terça-feira, 31 de maio de 2011

A árvore da serra (Augusto dos Anjos - 1884-1914)


- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Senectude precoce (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Envelheci. A cal da sepultura
Caiu por sobre a minha mocidade...
E eu que ainda julgava em minha idealidade
Ver inda toda a geração futura!

Eu que julgava! Pois não é verdade?!
Hoje estou velho. Olha essa neve pura!
- Foi saudade? foi dor? - foi tanta agrura
Que eu nem sei se foi dor ou foi saudade!

Sei que durante toda a travessia
Da minha infância trágica, vivia,
Assim como uma casa abandonada

Vinte e quatro anos em vinte e quatro horas...
Sei que na infância nunca tive auroras,
E afora disto, eu já nem sei mais nada!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Nada vêem (Jorge Wanderley - 1938-1999)

Pois se entre todos vou desconhecido,
No além de minha condição negado,
Eis que por duas vezes vou servido
De recusa e cegueira, e acostumado.

Melhor: a quem recusa, recusado
Faço que fique no seu mal vencido,
E a quem não vê, pobre desentendido,
Engano, enquanto vim assinalado.

Tudo o que dizem, tenho conhecido,
Sei quando calam tudo que hão calado.
Vá lá que ceguem, já que entorpecido

Têm seu sentido, em si tão limitado:
Mas que neguem quem seja, tem nutrido
Minha vingança e meu poder chamado.

Um sonho pardo (Jorge Wanderley - 1938-1999)

Passeio nesta esquina - onde a verdade
Ou todo o mal, talvez, talvez o fim
Das coisas - das palavras! - de um jardim
De encantos e tormentos, tempestade
Em ondas silenciosas, chega a mim.
Em sonhos não toquei nesta cidade
Senão pelos subúrbios, uma grade
Melancólica, envolta no jasmim,
Por uma tarde longe onde foi ontem.
Nada há por perto, senão ruas e casas
E um sol se pondo e passos meus, incertos.
Nada que na incerteza me descontem
Os lances da memória que se atrasa
E leva a mim, de mim tão longe e perto.

domingo, 29 de maio de 2011

Transforma-se o amador na cousa amada (Camões 1524-1580)

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semidéia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assim com a minha alma se conforma,

está no pensamento como idéia;
e o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.

Eu cantarei de amor tão docemente (Camões 1524-1580)

Eu cantarei de amor tão docemente,
por uns termos em si tão concertados,
que dous mil acidentes namorados
faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
pintando mil segredos delicados,
brandas iras, suspiros magoados,
temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
de vossa vista branda e rigorosa,
contentar-me hei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
a composição alta e milagrosa,
aqui falta saber, engenho e arte.

sábado, 28 de maio de 2011

Epitáfio (Ivan Junqueira - 1934)

De tua história, nada;
ou tudo, se quiseres;
entre uma e outra data,
a fábula de seres,
nunca o tangível, mas
o pássaro, o maralto
(o passo, não: o salto
em vão, fora do espaço),
o amor, vale dizer:
sua forma álgida e rara,
avessa à coisa amada
- e, súbito, colher
a morte, flor cediça,
dentro da vida.

Pacto (Ivan Junqueira - 1934)

Terei parte com o demônio
ou será que apenas sonho
o que os outros, além do sono,
jamais enxergaram na sombra?

Seria um acordo anônimo
com o mal, o horror, o assombro?
Seria o quê? Não suponho,
mas sinto em meus neurônios.

Essa harmonia redonda,
de que se gabam os geômetras,
não seria antes sintoma
do conflito entre os antônimos?

Não haverá na hecatombe
algo de lúdico e hedônico,
uma ordem que, por atônita,
nos dê a medida dos homem?

Deu-me Deus dois olhos nômades
com que vejo o que me ronda:
um traz o pélago à tona;
outro, o que escondem os biombos.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A mulher e a casa (João Cabral de Melo Neto - 1920-1999)

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas,

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Saga nordestina (Jairo Cézar - 1977)


Ser filho primogênito
Do derradeiro parto.
Partir do ventre fraco
Para o leito de anêmico.

Sugar do seio magro
Faíscas, leite parco.
Crescendo, não crescendo,
Já na infância me amargo.

