sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Sugestão (Thiago de Mello - 1926)

Não cegues o fio da tua lâmina
contra a pedra em que o tempo transformou
a flor antiga que inventei cantando
quando sequer chegada eras ao mundo.
Nem cultives o cardo do infortúnio
em veredas por onde eu caminhava
antes da tua mão na minha vida.
Não podes apagar o que já é cinza,
nem afogar o que a água já levou.
Alguma sombra azul do que passou
vive no amor que nos abraça agora.
Não desperdices teu poder de luz.
Prepara, cada noite, a tua aurora.

Cidadania (Thiago de Mello - 1926)

Cidadania é dever
do povo.
Só é cidadão
quem conquista o seu lugar
na perseverante luta
do sonho de uma nação.
É também obrigação:
a de ajudar a construir
a claridão na consciência
de quem merece o poder.
Força gloriosa que faz
um homem ser para outro homem,
caminho do mesmo chão,
luz solidária e canção.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Quos ego (Nogueira Tapety - 1890 - 1918)

Nunca direi que te amo — esta expressão
É muito fraca para traduzir
Esse mundo infinito de afeição
Que de dentro do meu ser anda a florir ...

O que sinto é quase uma adoração,
Um desejo infinito de fundir
Nossos dois corações num coração
E as nossas almas numa só reunir;

É ânsia de ligar, de amalgamar
As nossas vidas que o destino afasta
E que o próprio destino há de juntar;

Uma afeição consciente e excepcional
Que é humana demais para ser casta
E demais pura para ser carnaval.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Das pedras (Cora Coralina - 1889 - 1985)

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Aninha e suas pedras (Cora Coralina - 1889 - 1985)

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Crepuscular (Amneres Santiago Pereira Maurício)

Há toda uma esperança
em ver a água dançar
sob a batuta do vento
no Lago Paranoá.

Há todo um mar de esperança
na frota de velas brancas
se aproximando do olhar
no Lago Paranoá.

E o sol se põe de mansinho
avermelhando o caminho
de nuvens a azulejar.

O céu, e o Paranoá
reflete em bolhas de prata
o astro rei declinar.

Autorretrato (Amneres Santiago Pereira Maurício)

Eu sempre andei assim
quase absorta
quase abstrata
quase perdida

Eu sempre entristeci
quase obscura
quase culpada
quase escondida

Eu sempre amei assim
quase obscena
quase extremada
quase exaurida

Eu sempre percebi
ser esquisita
quase obtusa
quase maldita

Eu sempre fui assim
quase uma atriz
sonhando ser o amor
e ser a amada

Eu sempre fui assim
quase exaltada
quase encantada
quase feliz.

domingo, 26 de agosto de 2012

Sonho de poeta (Alice Ruiz - 1946)

Quem dera fosse meu
o poema de amor
definitivo.

Se amar fosse o bastante,
poder eu poderia,
pudera,
às vezes, parece ser esse,
meu único destino.

Mas vem o vento e leva
as palavras que digo,
minha canção de amigo.

Um sonho de poeta,
não vale o instante
vivo.

Pode que muita gente
veja no que escrevo
tudo que sente
e vibre
e chore
e ria,
como eu antigamente,
quando não sabia
que não há um verso,
amor,
que te contente.

Drumundana (Alice Ruiz - 1946)

e agora Maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora Maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

sábado, 25 de agosto de 2012

Queria tanto fazer um poema hoje (Alice Ruiz - 1946)

queria tanto
fazer um poema hoje
uma canção que fosse
digna desse dia
com suas cores
brilhos e brisas

queria tanto
que esse poema me quisesse
e me fizesse um mimo
me desfazendo em risos

queria tanto
esse dia em versos
meu coração
deste bem diverso
para sempre
conservado
em seu próprio encanto

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Soneto do outono (Augusto Frederico Schnidt - 1906 - 1965)

É o princípio do outono... Quantas flores
Já vi murchar, e quantos verdes frutos
Não vi, depois, na terra apodrecendo,
Derrubados dos galhos pelos ventos!

É o princípio do outono... E as musas claras,
Que brincavam ao sol nuas e puras
E cantavam de amor e de alegria,
Foram graves e quietas se tornando.

E hoje, se ainda as ouço, é em despedida,
Pois lá se vão na estrada caminhando
De mãos dadas e para não tornar.

Pelas minhas janelas dentro em pouco
Verei chegar a doce luz do outono.
E minha alma estará, enfim, madura.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Soneto (Augusto Frederico Schmidt - 1906 - 1965)

Só preciso de poesia.
Não quero mais nada,
Não quero sorrisos,
Nem luxo, nem fama,

Nem bruxas, nem bodas
Nem gritos de guerra,
Nem doidos volteios
Nas danças sensuais.

