No dorso da verde onda estira-se o veleiro,
quando se lança ao mar um velho borrachão;
olvida os seus, a blusa arranca bem ligeiro
e se atira a salvá-lo o bravo capitão...
Linda mulher, do vício imersa no lameiro,
socorro solicita a humano coração;
ouve-lhe um moço, esquece o céu e o mundo inteiro,
os preconceitos despe e a ela estende a mão...
O marujo arriscaria a vida só terrena,
este, futuro e glória a sorrir amortalha,
beirando o negro abismo onde é perene a pena.
Entretanto conquista aquela áurea medalha
e quem imita Cristo, em face à Madalena,
só recebe do mundo o nome de canalha!
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Let's play that (Torquato Neto - 1944 - 1972)
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
Let's play that
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
Let's play that
sábado, 28 de janeiro de 2012
Ubiquidade (Manuel Bandeira - 1886 - 1968)
Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.
Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.
Em tudo estás, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo.)
Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra, e, os tempos cumpridos,
No céu, no céu estarás.
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.
Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.
Em tudo estás, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo.)
Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra, e, os tempos cumpridos,
No céu, no céu estarás.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
Vencedor (Augusto dos Anjos - 1884 - 1914)
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Extensão (Vinícius de Moraes - 1913 - 1980)
Eu busquei encontrar na extensão um caminho
Um caminho qualquer para qualquer lugar.
Eu segui ao sabor de todos os ventos
Mas somente a extensão.
Chorei. Prostrado na terra eu olhei para o céu
E pedi ao Senhor o caminho da fé.
Noites e noites foram-se em silêncio
E somente a extensão.
Quis morrer. Talvez a terra fosse o único caminho
E à terra me abracei esperando o meu fim
Porém tudo era terra e eu não quis mais a terra
Que era a grande extensão.
Quis viver. E em mim mesmo eu busquei o caminho
Na ansiedade de uma última esperança
Eu olhei - e volvi à extensão desesperado
Era tudo extensão.
Um caminho qualquer para qualquer lugar.
Eu segui ao sabor de todos os ventos
Mas somente a extensão.
Chorei. Prostrado na terra eu olhei para o céu
E pedi ao Senhor o caminho da fé.
Noites e noites foram-se em silêncio
E somente a extensão.
Quis morrer. Talvez a terra fosse o único caminho
E à terra me abracei esperando o meu fim
Porém tudo era terra e eu não quis mais a terra
Que era a grande extensão.
Quis viver. E em mim mesmo eu busquei o caminho
Na ansiedade de uma última esperança
Eu olhei - e volvi à extensão desesperado
Era tudo extensão.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
O operário e a fábrica (Jairo Cézar - 1977)
Anjos estranhos dançam sobre meus cílios.
Dançam, bebem, comem e amam.
Pulam nas minhas pálpebras
E invadem meu globo ocular.
Preciso dormir. Os anjos acordam tarde, eu não.
Acordo cedo. Trabalho em uma Fábrica.
Uma Fábrica que produz um bem que faz
De um fraco um Rei.
Há quem diga que sou importante,
O mais importante de todos.
Dizem que me devem, mas nunca me pagam.
Cansei de esperar. Não vou mais dormir.
Quero festa, uma festa igual a dos anjos,
Cheia de bebida e dança.
Pronto, está decidido. A Fábrica vai
Funcionar sem mim.
Mas dizem que sou importante,
O mais importante de todos.
Já são 6 e 20...
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Quatro horas da tarde (Murilo Mendes - 1901 - 1975)
Não vejo ninguém vivo nesta cidade enorme:
Daqui a cinquenta anos estarão todos no cemitério.
Vejo somente a água, a pedra fixa
Que me transportam ao princípio do tempo.
Quem são estes fantasmas que se movem nas ruas
Agitando bandeiras, levantando os braços, tocando tambores?
Quem são estes velhos que andam de velocípede,
Quem são estes bebês empunhando machados?
Procuro a amiga tão bela e necessária.
Se não está comigo, em mim, é porque não existe.