Na lamúria das descrenças
Adolesço, acre berço.
Vou assim, em desconcerto,
E só um pouco, ainda cresço.

Já na sofrência da adultez,
Adulto velho, fruto murcho da escassez,
Da velhice me despeço, com muita pressa,
Bem ligeiro, agora peço,
Pelo anjo morto, meu filho, medo,
Expulso também da vida,
Sem demora, logo cedo.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A serra do Rola-Moça (Mario de Andrade - 1893-1945)

A serra do Rola-Moça
não tinha esse nome não...
eles eram do outro lado,
vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
o noivo com a noiva dele
cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite
se lembraram de voltar.
Disseram adeus para todos
e se puseram de novo
pelos atalhos da serra
cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreiros
ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.
A serra do Rola-Moça
não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
rapidamente fugiam
e apressadas se escondiam
lá embaixo nos socavões
temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
cada qual no seu cavalo,
e riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
com as risadas dos cascalhos
que pulando levianinhos
da vereda se soltavam
buscando o despenhadeiro.

Ah! Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.

Faz um silêncio de morte.
Na altura tudo era paz...
Chicoteando o seu cavalo,
no vão do despenhadeiro
o noivo se despenhou.

E a serra do Rola-Moça,
Rola-Moça se chamou.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Ser poeta (Florbela Espanca - 1894-1930)

Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te assim, perdidamente...
E seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!

Caravelas (Florbela Espanca - 1894-1930)


Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...

segunda-feira, 23 de maio de 2011

A estrela (Manuel Bandeira - 1886-1968)


Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

Letra para uma valsa romântica (Manuel Bandeira - 1886-1968)

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!

domingo, 22 de maio de 2011

Despedida (Ferreira Gullar - 1930)

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato,
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
                       raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
            para que eu fique
            para que eu fique

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

Recado (Ferreira Gullar - 1930)

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.

Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo;
meu corpo mutilado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja,
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
- e obrigo o tempo a ser verdade

sábado, 21 de maio de 2011

Canção do exílio (Gonçalves Dias - 1823-1864)

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Via (Eucanaã Ferraz - 1961)

Eu caminhava nu, sem que você me visse.
Para que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminha nem, sem que você visse,

eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho, cansado engano,

sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes

do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiquissimo, no dorso de um vaso.

Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.

Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.

E para que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pele. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você me visse.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Pequeno retrato (José Paulo Paes - 1926-1998)

Nunca vislumbrei
No momento exíguo,
No dia contigo,
O dia contíguo.

Sempre desprezei
A estrela sinistra,
O falso zodíaco,
A esfera de cristal
E o terceiro aviso
Do galo matinal.

Como submeter
O desejo ao fado,
Se todo prazer
Ri da cautela,
Ri do cuidado,
Que o quer prender?

Vou despreocupado,
Dora, tão despreocupado,
Que nem sei morrer.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Poema para ser transfigurado (Chacal - 1951)

quem somos
o que queremos
logo logo saberemos

por enquanto
sabemos
que um gesto
uma palavra
podem transformar o mundo

qual deles
qual delas
saberemos já já

essa a missão do artista:
experimentar

por isso somos preciso
por dar nossas vidas
pelo que - ainda não - é
pelo que - quem sabe - será

o que somos o que queremos
saberemos juntos
já já

terça-feira, 17 de maio de 2011

Prece diária para porteiros, seguranças e vigias (Bruno Zeni - 1975)

Dai-me forças para que o tempo
Me seja leve - as horas passem sem vagar
E o frio não fustigue minha carne em demasia;

Enviai-me pensamentos viciosos
Na medida em que minha sensatez e meu humor
Possam resistir à insanidade;

Impedi que a sensação de desconforto e desacordo
Causada por este terno-e-gravata
Me abata além da cota;

Fazei com que não perca a serenidade em caso de perturbação
Conservando, assim,
Sem uso as armas de fogo que me foram confiadas;

Mantende minha crença de que ainda não perdemos
O interesse recíproco por nossas vidas tão desiguais
Mesmo que os olhos dos homens a mim não se dirijam
Ou sejam vazios o "bom-dia" e o "bom descanso" diários;

Afastai-me da tentação de atentar contra aqueles que me contrataram,
Pois não sabem o que fazem
Ainda que seu alheamento alimente em mim
Uma hesistante mas crescente revolta;