Só aspiro poesia. Poesia
E silêncio. No mundo fechado,
No escuro do tempo,

A luz da poesia é como a semente
Que na terra morre e logo apodrece,
E na vida renasce em flores e frutos.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Gato que brincas na rua (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)


Gato que brincas na rua,
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Deixei atrás os erros do que fui (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)


Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A Felício dos Santos (Machado de Assis - 1839 - 1908)

Felício amigo, se eu disser que os anos
Passam correndo ou passam vagarosos,
Segundo são alegres ou penosos,
Tecidos de afeições ou desenganos,

"Filosfia é essa de rançosos!"
Dirás. Mas não há outra entre os humanos
Não se contam sorrisos pelos danos,
Nem de tristezas desabrocham gozos.

Banal, confesso. O precioso e o raro
É, seja o céu nublado ou seja claro,
Tragam os tempos amargura ou gosto,

Não desdizer do mesmo velho amigo.
Ser com os teus o que eles são contigo,
Ter um só coração, ter um só rosto.

domingo, 19 de agosto de 2012

Verdade (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

sábado, 18 de agosto de 2012

Holocausto (Nogueira Tapety - 1890 - 1918)

Eu devia prever que toda essa locura
E esta dedicação com que te tenho amado,
Não podiam mover-te a impassível ternura
Pois nunca existiu o bem com o bem recompensado.

Entretanto, bendigo a terrível tortura
E os súplicos cruciais por que tenho passado,
Pois sofrendo por ti, eu sinto que a amargura
Tem o doce sabor de um fruto sazonado.

Olha bem pra mim: vê que vinte e seis anos
Não podiam me ter por tal forma abatido
Nem roubar minha força e vigor espartanos,

Se estou precocemente exausto e envelhecido,
É do efeito fatal dos tristes desenganos
E do atroz desespero em que tenho vivido.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Num monumento à aspirina (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)

Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

*

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Equinócio ou a procura da poesia (José Leite Netto - 1973)

ando noites procurando versos pelo chão
rebuscando no mar estrelas de papel
ando sol obscuro signo feito doido cão
reinventando línguas e tumultos e babel

navegando-me rios de mim e sempre adeus
silêncio desatento e tarde despencando
um sem sentido parede nua escrevo aos meus
the raven poema negro que Poe foi cantando

mas sou tudo aquilo uma dor que se rejeita
um lance de dados, enigma visto pela janela
bares ou grafias em um borrão que me aceita
e côncavo o céu está para mim feito pra ela
na chuva o horizonte é desespero e adagas
equinócio de surpresas sem tuas chagas.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Suposto soneto à Fortaleza (José Leite Netto - 1973)

não quero deixar no mar nada do que sinto
nada entendimento de mim solidão e tempo
alegro-me por vezes entristeço e minto
qual ébrio sem vinho Baco talvez sem templo

mas ela velocidade cotidiana e pranto
lilás seu nome amor cidade mistério
Fortaleza oculta sob cem pedras e manto
onde se esmolam vinténs e cemitério

e dorme feito anjo sonho de mil desejos
o filho distante perto de Cícero foge da cruz
crucifixos e asfalto, lixo e gracejos

e querendo fé um sonho que nos conduz
ondula melodia verdes-mares e mar
onírica louca alma muitas por amar.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Hora grave (Rainer Maria Rilke - 1875 - 1926)

Quem chora agora em algum lugar do mundo,
sem razão chora no mundo,
chora por mim.

Quem ri agora em algum lugar da noite,
sem razão se ri na noite,
ri-se de mim.

Quem anda agora em algum lugar do mundo,
sem razão anda no mundo,
vem para mim.

Quem morre agora em algum lugar do mundo,
sem razão morre no mundo,
olha pra mim.


(Poema traduzido por José Paulo Paes)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Alguns gostam de poesia (Wislawa Szymborska - 1923 - 2012)

Alguns -
ou seja nem todos,
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

(Poema traduzido por Regina Przybycien)

Retornos (Wislawa Szymborska - 1923 - 2012)

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe - mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por hora dorme, todo enroscado.

(Poema traduzido por Regina Przybycien)

domingo, 12 de agosto de 2012

Metamorfoses (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

sou o que sou:
o silêncio após o mas
e o ou

fui o que fui:
um ruído entre
o constrói e o rui.

fosse o que fosse:
a ponte (que pena!)
quebrou-se

ser o que seria:
já crepúsculo mal
começa o dia?

sábado, 11 de agosto de 2012

Saldo (José Paulo Paes - 1926 - 1998)

a torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)

a luz apagada
(mas pior: o gosto
do escuro)

a porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Estádio do Pacaembu (Augusto Massi - 1959)

O jogo começava antes do jogo,
quando eles desciam pelas ruas,
mudando a fisionomia do bairro.