Ó minha amiga, surge em corpo, senão acreditarei
Que também eu próprio não existo.
Daqui a cinquenta anos estarão todos no cemitério.
Vejo somente a água, a pedra fixa
Que me transportam ao princípio do tempo.
Quem são estes fantasmas que se movem nas ruas
Agitando bandeiras, levantando os braços, tocando tambores?
Quem são estes velhos que andam de velocípede,
Quem são estes bebês empunhando machados?
Procuro a amiga tão bela e necessária.
Se não está comigo, em mim, é porque não existe.
Ó minha amiga, surge em corpo, senão acreditarei
Que também eu próprio não existo.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
à maneira do Pessoa (Geraldo Carneiro - 1952)
eu não sei nada.
não sei onde fica a Abissínia,
a Bessarábia, nem o Sri Lanka.
não sei em que descaminhos da História
perdi o Congo Belga e Madagascar.
só conheço as províncias da ficção
essas, infelizmente, imutáveis:
Shangri-lá, Pandemônio, Xanadu
e outros eldorados da imaginação.
desconheço os mistérios da semântica,
misturo alhos e bugalhos,
nenúfares e putifares;
não sei por que torções a linguagem
se empavona ou se desempluma;
em suma, só admiro as palavras
como o selvagem admira um helicóptero.
a despeito dessa sólida ignorância
às vezes por acaso me deparo
com uma cena, um gesto, uma palavra
cujo esplendor desperta um mar de ressonâncias.
e de repente a insolência do sol
ilumina as minhas trevas
e eu sou como um deus parindo o mundo.
não sei onde fica a Abissínia,
a Bessarábia, nem o Sri Lanka.
não sei em que descaminhos da História
perdi o Congo Belga e Madagascar.
só conheço as províncias da ficção
essas, infelizmente, imutáveis:
Shangri-lá, Pandemônio, Xanadu
e outros eldorados da imaginação.
desconheço os mistérios da semântica,
misturo alhos e bugalhos,
nenúfares e putifares;
não sei por que torções a linguagem
se empavona ou se desempluma;
em suma, só admiro as palavras
como o selvagem admira um helicóptero.
a despeito dessa sólida ignorância
às vezes por acaso me deparo
com uma cena, um gesto, uma palavra
cujo esplendor desperta um mar de ressonâncias.
e de repente a insolência do sol
ilumina as minhas trevas
e eu sou como um deus parindo o mundo.
domingo, 22 de janeiro de 2012
Repouso (Orides Fontela - 1940 - 1998)
Basta o profundo ser
em que a rosa descansa.
Inúteis o perfume
e a cor: apenas signos
de uma presença oculta
inútil mesmo a forma
claro espelho da essência
inútil mesmo a rosa.
Basta o ser. O escuro
mistério vivo, poço
em que a lâmpada é pura
e humilde o esplendor
das mais cálidas flores.
Na rosa basta o ser:
nele tudo descansa.
sábado, 21 de janeiro de 2012
Sósia (Elisa Lucinda - 1958)
Mas que desagradável mania tem a humanidade
de se tornar subitamente parecida com o amor da gente:
Todos roubam a cara e os particulares sinais
do amor que a gente espera
do amor que a gente erra.
De tanto confundi-lo de longe na rua
vou mamando a poesia desse equívoco
como quem menstrua em lugar de filhos.
A saudade arma um circo onde palhaços e garis
têm cara do com quem eu seria feliz.
Diante do meu nariz, vou jurando que é ele
Cada rosto, cada passo, cada traço
vou jurando que é dele
e me enganando nas ruas
bebendo nesse diapasão
de uma perigosa e destilada bebida
que se toma de ilusão.
de se tornar subitamente parecida com o amor da gente:
Todos roubam a cara e os particulares sinais
do amor que a gente espera
do amor que a gente erra.
De tanto confundi-lo de longe na rua
vou mamando a poesia desse equívoco
como quem menstrua em lugar de filhos.
A saudade arma um circo onde palhaços e garis
têm cara do com quem eu seria feliz.