Mas sobretudo,
Livrai-me e nos livrai
Da ideia avassaladora
De que não me resta
E não nos resta
Outra escolha.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Grafito (José Paulo Paes - 1926-1998)

neste lugar solitário
o homem toda manhã
tem o porte estatutário
de um pensador de rodin

neste lugar solitário
extravasa sem sursis
como num confessionário
o mais íntimo de si

neste lugar solitário
arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas próprias entranhas

neste lugar solitário
faz a conta mais doída:
em lançamentos diários
a soma de sua vida.

domingo, 15 de maio de 2011

Da observação (Mario Quintana - 1906-1994)

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem
Teu mais amável e sutil recreio...

Da felicidade (Mario Quintana - 1906-1994)

Quantas vezes a gente, em busca da ventura
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

sábado, 14 de maio de 2011

Formosa (Maciel Monteiro - 1804-1868)

Formosa, qual pincel em tela fina
debuxar jamais pôde ou nunca ousara;
formosa, qual jamais desabrochara
na primavera rosa purpurina;

formosa, qual se a própria mão divina
lhe alinhara o contorno e a forma rara;
formosa, qual jamais no céu brilhara
astro gentil, estrela peregrina;

formosa, qual se a natureza e a arte,
dando as mãos em seus dons, em seus lavores,
jamais soube imitar no todo ou parte;

muher celeste, ó anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Debaixo do tamarindo (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
de inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

Budismo moderno (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharada roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah, Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Poeta do hediondo (Augusto dos Anjos - 1884-1914)

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente, eu sou a mais hedionda
Generalização do desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Os amantes (Julio Cortazar - 1914-1984)

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre os seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumos a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amargura arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Cemitério pernambucano (Nossa Senhora da Luz) (João Cabral de Melo Neto - 1920-1999)

Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.

Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.

Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.

Cemitério pernambucano (Toritama) (João Cabral de Melo Neto - 1920-1999)

Para que todo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?

A morte nesta região
gera dos mesmos cadáveres?
Já não os gera de caliça?
Terão alguma umidade?

Para que a alta defesa,
alta quase para os pássaros,
e as grades de tanto ferro,
tanto ferro nos cadeados?

- Deve ser a sementeira
o defendido hectare,
onde se guardam as cinzas
para o tempo de semear.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Sereia (Mario Benedetti - 1920-2009)

Tenho a certeza de que não existes
e mesmo assim te ouço a cada noite

te invento às vezes com minha vaidade
ou minha desolação ou minha preguiça

do infinito mar vem teu assombro
e escuto como um salmo e apesar de tudo

tão convencido estou de que não existes
que te aguardo em meu sonho daqui a pouquinho.

É tão pouco (Mario Benedetti - 1920-2009)

O que conheces
é tão pouco
o que conheces
de mim
o que conheces
são minhas nuvens
são meus silêncios
são meus gestos
o que conheces
é a tristeza
da minha casa vista de fora
são os postigos da minha tristeza
a campainha da minha tristeza.

Mas não sabes
nada
no máximo
pensas às vezes
que é tão pouco
o que conheço
de ti
o que conheço
ou seja tuas nuvens
ou teus silêncios
ou teus gestos
o que conheço
é a tristeza
da tua casa vista de fora
são os postigos da tua tristeza
a campainha da tua tristeza.
Mas não tocas.
Mas não toco.

domingo, 8 de maio de 2011

Mãe (Cora Coralina - 1889-1995)

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe.
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.

Ubiquidade (Maíra Ramos)

 A poesia está em mim, aqui, além,
em toda parte.

A poesia está presente na mãe que
amamenta o filho choroso e faminto;
na cor radiante dos flamingos;
no espetáculo do pôr-do-sol do cotidiano;
no aprendizado adquirido com o passar dos anos;
na calma e frescura das cidades interioranas;
no sorriso inocente de uma criança;
na adolescência perdida em meio a lembranças...

Há poesia bastante em
tudo no mundo.
Ela cabe até neste poema.

sábado, 7 de maio de 2011

Quem bate? (Mario Quintana - 1906-1994)

Cecília, Cecília que chega de um pátio da infância...
Traz ainda sereno nas tranças,
Seus sapatinhos andaram pulando na grama...
Depois assenta-se nos degraus da torre e canta...
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe as tranças,
teceu cordoalhas para o seu navio.
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe a canção... E
fez um vento longo e triste.
E eu pensava que toda a minha tristeza vinha
apenas do vento,
Da solidão do mar,
Da incerteza daquela viagem num navio perdido...

