quarta-feira, 30 de abril de 2014

Montaigne (Claudio Daniel - 1962)

Acende a cor mediterrânea,
música para o latim.
Depois, rabisca um seio
de Medusa, inchado
na ponta da teta.
Lições de esgrima, para o jovem
nobre; e o calor da sela,
em dorso de cavalo escuro.
Seigneur, de afilado
traço (hebreu) de Ibéria,
bateu lâmina em lâmina
vencida, amou o jogo,
as damas e o amigo morto.
Foi diplomata, leitor
de Sêneca e Plutarco;
soube que o Esclesiastes
era um códice grego,
algo mais que escritura.
Estóico, serenou paixões,
recusou trovão e tumulto:
viu que a história
da miséria humana
é uma parcela do possível.
E soube em sua pele,
em seu sangue, filosofar
é aprendizado da morte.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Acordar (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

Passo a mão pela cabeça
A tempo de ver sumir a última estrela:
A manhã veste a camisa.
Levanto-me vacilando do leito-navio,
Primeiros pássaros oboés.
O monumento do Tempo
Avança feroz para mim.
Sou meu irmão, um homem
Que ainda não foi fuzilado.
Apalpo-me
Sou eu mesmo
Quase acordei.

O Monge Faz o Hábito (Mário Chamie - 1933)

O tecido entrecortado
do hábito
faz do monge
o avesso do ditado.

Não é o monge
que faz o hábito.
O monge
não é o hálito
que recria o incriado.

Mas se o monge
faz o hábito,
o hábito faz do monge
o hálito
de seu pecado.

Tudo raro e sempre claro:
na rima dessa esgrima
entre o monge
e o seu ditado,
seja aqui, seja lá ou seja longe,
sopra o hálito do diabo:

- ou o hábito é o tecido
que tece o monge;
ou o monge é o vestido
que veste hábito.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Solidão de Rei e de Súdito (Mário Chamie - 1933)

A solidão de um rei
é o usufruto
de tudo.

Não é como
a perda e o luto
na solidão de um súdito.

Se só, o rei sopra
o ouro em pó
do luxo
e faz da solidão
o ouro
de seu refúgio.

Não há razão
para um rei recluso
perder-se amargo
entre o favo
e o travo
de suas flores e frutos.

A solidão de um rei
não é como
a solidão de um súdito.

O súdito, se só,
perde o usufruto de tudo
e, escuso,
rói o próprio osso
no poço
do próprio túmulo.

sábado, 26 de abril de 2014

Metade pássaro (Murilo Mendes - 1901 - 1975)

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O assinalado (Cruz e Sousa - 1861 - 1898)

Tu és o louco da imortal loucura,
O louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tua alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Sertânica 2 (Salgado Maranhão - 1953)

meu boi está vivo
em mim,
na ciência de esperar,
no mugir sob os mourões;

meu boi já virou folia,
fugiu para o pasto
misturado aos aboios
e ao ganir dos cachorros.

deixou-me apenas o nome
nas marcas do ferrador:
esta fúria sem revanche
feita de canga e "sim senhor".

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Sertânica 1 (Salgado Maranhão - 1953)

há de vir o relâmpago
sobre a carniça andante,
sobre o oco da terra seca
e o monótono sermão
do chocalho das cabras.

há de vir a nascente
da chuva
sobre a pedra ancestral,
a lavar a carne
e a fratura dos dias.

desse enredo de espectros
escrito nos olhos,
há de vir o trovão
sobre a cal da espera,
traduzindo o silêncio de Deus.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Sparks (Mauro Cappelletti - 1927 - 2004)

Raras centelhas
no espaço escuro
átimos
de efêmeras paixões
de desordenadas visões.
É está a nossa vida;
o resto é sono,
o sono sem fim
que foi,
o sono sem fim
que será,
misterioso imenso negro fantasma
que mente humana
não pode compreender
ainda quando
mudado em devastadora tormenta
penetra e sacode o nosso espírito
atraindo-lhe
centelhas raras
no espaço escuro.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Epitáfio (Mauro Cappelletti - 1927 - 2004)

Fui, na minha juventude,
como um iceberg gigantesco
hirto de agulhas
estendidas
nos azuis espaços infinitos.
Depois vieram as Correntes do Tempo
e me arrastaram,
enleado nos seus estreitos,
para os Mares Temperados
das Boas Criações
e ali
pouco a pouco
ruptura sucedendo a ruptura
me amoldei ao plano.

Eu amaldiçoo o meu tempo!

sexta-feira, 18 de abril de 2014

A noite desce (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce...Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Renúncia (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

A minha mocidade outrora eu pus
No tranquilo convento da Tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mãos em cruz...

Lá fora, a Lua, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza...
É como um beijo ardente a Natureza...
A minha cela é como um rio sem luz...

Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!

Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra,
Ó minha mocidade toda em flor.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Anoitecer (Florbela Espanca - 1894 - 1930)

A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui...outr'ora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bençãos d'amor para toda a gente!
E a minha alma sombria e penitente
Soluça no infinito desta hora...

Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Tenho saudades de uma dama (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Tenho saudades de uma dama
como jamais houve na cama
outra igual, e mais terna amante.

Não era sequer provocante.
Provocada, como reagia!
São palavras só: quente, fria.

No banheiro nos enroscávamos.
Eram flamas no preto favo,
um guaiar, um matar-morrer.