Diante do meu nariz, vou jurando que é ele
Cada rosto, cada passo, cada traço
vou jurando que é dele
e me enganando nas ruas
bebendo nesse diapasão
de uma perigosa e destilada bebida
que se toma de ilusão.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Extravio (Ferreira Gullar - 1930)
Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
Sobre el poder del tiempo (José Cadalso - 1741 - 1782)
Todo lo muda el tiempo, Filis mía,
todo cede al rigor de sus guadañas;
ya transforma los valles em montañas,
ya pone um campo donde un mar había.
Él muda en noche opaca el claro día,
en fábulas pueriles las hazañas,
alcázares soberbios en cabañas,
y el juvenil ardor en vejez fría.
Doma el tiempo al caballo desbocado,
detiene al mar y viento enfurecido,
postra al león y rinde al bravo toro.
Solo una coisa al tiempo denodado
ni cederá, ni cede, ni há cedido,
y es el constante amor con que te adoro.
todo cede al rigor de sus guadañas;
ya transforma los valles em montañas,
ya pone um campo donde un mar había.
Él muda en noche opaca el claro día,
en fábulas pueriles las hazañas,
alcázares soberbios en cabañas,
y el juvenil ardor en vejez fría.
Doma el tiempo al caballo desbocado,
detiene al mar y viento enfurecido,
postra al león y rinde al bravo toro.
Solo una coisa al tiempo denodado
ni cederá, ni cede, ni há cedido,
y es el constante amor con que te adoro.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
Gritos e Sussurros (Felipe Fortuna - 1963)
Alguma coisa em mim é a tua dor.
Com ela eu adoeço; mas não dou
meu corpo à tua dor, senão me perco.
Senão me esqueço de tocá-lo, assim
como a flor sobre o muro esquecido.
E me calo: a dor é o silêncio e o muro.
A dor é o mundo? Mas não a sinto.
E, armado até os dentes,
mordo o mundo, mordo o corpo
por pertencer à minha vida, por estar junto
à minha dor, à dor de todo mundo.
Venha então o meu corpo ou o teu corpo,
pois tanto faz, se a dor é a mesma, gritar sozinho.
Perguntas ao silêncio (Felipe Fortuna - 1963)
O silêncio tem rotação?
E é rotação que se perceba,
ou mera pulsação da seda
que nenhum corpo quer tecer?
Como pode o silêncio ter,
por vezes, o calor da reza
- que, morno, pouco a pouco embaça
os vidros frágeis de quem fala?
Pois - o silêncio é ter certeza?
É prisma por onde uma luz
desnuda sem qualquer pudor
o segredo de fazer sombras?
E que silêncio é mais exato?
O resignado, de quem morre,
o silêncio de quem respira,
ou aquele que, não desfeito,
torna suspeito o mundo inteiro?
E é rotação que se perceba,
ou mera pulsação da seda
que nenhum corpo quer tecer?
Como pode o silêncio ter,
por vezes, o calor da reza
- que, morno, pouco a pouco embaça
os vidros frágeis de quem fala?
Pois - o silêncio é ter certeza?
É prisma por onde uma luz
desnuda sem qualquer pudor
o segredo de fazer sombras?
E que silêncio é mais exato?
O resignado, de quem morre,
o silêncio de quem respira,
ou aquele que, não desfeito,
torna suspeito o mundo inteiro?
quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Fuga (Carlos Pardo - 1975)
La luz, al menos, es la misma,
ligera y fiel,
y el viento echa a perder los nomeolvides
que ella cuidó disciplinada. Buscaré
dóciles ideales para matar al suyo
de abandono. Él perdón
obsceno luce um quiste:
la idea del regresso.
Sus quejas vegetales, me repito,
y, aunque no explica, da seguridad.
Tomo impulso.
Cubre las azoteas humo
blanco. Los sentimientos,
como el aire, están llenos de microbios.