Da paginação (Mario Quintana - 1906-1994)

Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos - gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a fazer parte dos poemas...

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Entre os espadões de ferro literário (Pablo Neruda - 1904-1973)

Entre os espadões de ferro literário
eu passo como um marinheiro distante
que não conhece as esquinas e canta
por cantar, como se não fosse por isso.

Dos atormentados arquipélagos trouxe
o meu acordeão com borrascas, rajadas de chuva louca,
e um hábito lento de coisas naturais:
elas determinaram meu coração silvestre.

Assim, quando os dentes da literatura
morderem meus honrados calcanhares,
voltei, sem saber, cantando com o vento

aos armazéns chuvosos da infância,
aos bosques frios do Sul indefinível,
lá onde a minha vida se encheu com teu aroma.

Nunca terei, não tenho nunca (Pablo Neruda - 1904-1973)

Nunca terei, não tenho nunca. Na areia
a vitória deixou seus pés perdidos.
Sou um pobre homem disposto a amar seus semelhantes.
Não sei quem és. Amo-te. Não dou, não vendo espinhos.

Alguém saberá talvez que não teci coroas
sangrentas, que combati a burla
e que em verdade enchi a preia-mar da minha alma.
Paguei a vileza com pombas.

Eu nunca tenho porque diferente
fui, sou, serei. E em nome
do meu amor mutuamente proclamo a pureza.

A morte é só pedra do esquecimento.
Amo-te, beijo na tua boca a alegria.
Tragamos lenha. Acenderemos uma fogueira na montanha.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tristeza (Ivan Junqueira - 1934)

Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes do meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.

(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)

E o resto é mesmo tristeza.

Canção (Ivan Junqueira - 1934)

Porque pedes, trago flores
e derramo-as em teu leito,
sobre teus úmidos pêlos,
entre os gomos do teu seio.

Porque pedes, planto flores
em lugar do desespero
e mudo os tons da palheta
do negro para o vermelho.

Porque pedes, colho flores
até na escarpa mais erma,
nos desertos onde a seca
mostra a vida pelo avesso.

Porque pedes, ponho flores
nos tetos e nas paredes
e são elas, não as letras,
que dão sentido ao que escrevo.

Porque pedes, deito flores
às ondas de teus cabelos
e elas faíscam - estrelas -
no pélago em que as semeio.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Da primeira vez em que me assassinaram (Mario Quintana - 1906-1994)

Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!

terça-feira, 3 de maio de 2011

Oh! como se me alonga, de ano em ano... (Camões 1524-1580)

Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um remédio que ainda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece;
mil vezes caio e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se os olhos ergo a ver se ainda aparece,
da vista se me perde e da esperança.

Passo por meus trabalhos tão isento (Camões 1524-1580)

Passo por meus trabalhos tão isento
de sentimento grande nem pequeno,
que só pela vontade com que peno
me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
temperando a triaga com veneno,
que do penar a ordem desordeno,
porque assim mo consente o sofrimento.

Porém, se esta fineza o Amor não sente,
e pagar-me meu mal com mal pretende;
torna-me com prazer como ao Sol neve.

Mas se me vê co' males tão contente,
faz-se avaro da pena, porque entende
que quanto mais me paga, mais me deve.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Vicente do Rego Monteiro (João Cabral de Melo Neto - 1920-1999)

Eu vi teus bichos
mansos e domésticos:
um motociclo
gato e cachorro.
Estudei contigo
um planador,
volante máquina,
incerta e frágil.
Bebi da aguardente
que fabricaste,
servida às vezes
numa leiteira.
Mas sobretudo
senti o susto
de tuas surpresas.
E é por isso
que quando a mim
alguém pergunta
tua profissão
não digo nunca
que és pintor
ou professsor
(palavras pobres
que nada dizem
de tais surpresas);
respondo sempre:
- É inventor,
trabalha ao ar livre
de régua em punho,
janela aberta
sobre a manhã.

domingo, 1 de maio de 2011

Este quarto... (Mario Quintana - 1906-1994)

Para Guilhermino César

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte devia ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...