Em bandos, a caminho do estádio,
embolados numa babel de homens,
de todas as cores, de todos os lados.

Uma multidão de cabeças, bandeiras,
rádios de pilha e cantos de guerra.
Estádio encravado na vulva da terra.

Dava qualquer coisa para ver o jogo.
Ir de arquibancada, numerada, geral,
cobertura, barranco -torcer é igual.

O jogo transcendia o próprio jogo:
despacho ardendo na encruzilhada,
rojão, batuque, juiz, vaia pesada!

E dramático era ouvir conjugado,
o silêncio distorcido do adversário,
dentro do grito de gol ressoletrado.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A aeronave (Augusto dos Anjos - 1884 - 1914)

Cindindo a vastidão do Azul profundo,
Sulcando o espaço, devassando a terra,
A aeronave que um mistério encerra
Vai pelo espaço acompanhando o mundo.

E na esteira sem fim da azúlea esfera
Ei-la embalada n’amplidão dos ares,
Fitando o abismo sepulcral dos mares,
Vencendo o azul que ante si s’erguera.

Voa, se eleva em busca do infinito,
É como um despertar de estranho mito,
Auroreando a humana consciência.

Cheia da luz do cintilar de um astro,
Deixa ver na fulgência do seu rastro
A trajetória augusta da Ciência.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Poema antigo (Adelmo Oliveira - 1934)

Esta lua o meu quarto invade
Branca, molhada de sereno
Entra na memória um caminho
Que termina onde fui pequeno.

Vaga, de luz opala verde
Entra devagar pela rua
Do menino de calça curta
- Que idade eternamente nua!

A vida, a vida passa mesmo
Nem sei quando isso aconteceu
Só sei que a lua vem bonita
Dizer que a infância já morreu.

Infinito (Adelmo Oliveira - 1934)

Olho o infinito
Que tanto grita
Estrelas altas
De minha vida

Desço meu rosto
Por sobre a terra
O chão que piso
É uma quimera

Flores de espanto
Por tudo enfim
Por mais que chegue
Não chego ao fim

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Armas (Fagundes Varela - 1841 - 1875)

- Qual a mais forte das armas,
A mais firme, a mais certeira?
A lança, a espada, a clavina,
Ou a funda aventureira?
A pistola? O bacamarte?
A espingarda, ou a flecha?
O canhão que em praça forte
Faz em dez minutos brecha?
- Qual a mais firme das armas? -
O terçado, a fisga, o chuço,
O dardo, a maça, o virote?
A faca, o florete, o laço,
O punhal, ou o chifarote?...
A mais tremenda das armas,
Pior que a durindana,
Atendei, meus bons amigos,
Se apelida: - a língua humana! -

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Cançãozinha triste (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

E fiz de tudo.
Fui autêntica, durante algum tempo.
Fui inquietude e fragilidade.
Brilhei em roda de amigos.
Pratiquei o esporte com violência
e uma vez (trágica melancolia!)
nadei com aparente desenvoltura
(peito arfante e dilacerado)
mil metros na butterfly...
Fui amante, amiga, irmã,
sorri quando ele me disse coisas amargas...

E nada o comove.
Nada o espanta.
E ele mente
e mente amor
como as crianças mentem.

Já não sei mais o amor (Hilda Hilst - 1930 - 2004)

Já não sei mais o amor
e também não sei mais nada.
Amei os homens do dia
suaves e decentes esportistas.
Amei os homens da noite
poetas melancólicos, tomistas,
críticos de arte e os nada.

Agora quero um amigo.
E nesta noite sem fim
confiar-lhe o meu desejo
o meu gesto e a lua nova

Os que estão perto de mim
não me vêem... Estende a tua mão.
Ficaremos sós e olhos abertos
para a imensidão do nada.

domingo, 5 de agosto de 2012

Homem rindo (Augusto Massi - 1959)

Para José Paulo Paes

A roda de amigos
sacudida por uma
rajada de risos.

Me concentro num
homem tímido que
sorri por dentro.

Deslocado na roda
rapidamente corta
o riso pela raiz.

Mas o riso retorna.
Coceira furiosa nos
orifícios do nariz.

Bebe graça no gargalo
rola rala racha o bico
ri até ficar sem graça.

A rodada de amigos
explode às gargalhadas:
o tímido é sua cachaça.

A Florbela Espanca (Alexei Bueno - 1963)

Amada, por que eu tive a tua voz
Depois que o Nada teve a tua boca?
A lua, em sua palidez de louca,
Brilha igual sobre mim, e sobre nós!...