Por todas partes.
ligera y fiel,
y el viento echa a perder los nomeolvides
que ella cuidó disciplinada. Buscaré
dóciles ideales para matar al suyo
de abandono. Él perdón
obsceno luce um quiste:
la idea del regresso.
Sus quejas vegetales, me repito,
y, aunque no explica, da seguridad.
Tomo impulso.
Cubre las azoteas humo
blanco. Los sentimientos,
como el aire, están llenos de microbios.
Por todas partes.
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
Povo transplantado (Climério Ferreira)
Eles vieram de longe:
dos andaimes de construtoras,
da poeira vermelha, da cidade livre, das invasões
do sertão quente e brabo
Eles vieram de longe:
das montanhas cortadas por trens,
do circuito das águas, das escavações dos minérios,
das históricas igrejas
Eles vieram de longe:
das matas fechadas, dos caudalosos rios,
das aldeias mais isoladas, das chuvas eternas e diárias
das terras ainda intocadas
Eles vieram de longe:
de um longe que é mais perto,
de um longe que é quase aqui, de um lugar encravado no centro,
de um recanto de peixe e pequi
Eles vieram de longe:
das fronteiras da américa,
do gosto do chimarrão, os galopes nos pampas,
das chulas e dos lenços no pescoço
Eles vieram de longe:
de praias e morros,
do futebol, carnaval, muito samba,
da fala chiada e da ginga
Hoje eles,
sujos de barro e cheios de esperança,
são o povo daqui
dos andaimes de construtoras,
da poeira vermelha, da cidade livre, das invasões
do sertão quente e brabo
Eles vieram de longe:
das montanhas cortadas por trens,
do circuito das águas, das escavações dos minérios,
das históricas igrejas
Eles vieram de longe:
das matas fechadas, dos caudalosos rios,
das aldeias mais isoladas, das chuvas eternas e diárias
das terras ainda intocadas
Eles vieram de longe:
de um longe que é mais perto,
de um longe que é quase aqui, de um lugar encravado no centro,
de um recanto de peixe e pequi
Eles vieram de longe:
das fronteiras da américa,
do gosto do chimarrão, os galopes nos pampas,
das chulas e dos lenços no pescoço
Eles vieram de longe:
de praias e morros,
do futebol, carnaval, muito samba,
da fala chiada e da ginga
Hoje eles,
sujos de barro e cheios de esperança,
são o povo daqui
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
Estou cansado, é claro (Fernando Pessoa - 1888 - 1935)
Estou cansado, é claro.
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto -
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento restrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
* Poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto -
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento restrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
* Poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012
Cartão de natal (João Cabral de Melo Neto - 1920 - 1999)
Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece um ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece um ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.
domingo, 8 de janeiro de 2012
Papel (Carlos Drummond de Andrade - 1902 - 1987)
E tudo que eu pensei
e tudo que eu falei
e tudo que me contaram
era papel.
E tudo que descobri
amei
detestei:
papel.
Papel quanto havia em mim
e nos outros, papel
de jornal
de parede
de embrulho
papel de papel
papelão.
sábado, 7 de janeiro de 2012
Questões III (Alice Ruiz - 1946)
Se a preguiça é pecado,
o que Deus estará fazendo agora?
Em que se ocupa aquele que tudo pode?
Terá restado algo por fazer
depois que o mundo foi criado?
Se o desejo é fraqueza,
Deus nunca deseja?
Mas se é verdade que nos criou,
algo nele desejou.
Se a vaidade é um erro,
por que nos fez
À sua imagem e semelhança?
Ou terá sido o contrário?
Por que criar alguém
capaz de duvidar da criação?
Por que nós e ele não?
o que Deus estará fazendo agora?
Em que se ocupa aquele que tudo pode?
Terá restado algo por fazer
depois que o mundo foi criado?
Se o desejo é fraqueza,
Deus nunca deseja?
Mas se é verdade que nos criou,
algo nele desejou.
Se a vaidade é um erro,
por que nos fez
À sua imagem e semelhança?
Ou terá sido o contrário?
Por que criar alguém
capaz de duvidar da criação?