Tenho saudades de uma dama
que me passeava na medula
e atomizava os pés da cama.

domingo, 13 de abril de 2014

Menos a mim (Ferreira Gullar - 1930)

Conheço a aurora com seu desatino
Conheço o amanhecer com o seu tesouro
Conheço as andorinhas sem destino
Conheço rios sem desaguadouros
Conheço o medo do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Conheço o ódio e seus argumentos
Conheço o mar e suas ventanias
Conheço a esperança e seus tormentos
Conheço o inferno e suas alegrias
Conheço a perda do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim.

Mas depois que chegaste de algum céu
Com teu corpo de sonho e margarida
Pra afinal revelar-me quem sou eu
Posso afirmar enfim
Que não conheço nada desta vida
Que não conheço nada, nada, nada
Nem mesmo a mim.

sábado, 12 de abril de 2014

A verdade da vida (Thiago de Mello - 1926)

Moça do vento, menina da luz,
tua paz me penetrou
como uma estrela nascendo
para cantar o meu nome.
Hoje no sol do pleno meio-dia
aprendi a soletrar meu próprio nome
pronunciado pela tua boca.
Num instante fugaz
descobri que existe a eternidade. Nunca
mais serei sozinho.
A luz que escorre dos teus ombros
se espalha iluminando o meu caminho.
Como quem finca uma bandeira
na terra que se acaba de descobrir,
plantas a verdade da vida
no centro do meu peito.
Escrevo com tranqüila certeza
de um menino que descobre a água,
que não precisaria te ver de novo
para que estejas e sejas comigo.
Acompanhas a minha mão neste momento
em que escrevo o teu nome
como o pássaro que canta
o encontro do seu repouso.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Aparição (Thiago de Mello - 1926)

Ela oscila ondulante descendo
o barranco ensolarado, vem no vento,
bacia de roupa quarada na cabeça;
é altivo o corpo, os cabelos brilham.
Vem sozinha no sol do meio-dia.
Uma estátua luminosa em movimento.
Ela nem olha o barco que passa.
Quando chega rente à margem
arria a bacia no capim
e some inteirinha no rio.
Quando reaparece, só a cabeça de fora,
a cabeleira se espalha refletindo
a claridade do mormaço. Então ela ri,
não era para o barco: para a vida.
De repente, ágil, sobe no tronco
amarrado na beira e abre os braços,
de costas para o rio.
Da camisa ensopada transparece
um resplendor de nádegas. Espáduas
vastas no fulgor do dia. Foi fugaz.
Na memória perdura, sol e água,
o milagre da moça iluminada.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Suave, surdo, cego (Thiago de Mello - 1926)

Quando morto, me prefiro
coisa suave, surda, cega.
Suave como a minha mão
procurando a tua mão.
Surda como o âmago
das rochas milenárias.
Cega como cegos são
os peixes que lerdos passeiam
nas profundezas das águas.
Deslembrado de tudo, sobretudo
do meu passo cambaio pelo mundo
onde andei de tropeços com meu sonho.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Balada de la estrella (Gabriela Mistral - 1889 - 1957)

- Estrella, estoy triste.
Tú dime si otra
como mi alma viste.
- Hay otra más triste.

- Estoy sola, estrella.
Di a mi alma si existe
otra como ella.
- Sí, dice la estrella.

- Contempla mi llanto.
Dime si otra lleva
de lágrimas manto.
- En otra hay más llanto.

- Di quién es la triste,
di quién es la sola,
si la conociste.

- Soy yo, la que encanto,
soy yo la que tengo
mi luz hecha llanto.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Encantamiento (Gabriela Mistral - 1889 - 1957)

Este niño es un encanto
parecido al fino viento:
si dormido lo amamanto,
que me bebe yo no siento.

Es más traviesso que el río:
y más suave que la loma:
es mejor el hijo mío
que este mundo al que se asoma.

Es más rico, más, mi niño
que la tierra y que los cielos:
en mi pecho tiene armiño
y en mi canto terciopelos...

Y es su cuerpo tan pequeño
como el grano de mi trigo;
menos pesa que su sueño;
no se ve y está conmigo.

domingo, 6 de abril de 2014

Gotas de hiel (Gabriela Mistral - 1889 - 1957)

No cantes; siempre queda
a tu lengua apegado
un canto: el que debió ser entregado.

No beses: siempre queda,
por maldición extraña,
el beso al que no alcanzan las entrañas.

Reza, reza que es dulce; pero sabe
que no acierta a decir tu lengua avara
el solo Padre Nuestro que salvara.

Y no llames la muerte por clemente,
pues en las carnes de blancura inmensa,
un jirón vivo quedará que siente
la piedra que te ahoga
y el gusano voraz que te destrenza.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Passe (Eucanaã Ferraz - 1961)

O verbo cisnir, intransitivo,
assinale o modo como,
entre rodas e transeuntes,

no trânsito
(repentinamente transmutado em águas,
lama e restos

que se desviam num aluvião sem nexo
a fim de que o rapaz passe) o rapaz
cisne.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

18.05.1961 (Eucanaã Ferraz - 1961)

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada

e os anjos não conheciam.

Nasci mês de maio, azul
de tardes macias,
de pai José,
mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade passa
longe, mas daqui eu a vejo

e todo o meu corpo brilha.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Passeio (Eucanaã Ferraz - 1961)

Na entrada do cinema, o drops
pode ser misto ou de hortelã,
o misto tem gosto de frutas,
o de hortelã de hortelã.

As pessoas são muitas pessoas.

Dentro do cinema, quanto tudo é escuro
são todos anônimos e mesmo em inúmeros
assim como são, ficam uma só pessoa
no escuro, como se não fosse ninguém.