Porém como estás longe, como o algoz
De um só golpe sem fim — a Morte — apouca
Os gritos dos que esperam, a ânsia rouca
Dos que atrás têm seu sonho, os grandes sós!

Aqui não brilha o mundo que engendraste
Como o manto de um deus, e astros sangrentos
Não nos rolam nas mãos da imensa haste.

E só estes olhos meus, que nunca viste,
Se incendeiam, vitrais na noite atentos,
Voltados para o chão aonde fugiste!

sábado, 4 de agosto de 2012

O sol não me espera (José Geraldo Neres - 1966)

um cão ilumina a si mesmo
dentro da pele da morte
sua boca um rio de lençóis

o mistério desliza pela noite
um cego vigia a porta

a quem ele estende a mão?
como ajudá-lo a atravessar a porta?

nasce com um naufrágio atrás das orelhas
e seus olhos não possuem memória

não há claridade no caminho
apenas o cão com seus olhos de barro

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Um jeito (Adélia Prado - 1935)


Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
- ouve quem estiver passando -
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Enquanto descansa, dorme... (Eucanaã Ferraz - 1961)

Enquanto descansa, dorme,
a mulher que amo, que me ama,
sigo neste exercício da ternura exata
e comum:

cuidar, de quando em quando,
que as treliças da janela
amenizem a manhã em sua rudeza de adaga,
ainda que doméstica lâmina,

e, assim, em volta da mulher que amo,
que me ama, vá o dia
como deve ser: o sol
necessário, um debrum.

Os irmãos (Eucanaã Ferraz - 1961)

Felicidade, era o que era.
Após uns poucos dias fora

de casa, retornar e correr
em direção ao ipê, abraçá-lo

como se abraça um amigo
alto e áspero, um avô.

E era como se ramos e flores
os reconhecessem, eu imagino,

e sabe-se lá o que pensavam
àquele instante os dois meninos,

ou se não pensavam nada
e sentissem apenas a pele rude

daquele carinho imóvel. Montanhas
moviam-se lentamente na luz,

lagartos iam e vinham rápidos
como raios. Era mais certo

que os dois meninos não pensavam
coisa alguma, embora àquela hora

fechassem os olhos como quem pensa.
Ou por isso mesmo não pensavam,

porque fechavam os olhos como quem
apenas descansa. Além disso,

eram crianças, e ainda mais inconscientes
quando abriam os olhos para o alto

e viam
a copa derramar-se convexa

em milhões de júbilos, vozerio
de lâminas, estrelas e dragões.

A árvore enlaçada, nem percebiam
que seus pés

esmagavam os morangos selvagens
que se estendiam rasteiros, miúdos

em torno do imperador amarelo.
E gritavam, e riam, selvagens

eles também, selvagens o cheiro,
a sombra, a alegria,

o sol
muito azul de Friburgo.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Perguntas (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)

Numa incerta hora fria
perguntei ao fantasma
que força nos prendia,
ele a mim, que presumo
estar livre de tudo,
eu a ele, gasoso,
todavia palpável
na sombra que projeta
sobre meu ser inteiro:
um ao outro, cativos
desse mesmo princípio
ou desse mesmo enigma
que distrai ou concentra
e renova e matiza,
prolongando-a no espaço
uma angústia do tempo.

Perguntei-lhe em seguida
o segredo de nosso
convívio sem contato,
de estarmos ali quedos,
eu em face do espelho,
e o espelho devolvendo
uma diversa imagem,
mas sempre evocativa
do primeiro retrato
que compõe de si mesma
a alma predestinada
a um tipo de aventura
terrestre, cotidiana.

Perguntei-lhe depois
por que tanto insistia
nos mares mais exíguos
em distribuir navios
desse calado irreal,
sem rota ou pensamento
de atingir qualquer porto,
propícios a naufrágio
mais que à navegação;
nos frios alcantis
de meu serro natal,
desde muito derruído,
em acordar memórias
de vaqueiros e vozes,
magras reses, caminhos
onde a bosta de vaca
é o único ornamento,
e o coqueiro-de-espinho
desolado se alteia.

Perguntei-lhe por fim
a razão sem razão
de me inclinar aflito
sobre restos de restos,
de onde nenhum alento
vem refrescar a febre
desse repensamento:
sobre esse chão de ruínas
imóveis, militares
na sua rigidez
que o orvalho matutino
já não banha ou conforta.

No vôo que desfere,
silente e melancólico,
rumo da eternidade
ele apenas responde
(se acaso é responder
a mistérios, somar-lhes
um mistério mais alto):

Amar depois de perder.