência
E no tempo projetou-se o itinerário.

Antes da escolha - o homem,
A cartilagem,
Sua carapaça de gesso repetida,
A face anterior
Criada em série.

Apodrecido no íntimo
Âmago (ou silêncio)
Nos pés a ferrugem,
A grilheta da classe,
O caminho traçado,
O pai,

Ou o que chamamos destino.

Um fio de luz (Eucanaã Ferraz - 1961)

Um fio de luz:
tesoura que baste
para tornar nítido
o que

sobre a cômoda,
sobre a mesa:
um lápis, uma pera,
um cálice,

que nossos olhos
podem anotar
sem complicação,
sem gula ou fastio.

Mesmo da morte a repentina
ternura, se vista de tal modo:
num vaso, haste, pétala
que cede.

Sobre a cômoda, sobre a mesa,
belezas que um nosso gesto
pode anexar ao peito
sem grande peso.

Ou, ainda, o peso nenhum
de quando nenhum atavio:
tábua
sem nada em cima.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Proposição (Linhares Filho - 1939)

Esta ânsia de criar tão das entranhas
busca chegar a regiões estranhas
e, com o perfil do grito, o fio do aço,
mas na ternura de um supremo abraço,
a grandeza atingir do ser humano,
e vislumbrar os pórticos do arcano.
Busca algo decisivo como adeus,
o mar singrando e a sombra azul de Deus.
Algo com que me supra de infinito
e perfeito qual morte em seu granito.
Algo que me lembre a voz da amada ouvida
na derradeira vela a nos deixar.
Algo como tornar-me em luz, em ar,
para exprimir o meu amor à vida
e toda a minha sólida dor.
Algo para que, enfim, me plenifique,
e em que me espelhe, e eternamente fique,
quando cumprido e plácido me for.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Não, não é cansaço (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta -
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, veja
Confesso: é cansaço!...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ricochete (Alberto da Cunha Melo - 1942 - 2007)

Sabei que o poema saiu
há poucos séculos de mim
e, sob as gaivotas da tarde,
alguém o leu e o amou.

Quem terá sido? - Não importam
o rosto que tenho e o que não tenho
mas a palavra toda cheia
de sua força e sua paz.

Se houve o choro, não me cabe
desculpá-lo em noite nenhuma
e já existia nesse estranho
que há nos outros e me pertence

E o movimento do vazio
modificando, não fui eu:
é o vento que bate em mim
e faz chorar o homem na praça.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Nobre matéria (Péricles Prade - 1942)

O tesouro é procurado nos centros
das metrópoles, mas é nos infernos
que ele está, guardado nos altares
que cobrem o rosto do desesperado

Não quero as moedas, as espalhadas
pelos errantes círculos, as doidas
construtoras, as pesadas, as fartas
que na cor já revelaram os tempos

No bolso há o estranho ritmo, sede
do ouro; nem se quisesse o demônio
ele saltaria para o viciado corpo

Faca é de prata, a morte vale mais
assim, mais respeitada, pois morrer
é bom se presente a nobre matéria

Restos (Ildásio Tavares - 1940 - 2010)


Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada

Há um resto de tarde inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia:

Há um resto de mim em toda a parte
Que nunca pude ser inteiramente.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Claro (Florisvaldo Mattos - 1932)

Pelas tardes de fogo homens
pedras movem com capacetes
de sombra mergulhados
em ruas de verão e sal.

Nada me diz que as coisas
se passam como me dizem
além
da parede de vidro que nos divide
aquém
das algemas de sono que nos unem.

Sou como posso fiel
a meu projeto mesmo
que de pronto não o achem
meus olhos - anônimos
minhas mãos - rachadas
meus lábios - rebeldes

nos espaços burocráticos
nas relações de amizade
nos desertos duros da fome.

Liberdade é meu ser
e tempo. É o meu nome.
Razão - o meu sobrenome.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Poema para o filho que se casa (Yone Giannetti Fonseca - 1929)

Que este sonho inaugurado
Em tua carne, em teus atos,
Não se dissolva, abstrato,
Ao contato dos cactos.

Que este intervalo de orvalho
Em teu sorriso espelhado,
Mesmo exaurido, restaure
Futuras noites de barro.

E nas urgêncvias vividas
Em teu sonhar acordado,
Um pouco, muito persista
Desta brasa, desta brisa.

Que do sonho consumado
Nos embaraços dos laços,
Reste um desfrute de vida
Como fruto da saudade.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Um ano de blog (Maíra Ramos)


       Hoje o blog completa um ano de existência. Passa rápido, posso dizer. Nesse tempo dava para ter engravidado, tido filho, casado, descasado, mudado de emprego, feito e desfeito amigos, perdido ou ganhado peso... Enfim, é tempo bastante para fazer muitas e diferentes coisas. Mas, nesse tempo todo, estive aqui (e em diversos outros lugares também, diga-se). 
       Consegui levar adiante, com falha de algumas poucas ocasiões, o meu projeto de postar aqui um poema por dia. Poemas de escritores antigos e novos, jovens e velhos, conhecidos ou nem tanto assim, mas sempre com uma palavra de afeto, dor, de conforto ou de amor. E tenho gostado, e muito, dessa experiência, seja pelas leituras feitas, seja pelas novas pessoas que acabei conhecendo pelo caminho da blogsfera.
       Tem valido a pena? Se eu conseguir que, ao menos, uma pessoa se emocione com o que escrevo e posto, já terá valido a experiência... Que venham outros anos pela frente! Ficam aqui os meus sinceros agradecimentos a todos os leitores do blog "Um pouco de poesia".