Por que nós e ele não?
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
O telefone e a metafísica (Eucanaã Ferraz - 1961)
Acontece que
vais à caderneta de telefones e ela
que antes (sabias) estava cheia
de números e nomes
repentinamente está vazia
De A a Z
vazia.
Onde tudo e todos?
Roubaram os ossos do telefone,
que não te pode levar a lugar nenhum.
Perplexo, descobres que existir
é deserto.
vais à caderneta de telefones e ela
que antes (sabias) estava cheia
de números e nomes
repentinamente está vazia
De A a Z
vazia.
Onde tudo e todos?
Roubaram os ossos do telefone,
que não te pode levar a lugar nenhum.
Perplexo, descobres que existir
é deserto.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
Não sabes (Castro Alves - 1847 - 1871)
Quando alta noite n'amplidão flutua
Pálida a lua com fatal palor,
Não sabes, virgem, que eu por ti suspiro
E que deliro a suspirar de amor.
Quando no leito entre sutis cortinas
Tu te reclinas indolente aí,
Ai! Tu não sabes que sozinho e triste
Um ser existe que só pensa em ti.
Lírio, dest'alma, sensitiva bela,
És minha estrela, meu viver, meu Deus.
Se olhas - me rio, se sorris - me inspiro,
Choras - deliro por martírios teus.
E tu não sabes deste meu segredo
Ah! tenho medo do teu rir cruel!...
Pois se o desprezo fosse a minha sorte
Bebera a morte neste amargo fel.
Mas dá-me a esp'rança num olhar quebrado,
Num ai magoado, num sorrir do céu,
Ver-me-ás dizer-te na febril vertigem
"Não sabes, virgem? Meu futuro é teu"!
Pálida a lua com fatal palor,
Não sabes, virgem, que eu por ti suspiro
E que deliro a suspirar de amor.
Quando no leito entre sutis cortinas
Tu te reclinas indolente aí,
Ai! Tu não sabes que sozinho e triste
Um ser existe que só pensa em ti.
Lírio, dest'alma, sensitiva bela,
És minha estrela, meu viver, meu Deus.
Se olhas - me rio, se sorris - me inspiro,
Choras - deliro por martírios teus.
E tu não sabes deste meu segredo
Ah! tenho medo do teu rir cruel!...
Pois se o desprezo fosse a minha sorte
Bebera a morte neste amargo fel.
Mas dá-me a esp'rança num olhar quebrado,
Num ai magoado, num sorrir do céu,
Ver-me-ás dizer-te na febril vertigem
"Não sabes, virgem? Meu futuro é teu"!
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
4º motivo da rosa (Cecília Meireles - 1901 - 1964)
Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Rosas verás, só de cinza franzida,
mortas intactas pelo jardim.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando em mim.
E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
Obsessão de Diana (Cecília Meireles - 1901 - 1964)
A Raquel Bastos
Diana, teu passo esteve
em onda, em nuvem, na água
- e foi lúcido e leve.
Tão rápido e tão belo
que era espanto senti-lo
e impossível prendê-lo.
Memória e sonho, agora,
- a existência visível
da veloz caçadora!
Bastaria querer-te
pelas estrelas nadas
de teu vestígio inerte.
Mas ah! quem descrevera
tuas mãos e teus olhos!
E teu rumo qual era!...
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
Dolências (Augusto dos Anjos)
Eu fui cadáver, antes de viver!
Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver!
Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E acostumado a assim sofrer existo…
Existo! – E apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei também de ser!
Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Eu, de saudades me despedaçando
De novo, triste e sem cantar, morrer,
Nada se altere em sua marcha infinda
- O tamarindo reverdeça ainda,
A lua continue sempre a nascer!
Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver!
Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E acostumado a assim sofrer existo…
Existo! – E apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei também de ser!
Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Eu, de saudades me despedaçando
De novo, triste e sem cantar, morrer,
Nada se altere em sua marcha infinda
- O tamarindo reverdeça ainda,
A lua continue sempre a nascer!
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