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Saudades (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

De noite, amada, prende o teu coração ao meu (Pablo Neruda - 1904 - 1973)

De noite, amada, prende o teu coração ao meu
e que no sono eles dissipem as trevas
como um duplo tambor combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.

Nocturna travessia, brasa negra do sono
interceptando o fio das uvas terrestres
com a pontualidade dum comboio desvairado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.

Por isso, amor, prende-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate
com as asas dum cisne submerso,

para que às perguntas estreladas do céu
responda o nosso sono com uma única chave,
com uma única porta fechada pela sombra.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Se as penas com que Amor tão mal me trata (Camões - 1524 - 1580)

Se as penas com que Amor tão mal me trata
quiser que tanto tempo viva delas
que veja escuro o lume das estrelas
em cuja vista o meu se acende e mata;

e, se o tempo, que tudo desbarata,
secar as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando a linda cor das tranças belas
mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado
o pensamento e aspereza vossa,
quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
em tempo quando executar-se possa
em vosso arrepender minha vingança.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Robinson (Jorge Wanderley - 1938 - 1999)

Toda a certeza de que estarei só
por todos os mais dias dos meus dias,
todo o recurso-a-me-lembrar e o pó
dessas lembranças, última valia,
as providências a que me resigno
e de que vivo, adâmico e exilado
como exilado Adão provou do indigno
pão que o suor provê, humanizado,
todo o caminho do retorno a mim
e a meus saberes e aos da minha raça,
da mágica engrenagem do jasmim
ao gatilho, estampidos e fumaça,

toda a glória que a solidão semeia
e agora essa pegada aqui na areia!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Desejo de regresso (Cecília Meireles - 1901 - 1964)

Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.

E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.

Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero a memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!

Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira...)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Deixei (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)

Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.

Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.

Nada se explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.

O descante de arlequim (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)

A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, polido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade...

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Náufrago (Alphonsus de Guimaraens - 1870 - 1921)

E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo.
Perde-se o meu olhar pelas trevas sem fim.
Medonha é a escuridão do céu, de extremo a extremo...
De que noite sem luar, mísero e triste, vim?

Amedronta-me a terra, e a se a contemplo, tremo.
Que mistério fatal corveja sobre mim?
E ao sentir-me no horror do caos, como um blasfemo,
Não sei por que padeço, e choro, e anseio assim.

A saudade tirita aos meus pés: vai deixando
Atrás de si a mágoa e o sonho... E eu, miserando,
Caminho para a morte alucinado e só.

O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma transformar-se em astros,
Como este corpo custa a desfazer-se em pó!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A cruz da estrada (Castro Alves - 1847 - 1871)

Caminheiro que passas pela estrada,
Seguindo pelo rumo do sertão,
Quando vires a cruz abandonada,
Deixa-a em paz dormir na solidão.

Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Que lhe atiras nos braços ao passar?
Vais espantar o bando buliçoso
Das borboletas, que lá vão pousar.

É de um escravo humilde sepultura,
Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Deixa-o dormir no leito de verdura,
Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.

Não precisa de ti. O gaturamo
Geme, por ele, à tarde, no sertão.
E a juriti, do taquaral no ramo,
Povoa, soluçando, a solidão.

Dentre os braços da cruz, a parasita,
Num abraço de flores, se prendeu.
Chora orvalhos a grama, que palpita;
Lhe acende o vaga-lume o facho seu.

Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
A sepultura fala a sós com Deus.
Prende-se a voz na boca das cascatas,
E as asas de ouro aos astros lá nos céus.

Caminheiro! do escravo desgraçado
O sono agora mesmo começou!
Não lhe toques no leito de noivado,
Há pouco a liberdade o desposou.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Meu anjo, escuta! (Gonçalves Dias - 1823 - 1864)

Meu anjo, escuta: quando junto à noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como suspiro que um menino exala;
Na voz da brisa quem murmura e fala
Brando queixume, que tão triste cala
No peito teu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Quando tu sentes lutuosa imagem
D’aflito pranto com sombrio véu,
Rasgado o peito por acerbas dores;
Quem murcha as flores
Do brando sonho? — Quem te pinta amores
Dum puro céu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém te acorda do celeste arroubo.
Na amenidade do silêncio teu,
Quando tua alma noutros mundos erra,
Se alguém descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro que no peito encerra;
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém se aflige de te ver chorosa,
Se alguém se alegra co’um sorriso teu,
Se alguém suspira de te ver formosa
O mar e a terra a enamorar e o céu;
Se alguém definha
Por amor teu,
Sou eu, sou eu, sou eu!

Ainda uma vez adeus (Gonçalves Dias - 1823 - 1864)

Fragmentos

IX

Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Afarta-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime,
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Metamorfose (Alberto Bresciani - 1961)

Em seu rosto
um campo de trigo
e manso se entregava
ao passeio da boca

Braços me protegiam
e enlaçavam
e devolviam ventos
que ninguém sentiu

Desdobrava-se
o seu consentimento
e sem proposições
uma supernova em mim

Talvez reencontrasse o destino
respirasse sem deformidades
talvez fosse apenas como voltar

E já não chovia
E era tão bom.